Deve ser reconhecida à “reforma orçamental” de 14 de Maio de 1928 (Decreto com força de lei nº 15 465) e ao seu autor, Oliveira Salazar, um conjunto de virtualidades, e algum grau de aprimoramento técnico.
Assim:
- as chamadas normas da contabilidade pública foram tornadas aplicáveis a todos os sectores e subsectores da Administração Pública;
- criaram-se os mapas do preâmbulo do Orçamento Geral do Estado para resumir a actividade dos sectores e subsectores que não o Estado;
- apontou-se para a centralização, não só orçamental, mas de gestão de tesouraria;
- instituiu-se uma classificação económica das receitas públicas baseada numa classificação elaborada particularmente no ano anterior em contexto académico pelo próprio Ministro;
- criou-se um direito de veto do Ministro das Finanças em relação não só às iniciativas de onde resultassem aumentos de despesa ou redução de receitas, mas também em relação àquelas, tendo carácter tributário, que criassem ou aumentassem receitas com sacrifício do contribuinte(i).
Em diversos momentos da nossa história financeira posterior, e na própria actualidade, tem-se concluído frequentemente pela necessidade de reforçar estas preocupações e de criar instrumentos adequados.
Embora correndo o risco de escandalizar os leitores, aponto também a definição do objectivo de equilíbrio orçamental – na forma como foi feita isto é assegurando o equilíbrio entre receitas e despesas ordinárias – como uma medida equilibrada e de boa gestão.
É que com este critério de equilíbrio era possível – ao contrário do que sucede com o actual Tratado Orçamental europeu – contrair empréstimos para financiar investimentos, e esta estratégia estava subjacente tanto ao empréstimo para o qual Sinel de Cordes pretendeu obter o apoio da Sociedade das Nações, apoio do qual Salazar comunicou publicamente que Portugal se desinteressava, como àquele através do qual, com o apoio do Banco Fonsecas, Santos e Viana, o novo Ministro procurou obter um montante equivalente do National City Bank de Nova Iorque, reservando no orçamento português espaço para o pagamento de serviço de dívida. Como já referi, grande erro de cálculo de Salazar, que não conseguiu garantir a participação dos americanos, o que explicará que durante décadas evite recorrer à dívida externa, e que o nível de desenvolvimento nos primeiros anos do Estado Novo tenha sido insatisfatório(ii).
Em todo o caso deve ter sido pelo menos intimamente humilhante para o Ministro ter de publicar no ano seguinte um novo Decreto com força de lei (o nº 16 670 de 27 de Março de 1929) que admitia que a Reforma Orçamental do ano anterior estava “incompleta” uma vez que não abrangia a reforma da despesa pública e que o muito trabalho produzido pelas Comissões e Junta de Reforma Orçamental tinha, por falta de tempo, ficado além das necessidades.
Com o novo diploma:
- aprovava-se uma classificação orçamental das despesas públicas, de carácter económico – administrativo, comum a todos os Ministérios;
- regulava-se a forma de preparação do orçamento das despesas segundo uma metodologia de tipo bottom-up;
- impunha-se aos directores e administradores dos serviços a obrigação de aplicar as verbas que fazem face às despesas dos seus serviços de modo a alcançarem um máximo de rendimento útil com o mínimo dispêndio possível;
- criava-se uma Intendência-Geral do Orçamento com uma estrutura ligeira(iii), que para além de vigiar pela observância da orientação anterior, deveria estudar as fórmulas mais económicas do emprego dos dinheiros públicos, propondo as modificações na organização e na técnica dos serviços que julgar necessárias ou convenientes para que seja observada a maior economia dentro da maior eficiência;
- concluía-se que, suficientemente garantida nas nossas leis a correcção jurídica das despesas, faltam em absoluto princípios ou instituições que disciplinem ou fiscalizem a sua correcção económica(iv).
Portanto uma preocupação com um óptimo económico que não vinha das formulações da escola austriaca sobre o “edonismo” ou “hedonismo”, lentamente assimiladas e ecoadas pelos doutores em Ciências Júridico-Económicas de Coimbra, mas das preocupações dos engenheiros, divulgadas em Dezembro de 1923 / Janeiro de 1924 perante as associações empresariais, por Armindo Monteiro (com referência à escola de Fayol) e Fernando Emygdio da Silva (com referência às escolas de Taylor e Fayol). Monteiro estaria marcado pelos ecos da intervenção de Fayol no Congresso Internacional de Ciências Administrativas de Bruxelas em 1923, Fernando Emygdio já tivera de estudar os Princípios Organização Científica do Trabalho de Taylor para o seu concurso de 1913 para a Faculdade de Direito de Lisboa, e falava da edonisação dos serviços. Salazar nem sequer tinha autores anglo- saxónicos na bibliografia das suas cadeiras.
O texto do Decreto de 1929 é quase todo da mão de Armindo Monteiro, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que viria a ser Subsecretário de Estado das Finanças de Oliveira Salazar, mas à data da redacção do Decreto era ainda apenas Director-Geral de Estatística, lugar que aceitara depois de revertida, com a assinatura do Ministro da Instrução Pública Duarte Pacheco, mas também com a do Ministro das Finanças a extinção da sua Faculdade, decidida sob pretexto de realizar economias(v).
