António de Oliveira Salazar, com ou sem novos biógrafos, continua a enriquecer o seu curriculum académico e político com “obra” que nunca realizou.
Caiu-me recentemente, num blogue a que por vezes acedo, um artigo de uma professora da Faculdade de Direito de Lisboa, já com três anos, em que, num conjunto de referências históricas sobre a Faculdade, se afirma.
“O risco de confusão entre Ética, Direito e Política é maior nas Faculdades de Direito. Criada pela República, o primeiro Diretor da Faculdade de Direito de Lisboa foi Afonso Costa, destacado republicano, Ministro da Justiça e Culto e mais tarde das Finanças; a Faculdade foi encerrada em 1928 por desentendimentos com o novo Governo, era Oliveira Salazar Ministro das Finanças…”(i)
Conviria em ambos os casos sermos mais precisos. Por um lado, sob a República, que não era um “Governo”, mas um regime, a Faculdade de Direito de Lisboa foi criada em 1913 através de uma “disposição parasitária” da proposta de Orçamento Geral do Estado da iniciativa de Afonso Costa, na altura Presidente do Ministério e Ministro das Finanças.(ii) Por outro, houve vários Governos na ditadura militar que se seguiu à Primeira República e preparou o Estado Novo e foi um deles que, através do Decreto nº 15 365 de 14 de Abril EXTINGUIU (não se tratou de “encerrar”) não por “desentendimentos com o Governo” mas no quadro de uma reorganização geral do ensino, a Faculdade de Direito de Lisboa.
Ministério da Instrução Pública – Secretaria Geral
Extingue a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Letras da Universidade do Pôrto e a Faculdade de Farmácia e a Escola Normal Superior da Universidade de Coimbra – Extingue igualmente o Liceu da Horta e as Escolas Normais Primárias de Coimbra, Braga e Ponta Delgada – Limita, a partir do próximo ano lectivo, a matrícula nos liceus de Lisboa, Pôrto e Coimbra – Determina que, desde o próximo ano lectivo, só seja permitido o funcionamento dos cursos liceais de letras e sciências nas classes cuja matrícula atinja, pelo menos, dez alunos.
Mas Salazar era Ministro das Finanças deste Governo ? Não, não era, não, entrou no dia 27 de Abril de 1928 no Governo que se formou a seguir a este, para exercer o cargo de Ministro das Finanças, como sabem os historiadores e os devotos da sua memória, e durante muito tempo toda a população foi obrigada a saber.
Quem foi o Ministro da Instrução Pública que propôs o decreto de extinção? Curiosamente, um deputado constituinte (1911) eleito pelo Partido Republicano, de seu nome Alfredo de Magalhães que viria a desempenhar vários cargos políticos na I República, incluindo o de Governador – Geral de Moçambique e que, expulso do Partido Democrático de Afonso Costa, viria a ser Ministro da Instrução Pública de Sidónio Pais. Médico, Professor da Faculdade de Medicina do Porto, mais tarde Director da Faculdade, era Reitor da Universidade do Porto quando foi nomeado novamente Ministro da Instrução Pública no último governo da ditadura militar presidido pelo General Òscar Fragoso Carmona,(iii) que exercia também funções como Presidente da República e que seria confirmado nestas no princípio de 1928 por eleição “popular” a que foi o único a concorrer.
Carlos Manuel Gonçalves assinala que estas medidas “se inseriam numa estratégia de desmantelamento das realizações da I República na instrução pública” e que “Se tivermos presente que a Faculdade de Direito de Lisboa, onde preponderavam, como professores, políticos importantes da República, como por exemplo Afonso Costa, funcionou como a escola do regime republicano parlamentar, então a sua extinção configurou-se nitidamente como uma medida política e não estritamente financeira” sendo que, por outro lado a extinção da Faculdade de Lisboa “era um sinal de agradecimento do poder em exercício pela intervenção directa dos professores na caminhada para o derrube da I República e para a preparação para a emergência do novo regime político”(iv).
Alfredo de Magalhães manter-se-ia fiel ao seu novo rumo político, aderindo à União Nacional, de que foi figura grada no Norte, exercendo o cargo de procurador à Câmara Corporativa e o de Presidente da Câmara do Porto. Mas não é certo que a extinção da Faculdade de Direito de Lisboa tenha sido ideia sua, tanto mais que em Agosto de 1927 tinha desmentido categoricamente rumores que corriam nesse sentido, segundo se lê nos Apontamentos para a História da Faculdade de Direito de Lisboa.(v)
Não deixa de ser curioso que o diploma só tenha sido aprovado no último Conselho de Ministros presidido por Carmona, que em 15 de Abril seria proclamado Presidente da República, com a presença de um Ministro das Finanças – Sinel de Cordes – que deixaria de o ser no Governo seguinte e que, por razões de saúde vinha sendo substituído interinamente, existindo a expectativa de que o seu sucessor na Presidência do Ministério viria a ser o Ministro da Guerra – Passos e Sousa – triunfador sobre os levantamentos militares de 3-9 de Fevereiro de 1927, e não, como efectivamente foi, o Ministro do Interior José Vicente de Freitas, que manteria a pasta do Interior e interinamente, a das Finanças.
