Após o fim da ditadura sidonista e do esmagamento dos movimentos insurrecionais monárquicos a formação de governos e de convergências parlamentares na I República foi marcada por sucessivas propostas de reformas tributárias que geralmente não chegaram à fase de aprovação(i).
Constituiu excepção a Lei nº 1368, publicada em 1922 por iniciativa de um Governo do Partido Democrático, sendo Ministro das Finanças Vitorino Guimarães(ii) que, na parte que é relevante para o presente texto instituía nos artigos 47º a 57º um “imposto pessoal de rendimento”, com taxas crescentes, que poderiam ir até 30 %. Um “escândalo” para a época.
No ano seguinte teve lugar nos primeiros dias de Dezembro um Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal em que para a secção relativa a redução de despesas públicas foram convidados a apresentar comunicações António de Oliveira Salazar, da Faculdade de Direito de Coimbra, que apresentou, com data de Outubro, uma comunicação sóbria, cingida ao tema, e com poucas propostas de concretização, e Armindo Monteiro, da Faculdade de Direito de Lisboa e administrador do Banco Português do Continente e Ilhas, que ampliou o tema para tratar de “A Questão do Equilíbrio Orçamentário”, multiplicando propostas de concretização no que foi qualificado como “um verdadeiro programa de governo”, e referindo também a questão dos impostos, em que se pronuncia, em total sintonia com as “forças vivas”, contra as alterações aprovadas em 1922. Defensor da descentralização, defendia também que as entidades autónomas criassem as receitas necessárias ao equilíbrio das suas finanças. Em Janeiro de 1924 seria Fernando Emygdio da Silva a proferir perante a Associação Comercial de Lisboa uma Conferência sobre “Revisão de Despesas Públicas”, em que elogiou as teses de Armindo Monteiro, cuja carreira na FDL patrocinara, tendo-lhe sido prometido que o texto da conferência seria integrado nas Teses do Congresso de Dezembro de 1923 (não foi).
As associações empresariais tentavam chamar a atenção para a necessidade de redução das despesas públicas como alternativa ao agravamento fiscal, e o Congresso foi aberto pelo então Presidente do Ministério Ginestal Machado, do Partido Republicano Nacionalista que contava suprimir o “imposto pessoal de rendimento”, que a administração fiscal aliás estava pouco motivada para tentar liquidar dada a controvérsia de que era alvo.
Que pensava António de Oliveira Salazar sobre a controvérsias fiscais? Na colectânea de escritos de Salazar publicada por Manuel Braga da Cruz como Inéditos e Dispersos escreve o organizador que “entrou a fazer parte do corpo redactorial da Revista de Legislação e Jurisprudência, em Maio de 1922, tendo sido então encarregado da secção de Direito Fiscal, que assumiu a par da regência não só das anteriores cadeiras anuais(iii), mas também das de Economia Social (no primeiro semestre) e de Estatística (no segundo semestre, substituída a partir de 1924 por Direito Fiscal).“
Assim o economista António de Oliveira Salazar vai evoluindo para fiscalista, que por um lado assegura a resposta a consultas de direito fiscal na Revista de Legislação e Jurisprudência, mas que por outro também se mostra muito atento aos efeitos económicos dos impostos e a questões de justiça social.
Percebe-se que depois da primeira nomeação como Ministro das Finanças em 1926 e regresso a Coimbra ao fim de cinco dias, uma vez que era:
necessário remodelar o actual regime tributário de modo que, sem diminuição da respectiva receita orçamental, se efectue uma mais justa e equitativa distribuição do imposto, se concedam todas as possíveis facilidades de pagamento e se isentem os contribuintes de uma parte das múltiplas obrigações fiscais que hoje os oneram sem prejuízo dos elementos de informação imprescindíveis para a elaboração dos lançamentos.
a Portaria de nomeação de uma comissão encarregada de:
estudar as bases de para a revisão e remodelação das contribuições e impostos do Estado, com excepção dos aduaneiros e daqueles que tiverem aplicação especial ou não forem dependentes do Ministério das Finanças
assinada em 24 de Julho de 1926 e publicada em 10 de Agosto, tenha determinado que serviria de Presidente o Dr. António de Oliveira Salazar, lente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e antigo Ministro das Finanças.