Trata-se de um compromisso entre a visão que defendia que as “economias” passavam pela concentração de serviços, perfilhada por Salazar (que em Dezembro de 1923 evocava as vantagens da “concentração de empresas” para a defender) mas também na mesma altura por Monteiro e Fernando Emygdio (que contudo defendiam a descentralização) e a que sustentava que era preciso actuar também sobre a simplificação dos serviços e a eficiência do pessoal. Para sustentar esta visão integrada, acolhida no Decreto, o Ministro das Finanças difundiu para o Conselho de Ministros e para a imprensa um texto que veio a integrar no seu livro A Reorganização Financeira – Dois Anos no Ministério das Finanças 1928-1930(vi).
Nesse texto, que em certos aspectos remete expressamente para a experiência então em curso na Direcção-Geral de Estatística, formula-se uma curiosa crítica à ânsia reformadora:
Sob o ponto de vista da técnica dos serviços a ânsia reformadora que complicou impensadamente os formalismos uma vez por zelo excessivo de perfeição (não atingida aliás), outra vez pela simples justaposição de requisitos, condições, elementos e modelos que se inspiram em princípios reformadores diversos e são filhos de orientações contraditórias. Não se sabe por vezes a razão actual de exigências que certamente tiveram, que continuam, sem que delas se aproveite nada, a maçar o público, a maçar os empregados, a complicar o serviço das Repartições. O tempo forma estratificações nos serviços, que será necessário remover ou quebrar.
Nos anos 20 do Século XXI que presentemente vivemos, com os serviços do Estado causticados por sucessivas reformas administrativas, modernizações administrativas, reformas da administração pública, modernizações da administração pública, PRACEs , PREMACs, como soam actuais estas palavras escritas nos anos 20 do Século XX!
E podem ler-se também indicações quanto ao método a empregar nas reformas:.
Sendo por vezes necessário observar de fora o serviço por pessoas estranhas à profissão para a que avultem os defeitos dum sistema de trabalho e se desenhem aos olhos as novas maneiras do executar.
Contrapondo-se reformas de cima para baixo e de baixo para cima:
Quere-se com isto dizer que, se é possível fazer por uma vez e de cima para baixo a arrumação geral dos serviços nos Ministérios, est´ outra reforma que atinge a técnica, tem de fazer-se de baixo para cima, com método e sem descanso. Em compensação, sob o ponto de vista orçamental e das despesas, estas segundas reformas são mais interessantes que as primeiras.
Estando a viver-se a Revolução de Maio, poderia dizer-que que este caminho apontava para uma “revolução permanente”. No entanto ficou a dúvida quanto havia de Salazar e quanto havia de Armindo Monteiro neste programa e mesmo em diplomas posteriores, em cuja redacção que Monteiro já interveio enquanto Subsecretário de Estado.
Quanto à criação da Intendência-Geral do Orçamento, Fernando Emygdio da Silva, que já tinha abordado a questão na sua conferência de Janeiro de 1924, a seguir ao Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal, realizado no mês anterior, e haveria mais tarde de a relacionar com o modelo americano do Budgeting and Accounting Act aprovado pelo Congresso Americano em 1920 e assinado por Harding em 1921. Tanto a Executive Branch (Direction of Budget) como a Legislative Branch (General Accounting Office) se preocupavam com a eficiência das despesas públicas.
A Intendência corresponderia à Direction of Budget mas o Tribunal de Contas, recriado em 1930 não ficou restringido a um mero controlo de legalidade, uma vez que lhe incumbia também verificar se as condições dos contratos sujeitos a “visto” eram as mais vantajosas para o Estado. Tanto o TC português como o GAO, ambos Supreme Audit Institutions (Instituições Superiores de Controlo) viriam a integrar a INTOSAI.
Num conhecido discurso com o título “Política de verdade, Política de sacrifício, Política Nacional” proferido em 21 de Outubro de 1929, Salazar incluiria “no mesmo pensamento fundamental”:
A reforma do orçamento das receitas, a reforma do orçamento das despesas, a criação da Intendência do Orçamento, a próxima reforma da contabilidade, a obra de actualização e aperfeiçoamento da Estatística, que quando acabada eu consideraria uma das maiores e mais interessantes obras da Ditadura…
Todavia, a tão auspiciosamente criada Intendência – Geral do Orçamento, cujas funções ficaram a ser transitoriamente asseguradas pela Direcção-Geral da Contabilidade Pública, nunca foi instalada, ou seja, como dizia Marcelo Caetano, nunca passou do papel. Mas também nunca foi extinta, pois Salazar nunca deixou que a extinguissem.
A criação, a não – instalação e a não – extinção constituem um mistério que entendi justificar alguma averiguação, de que tenho vindo a dar conta.
Notas
(i) Longe de empurrar as entidades autónomas para a criação de receitas, como forma de “descentralização” ,manifestação conforme preconizado por Armindo Monteiro na comunicação apresentada em Dezembro de 1923 no Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal, Salazar proíbe em geral essa criação e elimina até – com a excepção dos casos de Gaia e Setúbal – o imposto municipal ad valorem que interferia com a circulação de mercadorias entre diferentes autarquias locais.
(ii) 1927: Quando Salazar (não) foi nomeado Presidente da Junta de Crédito Público, em 4 de Agosto de 2021.
(iii) Um intendente geral e dois adjuntos, requisitando às diversas repartições do Estado os funcionários estritamente necessários para a execução dos serviços.
(iv) Estou a transcrever o texto de 1929, mas será muito diferente hoje ?
(v) 1928: quando Salazar (não) extinguiu a Faculdade de Direito de Lisboa
(vi) Coimbra Editora, 1930.