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Quarta-feira, Novembro 20, 2024

O pão nosso de cada dia

Rui Miguel Duarte
Rui Miguel Duarte
Filólogo; investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Esta expressão encontra-se na célebre oração “Pai Nosso”, que todos, ou quase todos, aprendemos de cor. A liturgia católica segue o texto do Evangelho segundo Mateus 6.9-13. O “Pai Nosso” não é, em rigor, uma oração. Jesus dissuadia os discípulos de recorrer a fórmulas e frases feitas e repetidas para se dirigirem ao Pai, princípio que enunciaram poucos segundos antes. Este era o modo de orar dos outros povos. O que ele fez foi mais propriamente fornecer-lhes um modelo de oração. Uma oração deveria então conter, à luz desse modelo: invocação e glorificação de Deus; anseio por que a sua vontade seja realizada e sujeição a esta; petições pelas necessidades humanas; petição da misericórdia de Deus na medida do exercício de misericórdia para com o próximo; invocação da protecção divina contra o mal. Pão aqui tem valor metonímico: representa o todo das necessidades humanas de alimento e sustento.

O texto grego reza: τὸν ἄρτον ἡμῶν τὸν ἐπιούσιον δὸς ἡμῖν σήμερον (ton arton hēmōn ton epiousion dós hēmin sêmeron). Merece a pena determo-nos nele. Pão é ἄρτος (artos, ἄρτον é forma de acusativo). A petição completa é: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. O texto de Lucas 11.2-4 apresenta uma pequena variante, nas últimas palavras do versículo: δίδου ἡμῖν τὸ καθ᾽ ἡμέραν (dídou hēmin tò kath’ hēméran “dá-nos quotidianamente”, ou “o de cada dia”). Do adjectivo ἐπιούσιος (epioúsios), que ocorre em ambas as transcrições das palavras de Jesus) a tradução é: “quotidiano, de cada dia”. A “velha tradução latina” (Vetus Latina) inaugurou a tradição (quotidianum). As línguas modernas têm-na simplesmente seguido. Por exemplo, entre nós, a recente (de 2009) tradução interconfessional A Bíblia para todos (BPT), com a chancela da Sociedade Bíblica de Portugal: “o pão de que precisamos”. Informa Orígenes que o termo teria sido cunhado pelos evangelistas[1]. Tratar-se-ia, deste modo, de um hapax legómenon. Por meio desta expressão grega se designa um vocábulo ou forma morfológica de uma língua de que somente se conhece uma única ocorrência atestada. Todavia, no século XX foi assinalada a descoberta do papiro Sammelbuch 5224,20, do século V d.C., contendo uma banal lista de compras. Nesse papiro, achou-se o termo em questão inscrito junto aos nomes de diversos artigos de mercearia. A pessoa que elaborou a lista teria querido precisar que as quantidades a comprar não deveriam transcender quanto bastasse para uma ração diária. Perdido por um certo tempo, o papiro reapareceu em 1998 na Yale Beinecke Library. Novos estudos levaram a concluir que a transcrição inicial fora incompetente e que o papiro lê outra coisa, EΛΑΙΟΥ (ELAIOU) “de azeite”. Afinal, sempre temos um hapax.

Contudo, o vocábulo grego é de derivação ambígua e dúbia. E por assim ser, são igualmente dúbios e ambíguos os sentidos possíveis. Se derivado de ἐπιοῦσα (episoúsa), forma feminina do particípio do verbo ἔπειμι (épeimi), formado do prefixo ἐπί (epí “sobre”) com εἰμί (eimí “ser”), tem, entre outros, os sentidos de “estar ou ser iminente, presente, sobreviver”. Para facilitar ao leitor o acompanhamento da análise da questão, assinalarei doravante este verbo como épeimi1 Neste caso, tratar-se-ia de pedir o pão ou o alimento do sustento diário.

Pão vivo

Outra formação possível do termo teria por base o tema do tema do particípio ἐπιοῦσα (epioúsa) na forma feminina do verbo de ἔπειμι (épeimi, ou, para comodidade do leitor e para o distinguir do verbo anterior, épeimi2), derivado do mesmo prefixo ἐπί (epí “sobre”) e de εἶμι (eími “ir, vir”). Em algumas das suas formas conjugadas, os dois verbos são homógrafos. Entre essas formas, a da primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Fenómenos destes ocorrem em verbos irregulares. Poderíamos, salvaguardadas as distâncias entre os idiomas, comparar com os verbos portugueses ir e ser, cujos sistemas do perfeito (pretérito perfeito e mais-que-perfeito) são, na conjugação, totalmente idênticos. Regressando ao nosso tema, o sentido seria diferente, virado para o futuro: o pão, o sustento “por vir”. A última tradução dos Evangelhos em português, por Frederico Lourenço (publicada pela Quetzal em 2016), segue esta interpretação básica: “o pão de amanhã”. E em nota ao texto de Mateus observa que o particípio do verbo épeimi ocorre não apenas em autores clássicos (por exemplo, Platão) como igualmente na Bíblia, na Septuaginta em Provérbios 27.1 e, no Novo Testamento, em Actos dos Apóstolos 16.11. Aliás, neste último livro, há um total de cinco ocorrências, todas no dativo, indicando todas “o dia seguinte”. Tratar-se-ia de pedir já para hoje a provisão de pão que pertence a amanhã.