A composição da comissão incluía o juiz auditor do Ministério das Finanças e três quadros do Ministério, para além de outro que serviria como secretário, e sete representantes de associações empresariais ou de proprietários.
A autoria integral do parecer é atribuída por Franco Nogueira a Salazar. Em todo o caso é curioso que o Presidente da Comissão ressalve quanto ao imposto pessoal de rendimento a sua posição própria, ao dar conta que a comissão:
Resolveu suspender por três anos o imposto pessoal de rendimento, criado pela lei nº 1368, nos artigos 47º a 57º .
substituindo-o provisoriamente por um Imposto Complementar.
Entre outros passos, o Relatório da Comissão contém as seguintes afirmações.
Manifestou-se de facto a maioria da comissão um pouco hostil ao imposto pessoal de rendimento, por ser pessoal e também por ser progressivo, entendendo que a personalidade ou não é mais que um vago desejo inexequível ou conduz à chamada inquisição fiscal, e a progressividade, ao menos tão violenta como era na lei nº 1368, é um princípio injusto e leva praticamente à confiscação da riqueza dos melhores contribuintes.
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Estudado o caso do nosso imposto pessoal de rendimento, verificou-se que a sua execução – se é que se pode dizer que foi executado – é tudo quanto há de mais arbitrário, irregular e deficiente…Sabe-se que o imposto é quase só pago por funcionários cujos proventos foram declarados pelas repartições públicas. A restante massa dos contribuintes declarou o que quis, porque não se fez fiscalização nenhuma, ou não declarou nada e não foi importunada por isso.
No entanto, uma nota assinada “Oliveira Salazar”, junta ao Relatório uma extensa declaração de que se transcreve:
Se a comissão tem votado simplesmente a abolição do imposto pessoal de rendimento, eu não podia de modo algum acompanhá-la nesse voto, pois considero a abolição do imposto pessoal de rendimento um retrocesso no nosso sistema fiscal…Tudo o que se lhe tem objectado não impediu que o imposto pessoal de rendimento estendesse sucessivamente o seu domínio: pode dizer-se hoje o imposto de todos os povos civilizados.
Independentemente de pontos que podem dividir-nos e não conseguem o assentimento geral, um requisito há que poucos negam ao imposto – a sua adaptação às condições pessoais do contribuinte. Se é necessário procurar por esse caminho uma melhor realização da justiça é melhor dizer que não pode dispensar-se o imposto de rendimento.
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Penso que com o imposto pessoal de rendimento, como o temos pela lei nº 1368, com algumas modificações, a nossa tributação directa deve ficar, ao mesmo tempo que razoável e justa, suficientemente elegante e simples …
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A execução da lei nº 1368 nesta parte foi o que ficou dito e nada há a acrescentar, a não ser que não se demonstrou que a lei fosse inexequível, mas simplesmente que os seus executores a não souberam ou não puderam executar.
É certo que os que crêem na eficácia de um sistema atribuem sempre o seu insucesso a quem o executa e não a vícios intrínsecos que o comprometem, mas este não é uma novidade do mundo, e outras modalidades mais intrincadas que a nossa têm tido regular execução.
Hão-de saber-se as razões do nosso fracasso e por aí melhor se poderá o Governo orientar. Pode dar-se o caso de as repartições de finanças não comportarem esse novo serviço ou não estarem habilitadas a fazê-lo no presente momento. É porém isso questão de ordem diferente e pode perfeitamente remediar-se durante a suspensão do imposto.
A propósito ainda do relatório concluído vieram a verificar-se queixas de Salazar vertidas nos artigos que foi publicando no jornal Novidades em 7, 11 e 13 de Abril de 1928 na sequência de outros que no ano anterior colocavam reservas à execução orçamental de Sinel de Cordes: o Ministério das Finanças não tinha assegurado a publicação da versão integral do Relatório, permitindo que fossem aprovadas medidas, alegadamente estribadas nos trabalhos da Comissão, que não correspondiam integralmente às suas conclusões, e em particular descartara a proposta de suspensão do imposto pessoal de rendimento substituindo-o provisoriamente por um imposto complementar, decretando em vez disso o Governo a sua extinção.
