À noite, tinha medo do abominável homem das neves, dos extraterrestres, dos fantasmas (o meu era preto, enorme, estava de braços abertos encostado à parede, a olhar de lado, vestido de batina mas sem cabeção), medo de não dormir, medo de não acordar, medo em estado puro quando os braços não se mexiam, a boca não gritava, o corpo recusava-se a espertina.
Eu tinha medo, como tu, e quando fosse homem já não ia ter medo, porque sabia que isso era quando tinha oito anos. Aos oito toda a gente tem medo, embora o Silvério dissesse que não. “És um maricas” e eu, convencido, imaginava que o Silvério não tinha medo e dormia com um exército, um curandeiro e o homem-aranha à volta da cama. É que só assim, só assim não se teria medo.
O Silvério, de certeza, tinha armas, tinha heróis, um homem-aranha a cercar-lhe a cama. No dia em que o fantasma vestido de batina quisesse entrar-lhe no quarto, o fantasma de batina ia ter medo dos que protegiam o Silvério. Eu admirava-o por não ter medo.
Um dia, o Silvério tinha 30 e picos anos e eu vi-o. Foi um grande abraço. Eu já não tinha medo das mesmas coisas. Ele já não tinha coisa nenhuma por causa da vida. Falou-me como se tivéssemos oito anos, como se a aula tivesse acabado ainda agora e estivéssemos no recreio: ele a fazer de mim o chefe da polícia – achava que eu, que tinha medo, devia ser da polícia e logo o chefe!
Nesse dia, perdi o Silvério, porque a vida era já outra coisa: já tinha o meu homem-aranha tatuado nas costas, já tinha um amor infinito por um filho que ia ter medo aos oito e eu já sabia que podia ir dizer-lhe que estava ali para que ele não tivesse medo. Não disse ao Silvério mais nada a não ser que tinha saudades dele, embora me apetecesse dizer-lhe que já não havia medos e que ele podia descansar.
É aos oito anos que a gente se arrepia. Se isso não passa, se os medos não mudam, se alguém nos quer fazer ter medo a vida toda, então o sete-estrelo virou-se contra nós, numa manobra de regresso forçado à infância. A meninice nem nos pertence nem se perdeu. Reside em nós mas sem domínio do medo: só doçura e carinho e o sorriso ao tal susto.
Às vezes parece que os mais fortes do mundo são o Silvério. Têm 60 anos e os medos que carregam da infância, sem nunca os domar. Por isso, fazem tudo para que nós tenhamos o mesmo medo deles. Fazem tudo para que o Silvério os torne chefe das polícias ou dos ladrões.
Em Bruxelas, em Madrid, em Londres, em Lisboa, esta noite, milhões de crianças adormecerão com medo.
As de oito anos merecem um beijo e que ali fiquemos com eles, nós e o homem-aranha. As de 40, 50, 60, que são eleitos chefes e líderes, sentados dormitando nas cadeiras do poder, de Alepo a Estrasburgo, de Washington a Baçorá, merecem apenas que os adultos as retirem com muito cuidado das salas, para não as acordar, e as coloquem na caminha, até que tenham idade para vir à rua. O medo nunca lhes dará tréguas.