O pão por vir pode compreender um outro sentido, mais elevado. A hermenêutica deste termo prestar-se-ia a um entendimento além do mais simples e literal. Seria o pão vivo, o verdadeiro maná que é o próprio Jesus (João 6.47-49). A alusão seria ao pão eucarístico, o corpo de Jesus cuja entrega foi anunciada pelo próprio em outras duas ocasiões: num discurso, na margem do Mar da Galileia (Lago Tiberíades), em que se identifica a si mesmos como o pão vivo e ensina os ouvintes sobre a necessidade de o comerem para terem vida, a vida de Deus (ζωή), discurso que escandalizou os auditores (ler todo o capítulo João 6); e na Última Ceia, na presença restrita dos Doze, em termos idênticos aos daquele discurso, mas sem que nesse momento suscitasse a indignação daquele outro (Mat. 26.26; Mar. 14.22; Luc. 22.19; 1 Cor. 11.23-24). Anunciada explicitamente duas vezes, implicitamente uma (no Pai Nosso), essa entrega haveria de se consumar na crucificação. Entre os autores da Patrística, este pedido foi amplamente entendido deste modo, como uma alusão ao pão eucarístico: Jesus oferece-se à morte e o seu corpo, ele mesmo, é o alimento que nutre os seus discípulos, integrando-os nele, para formarem com ele um só Corpo (ver Rom. 12 e últimos versículos de 1 Cor. 11).

Pão a Palavra

Outro entendimento tem a teologia reformada. Lutero, em Explicação do Pai Nosso, vê no pão a Palavra. Esta interpretação é compatível com a declaração do próprio Jesus a Satanás, com a qual se defende da primeira das três tentações a que este o sujeita no deserto (Evangelho segundo Mateus 4.4; Lucas 4.4): “O homem não vive de pão só, mas de toda a palavra oriunda da boca de Deus.” A declaração, citação de Deuteronómio 8.3, institui uma analogia que se reparte em pólos de um binómio. Primeiramente, este último: o pão e a palavra marcam de uma constante de significado, a ideia de alimento (segundo a terminologia de Greimas, uma “isotopia”). Mas, a diferença assenta naquilo em relação ao qual o objecto que designam constitui alimento, isto é, cada uma das dimensões do homem: um é alimento para o corpo, o outro para a alma e o espírito; um é pão no sentido próprio, ao passo que o outro, a palavra, o é por analogia. A referência ao pão no Pai Nosso suscita duas leituras, segundo os hábitos exegéticos da comunidade nacional e religiosa que produziu os textos bíblicos e foi o seu primeiro destinatário, os Hebreus. Uma é eminentemente literal, denotativa e remete para o mundo e vivência empírica, compreendendo o pão como alimento para o corpo físico; outra é alegórica, evoca um significado mais mediato, entendendo o termo como designativo de um outro alimento, mais elevado e espiritual. Dito de um modo corrente: o pão é para o corpo o que a palavra é para o espírito. Assim se compreenderia a exegese luterana. Que não se aparta muito, de resto, da católica romana: para Jesus, a oração expõe perante Deus o pedido de satisfação das nossas maiores necessidades, sendo a maior de todas a do espírito.

Temos, pois, duas etimologias, cada uma das quais gera uma via de interpretação e, por consequência, uma tradução distinta. Por qual decidir? Bento XVI (Joseph Ratzinger), no capítulo dedicado a este texto no II volume da trilogia Jesus von Nazareth, observa justamente que entender a petição por antecipação (que seja dado hoje o que pertenece a amanhã) não se acomoda muito bem ao estilo de vida dos discípulos. A menos que a petição pelo pão futuro fosse pelo tal pão vivo eucarístico, que é Jesus. Fiel a esta exegese corrente no seio da Patrística, Jerónimo, na sua versão latina (a Vulgata), cunhou, por decalque puro e simples do grego, o lema latino supersubstantialis: super por ἐπί (epi); substantialis por οὐσία (ousía, “essência” ou “substância”). Portanto, o pão da “nova substância” ou “essência”. Porém, a exegese jeronimiana é, por assim dizer, mista, visto que o étimo que lhe subjaz é o particípio de épeimi1 “sobre + ser; sobreviver”. Ao grego ousía corresponde literalmente em latim essentia ou substantia. Este seria o pão superior, que está acima daquele que é simplesmente essencial e substancial, isto é, Cristo, o pão da ceia eucarística.