No ultimo dos artigos publicados no Novidades antes da sua segunda chamada ao Ministério das Finanças, isto é em 13 de Abril de 1928 o articulista reage vivamente, e com um fraseado político pouco usual nas suas intervenções, contra esta extinção, que considera uma “inabilidade política” (sem a qualificar expressamente como manifestação de miopia dos possidentes como talvez pudesse), atribuindo-se uma vocação arbitral que também ensaiará mais tarde com a criação da organização corporativa (e que sairá frustrada pelas mesmas razões).
Há muito que penso que certas reformas que na nossa sociedade o tempo tornou fatais, convém mais que as façam as direitas, do que sejam chamadas a faze-las as esquerdas: porque a violência natural destas pode pôr em perigo princípios sagrados em que, para bem de todos, nunca poderá tocar-se…
As reformas fiscais de 1929 serão concretizadas dentro de uma preocupação essencialmente pragmática, de agilização da administração e simplificação das exigências aos contribuintes, o imposto pessoal de rendimento não será restabelecido, o imposto complementar continuará a chamar-se imposto complementar mesmo após a reforma dos anos 1950-1960, embora alargado em termos de âmbito e com a introdução de elementos de personalização, e só a partir de 1988 Portugal, com a criação do IRS / IRC, entrará para o elenco dos povos civilizados, a reter a definição do próprio Salazar.
Outra medida fiscal que veio de 1928 e estaríamos inclinados a associar ao afã reformador de Salazar foi a criação do imposto de salvação pública, incidente sobre os vencimentos dos funcionários públicos. Todavia no artigo de 11 de Abril do Novidades, Salazar critica esse imposto (cuja introdução parece ter resultado do impacto do fracasso de negociação do “grande empréstimo externo” junto da Sociedade das Nações referido no artigo anterior) e, já ministro, faz publicar no mesmo dia que o seu Decreto da Reforma Orçamental – 14 de Maio de 1928 – um Decreto que o desagrava(iv). O novo Ministro aproveitou todas as oportunidades para se demarcar do novo imposto, inclusive junto dos bancos estrangeiros que pretendeu contratar para colocar o desejado empréstimo externo, e aos quais comunicou que pretendia dispensar o novo imposto, mas o regime deste foi revisto em 1940 , e embora (julgo) deixasse de ser cobrado a seguir à II Guerra Mundial, ficou meramente suspenso mas não extinto, tendo sobrevivido a Salazar. O Decreto nº 709/73, que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 1974, ainda incluía um artigo ameaçador do seguinte teor:
Art. 4.º Continua suspensa no ano económico de 1974, e enquanto as condições do Tesouro o permitirem, a cobrança do imposto de salvação pública, criado pelo Decreto n.º 15466, de 14 de Maio de 1928, e que era arrecadado em harmonia com o disposto no Decreto n.º 30255, de 6 de Janeiro de 1940.
Nestas situações – não reversão da extinção do imposto pessoal de rendimento e eternização do imposto de salvação pública – parece poder afirmar-se que António de Oliveira Salazar veio, a partir de 1929, a desinteressar-se das posições que defendeu em 1927 e 1928.
Num ponto contudo – e já o assinalei num artigo publicado no Jornal Tornado(v) – o fiscalista se impôs nos primeiros anos – ao reservar-se a aprovação de “receitas novas que representem de qualquer modo um recurso ao contribuinte” e ao suprimir uma série de receitas municipais que obstavam ao comércio interno.
Mas também aqui a posterior multiplicação de organismos de coordenação económica que nem eram bem públicos nem bem privados veio a traduzir-se numa organização caótica de cuja clarificação pareceu igualmente desinteressar-se.
Notas
(i) Ver Luís Farinha: Cunha Leal, Deputado e Ministro da República – um notável rebelde, 2009, Assembleia da República e Texto Editora.
(ii) Diário de Govêrno | Quinta-feira, 21 de Setembro de 1922
(iii) Economia Política e Finanças, em cuja regência substituiu Marnoco e Sousa aquando do falecimento deste em 1916.
(iv) E que, citado em diplomas posteriores, ajudou a criar a ideia da paternidade de Salazar em relação a este imposto.
(v) A CIP e a fiscalidade empresarial