Segundo os Apontamentos a Faculdade apenas em 31 de Março de 1928 teve notícia (pelo seu Director) de que estava a ser projectada a extinção, parecendo pois evidente que só no final da existência do Governo se considerou haver condições políticas para avançar e não podendo a medida ser relacionada com a vontade de afastar Afonso Costa, o que havia sido feito há um ano(vi). Entretanto e desde a criação da Faculdade de Lisboa que esta vinha integrando antigos Professores de Coimbra no seu quadro, de forma nenhuma identificados politicamente com Afonso Costa, tendo sido o primeiro Artur Montenegro, e, já no fim de 1927, o Ministro da Justiça da própria ditadura Manuel Rodrigues, que rompendo com o Governo que integrava, se apresentou ao serviço em 11 de Abril…
Marcelo Caetano que se formaria no ano lectivo em que foi decretada a extinção, e se via impedido de prosseguir para doutoramento, nunca escondeu que não acreditava no “pretexto” de fazer economias através da extinção da Faculdade de Direito de Lisboa. Quanto à possível vontade de agradar a certos sectores de Coimbra através da extinção opta por transcrever nos seus Apontamentos uma moção da Faculdade de Direito de Coimbra lamentando a extinção, não deixando de registar que esta manifestação de solidariedade era “tanto mais significativa e apreciada quanto é certo que ao zelo excessivo de alguns dos seus admiradores se atribuía a extinção da escola de Lisboa”.
Uma frase da moção aprovada em Coimbra poderá não ter sido muito apreciada em Lisboa:
Para o caso de não ser restabelecida a Faculdade de Direito de Lisboa, a Faculdade de Direito de Coimbra declara que receberá com o mais vivo prazer os professores da Faculdade extinta que aqui sejam colocados
Uma vez que de algum modo parecia traduzir uma condescendência de algum modo insultuosa para professores que na sua maioria formados em Coimbra se tinham apresentado a provas públicas em Lisboa ou, que, já professores com provas dadas em Coimbra, tinham pedido transferência para Lisboa.
Os professores de Lisboa não eram “adidos” à procura de colocação, pelo contrário haviam apresentado requerimento pedindo a sua DEMISSÃO, pedido que uma nota oficiosa do novo Ministro da Instrução Pública, Duarte Pacheco, que prometia ponderar a situação criada solicitou fosse retirado. O Senado da Universidade Clássica solidarizou-se com a faculdade, o Vice-Reitor, o Professor de Direito Pedro Martins pediu a exoneração e o próprio Director da Faculdade, Abranches Ferrão, pediu a exoneração. Segundo Marcelo Caetano, foram Alberto da Rocha Saraiva, que aceitou no ensejo “servir como Director” sem ser nomeado e Carneiro Pacheco que mantiveram o diálogo por parte da Faculdade.
O disposto no Decreto nº 15 365 não é inteiramente alheio ao pensamento redimensionador da Administração Pública exposto numa comunicação de Salazar ao Congresso das Associações Empresariais de Dezembro de 1923, onde defendeu a “concentração de serviços” a exemplo das empresas, e sobretudo ao de Armindo Monteiro, apresentado na mesma ocasião com larga soma de exemplos, sem sonhar que um dia a Faculdade em que se formara e se doutorara seria com argumentos semelhantes posta em causa(vii). Fernando Emygdio da Silva que em Janeiro do ano seguinte defenderia uma revisão de despesas públicas “semelhante” haveria de referir que Armindo Monteiro foi em 1928 o mais aguerrido defensor da Faculdade extinta.
O Decreto nº 16 044, de 13 de Outubro de 1928 que consagrando uma Lei Orgânica das Faculdades de Direito comum a Coimbra e Lisboa revogou o Decreto nº 15 365 na parte relativa à Faculdade de Direito de Lisboa e desagravou esta inteiramente:
Em todos os países civilizados, a capital, centro de actividade jurídica e administrativa do estado, possui, pelo menos, uma escola de direito.