“O pão de amanhã”

A despeito das ocorrências do particípio de épeimi2, entendo que deve ser dada razão à reserva de Ratzinger e ao testemunho de Orígenes. Temos um hapax. E a interpretação sugerida (“o pão de amanhã”) não só não está em harmonia com o modo de vida dos discípulos como, muito menos, com o ensino de Mestre, em especial com o expresso neste longo discurso. O texto e o contexto viabilizam esta interpretação tradicional: orar pelo sustento do dia-a-dia, um dia de cada vez, é a forma certa de confiar em Deus, sem a antecipação ansiosa pelo dia de amanhã, que é típica dos pagãos, como Jesus explicita de modo mais claro um pouco mais adiante (Mat. 6.25-33). Porque havemos de estar ansiosos e preocupados com o que havemos de comer, beber e vestir amanhã? Aprecie-se o conselho final (vv. 32-33):

πάντα γὰρ ταῦτα τὰ ἔθνη ἐπιζητοῦσιν· οἶδεν γὰρ ὁ πατὴρ ὑμῶν ὁ οὐράνιος ὅτι χρῄζετε τούτων ἁπάντων. Ζητεῖτε δὲ πρῶτον τὴν βασιλείαν [τοῦ θεοῦ] καὶ τὴν δικαιοσύνην αὐτοῦ, καὶ ταῦτα πάντα προστεθήσεται ὑμῖν. Μὴ οὖν μεριμνήσητε εἰς τὴν αὔριον, ἡ γὰρ αὔριον μεριμνήσει ἑαυτῆς· ἀρκετὸν τῇ ἡμέρᾳ ἡ κακία αὐτῆς.

Com efeito, todas estas coisas procuram os gentios. O vosso Pai celeste sabe bem que tendes necessidade delas todas. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas elas vos serão acrescentadas. Portanto, não fiqueis preocupados com o amanhã, porque o amanhã já terá as suas próprias preocupações. Suficiente é para o dia[2] o seu próprio mal.

Palavras claras. A petição pela provisão diária é a de uma vida cristã simples, rica ou pobre (medite-se nas palavras do apóstolo Paulo em Filipenses 4.12-16), sabedora de que não pode confiar nas circunstâncias e nos recursos materiais. Estes podem existir ou não, ser proveitosos ou falhar de um momento para o outro. Antes, confia-se a Deus e reconhece que este é a fonte donde tudo provém, dadora de tudo quanto é necessário no momento em que necessário é. É um duplo desafio: por um lado, a uma fé não cega, mas que se traduz numa confiança absoluta fundada na certeza de que Deus é o Pai, e o Pai do céu, que, de forma e em medida mais perfeita do que os pais da terra, amam os filhos; por outro, a uma vida de mente tranquila, que frui o dia que corre. Horácio, na Roma pagã, imbuído de sabedoria epicurista mas num horizonte sem deus, não o expressara melhor décadas antes, na célebre ode 1.11, em que aconselhava a destinatária poética, Leucónoe, a não procurar adivinhar o futuro, devendo antes conformar-se com o dia de hoje e com o que este traga, ou não traga: carpe diem, quam minimum credula postero “colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã”[3].

Mais à frente, Jesus retoma o tema do pão. Estamos ainda na mesma lição (Mat. 7.9). Dar pão é marca, atributo de um pai; mais, de um pai que ama. Os pais da terra – diz – não dão pedras aos filhos, ao pedirem-lhes estes pão. Esta razão justifica a tese dos versículos do capítulo 6: Deus é Pai, o Pai por excelência. E confirma logicamente, em meu entender, a petição pelo pão diário.

Como quer que seja, falta-nos o texto aramaico das reais palavras de Jesus, que –aspecto que deve ser realçado – nesta língua as teria proferido, e não em grego. No silencia dele temos apenas a mediação grega e é só a partir destas que se constroem as hermenêuticas.

[1] Sobre a oração 17. Teólogo cristão de Alexandria (184/185 – 253/254 a.C.), escritor pródigo, foi um dos mais notórios cultores da hermenêutica alegórica das Escrituras. Nesta perspectiva, entre as várias abordagens interpretativas dos textos, o superior e mais perfeito era o alegórico, aquele pelo qual o texto comunica um sentido moral e espiritual, não discernível numa leitura imediata e literal.

[2] Traduzi de raiz o passo, por a versão BPT não me parecer suficientemente satisfatória. Frederico Lourenço interpreta e acrescenta bem, para completar o sentido da frase, <de hoje>. Pois é do hoje que Jesus fala.

[3] Conforme a tradução de Pedro Braga Falcão, Lisboa, Cotovia, 2008.

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