Lisboa, capital da Nação, tendo a décima parte da população do País e, sem dúvida, a mais elevada percentagem de população culta, reunindo apreciáveis e numerosos elementos de estudo, estava naturalmente indicada para sede de uma Faculdade de Direito.
A justificar a existência desta, a mostrar que ela corresponde a uma necessidade profunda, está a sua enorme frequência, que no último ano lectivo atingiu 642 alunos, a maior de todas as nossas escolas superiores.
O quadro do respectivo corpo docente encontra-se, a bem dizer, completo e nêle se contam professores eminentes e alguns dos nossos mais distintos jurisconsultos.
O ensino do direito em Lisboa criou assim raízes que já não é fácil arrancar sem grave prejuízo para legítimos interesses de uma parte muito importante da população do País.
O decreto que extinguiu a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa não foi precedido de qualquer relatório justificativo e as razões então apresentadas deverão sobretudo filiar-se em defeitos de organização que encontram remédio eficaz no regime constante do presente diploma e noutras medidas decretadas por êste Govêrno.
Quanto à economia resultante da extinção da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a verdade é que tal economia não só seria muito pequena, dada a deminuição da receita proveniente das propinas, como, e por muito tempo, mais aparente do que real, pois, sendo as despesas com uma Faculdade de Direito quási exclusivamente despesas de pessoal, aquela extinção determinaria não o desaparecimento mas simplesmente uma deslocação das respectivas verbas no orçamento.
Dentro da nova lei orgânica e ambas submetidas às mesmas regras fundamentais, as duas Faculdades de Direito terão ensejo de manifestar o seu diverso cunho e vocação, servindo, numa colaboração harmónica e equilibrada, as exigências do interêsse nacional.
Restabelecendo a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o Govêrno tem pois a consciência de bem servir os legítimos interesses da instrução superior, devendo notar-se que o faz dentro das verbas inscritas no orçamento vigente do Ministério da Instrução Pública, cujas despesas foram severamente reduzidas.
está assinado por pelo Presidente do Ministério e Ministro do Interior, José Vicente de Freitas, que assinara o diploma de extinção(viii) e por todos os Ministros, incluindo o Ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar e o obreiro do compromisso, o Ministro da Instrução Pública, Duarte Pacheco, amigo pessoal de Salazar e que passava por ter sido o instrumento do convite para que este ocupasse a pasta das Finanças.
Conhecem-se mal as circunstâncias em que foi decidida a extinção, e quem a pressionou, designadamente “admiradores” da Faculdade de Coimbra, e pouco mais se conhece sobre a respectiva revogação, sendo de notar que a forma como a questão foi resolvida veio a reforçar Salazar, que executava o seu primeiro Orçamento Geral do Estado sem deficit, com uma previsão de superavit de apenas 1 000 contos e possivelmente a facilitar o seu relacionamento com as elites lisboetas.
Logo que a questão foi resolvida Armindo Monteiro viria a ser nomeado Director-Geral de Estatística no Ministério das Finanças e iria também colaborar directamente com Salazar noutras áreas.
Notas
(i) A fiscalista Ana Paula Dourado.
(ii) Hoje em dia as Leis do Orçamento estão repletas, como se sabe, de “Disposições parasitárias”. É interessante ler a conferência de Fernando Emygdio da Silva “A Faculdade de Direito de Lisboa – os seus primeiros dias“, proferida na sessão solene de encerramento do ano lectivo de 1956-1957, publicada em Conferências e Mais Dizeres”, Vol I, 1963, pp 207-308.
(iii) Wikipédia: Alfredo de Magalhães
(iv) Emergência e Consolidação dos Economistas em Portugal, Edições Afrontamento, 2006, 153-154.
(v) Da autoria de Marcelo Caetano e publicados em 1961 na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
(vi) Recorda Marcelo Caetano nos Apontamentos que “Pelo Decreto de 12 de Março de 1927 foi demitido o Dr. Afonso Costa do cargo de professor da Faculdade. Na reunião de 21 desse mês, o Conselho, tomando conhecimento do decreto, deliberou, por maioria, apresentar ao Governo o seu protesto pelo facto de a demissão ter sido imposta independentemente de processo disciplinar”,
(vii) Ver Armindo Monteiro, uma Biografia Política, de Pedro Aires Oliveira, 2000, Bertrand Editora.
(viii) E que viria, enquanto Ministro do Interior, a assinar em 6 de Agosto uma portaria de constituição da Secção Nacional Portuguesa da Comissão Internacional Permanente dos Congressos Internacionais de Ciências Administrativas em que quatro dos sete membros nomeados eram professores da Faculdade de Direito de Lisboa, sendo um deles Alberto Rocha Saraiva.