Uma década à espera da instalação da Intendência
A circunstância de Salazar ter assinado, em Março de 1929, o Decreto que criava o organismo base da anunciada reforma do Orçamento da Despesa sem ter dado o menor passo para o pôr a funcionar não deixa de dar, hoje ainda, lugar a especulações, inclusive a de que seria essa a sua intenção desde o início.
O facto, a que muitas vezes se não atende, é que Salazar, tendo beneficiado para o Orçamento de 1928 dos contributos – propostas de valores e sugestões de medidas – das Comissões de Reforma Orçamental dos vários Ministérios, cujo trabalho elogiara, ficava por força desse Decreto de 1929, a ficar livre dessa colaboração, passando a ser a figura–chave da elaboração de todos os futuros Orçamentos anuais com o apoio da Intendência-Geral do Orçamento e transitoriamente – um transitoriamente que se eternizou – da já existente Direcção-Geral da Contabilidade Pública. De certo modo tornava-se dispensável a “ditadura financeira” de três anos que o Conselho de Ministros e os militares lhe haviam concedido no ano anterior.
Na altura, tanto quanto é possível reconstituir, talvez existisse a percepção, não pela redacção do Decreto mas pelo documento divulgado ao Conselho de Ministros e aos jornais que mencionava a experiência da Direcção-Geral de Estatística, que o diploma tinha contributos de Armindo Monteiro, que publicara mais sobre Finanças Públicas que o próprio ministro. No entanto Salazar, que Marcelo Caetano refere ter lançado uma manobra de ocultação da efectiva autoria do texto da Constituição Política de 1933 para que nenhum dos seus colaboradores a pudesse mais tarde reivindicará, nunca permitiu que se conhecesse a extensão em que Monteiro, quer quando foi seu Subsecretário de Estado em 1930 e 1931, quer antes (em relação a este Decreto de 1929 e talvez em relação a alguns diplomas tributários) quer depois (quando já transitara para a pasta das Colónias) foi autor material da obra legislativa publicada sob a égide do Ministério.
Também não era do domínio público – nem estava mencionado no diploma de 1929 – que a criação da Intendência-Geral do Orçamento se inspirava na lei americana aprovada pelo Congresso em 1920 e promulgada pelo Presidente Harding no início de 1921(i) (ii). Apenas Fernando Emygdio da Silva, Professor de Finanças da Faculdade de Direito de Lisboa, fazia por vezes essa referência, mas geralmente em conferências proferidas no estrangeiro.
Não será despiciendo referir que o ambiente não era tão propício a controvérsias sobre o Ministério das Finanças e em geral sobre instituições financeiras como o da Primeira República, e que Salazar mantinha a imprensa alimentada com informações sobre a sua acção, quer através de notas oficiosas, quer de reuniões com os directores de jornais, quer de entrevistas criteriosamente concedidas. Destes instrumentos, só as notas oficiosas não chegaram até aos nossos dias. Mas em si, e na medida em que o tema era a não – instalação da Intendência – Geral do Orçamento e não a revogação do diploma que a criara, não se tratava de matéria que mobilizasse a opinião pública.
Tendo deixado Fernando Emygdio publicados em vida quatro dos cinco volumes das suas Conferências e mais Dizeres(iii) encontrei nos seus textos de 1934 um lamento algo irónico sobre a explicação de que a Intendência-Geral não era instalada … por não se conseguir encontrar um Intendente-Geral. Ao mesmo académico coube em 1938 fazer em nome das Universidades um elogio público de Salazar comemorativo dos dez anos da sua chamada a Ministro das Finanças. Mais tarde proferiria na Academia das Ciências uma Lição sobre a reorganização financeira em que insistia em que das reformas de Salazar só não estava concretizada a criação da Intendência, todavia tão conforme ao seu pensamento…
Na altura o elogiado acumulava a Presidência do Conselho com os Ministérios das Finanças, da Guerra e dos Negócios Estrangeiros e geria, com a ajuda do seu antigo aluno de Coimbra, Capitão Santos Costa, nomeado Subsecretário de Estado, um esforço de redução do número de oficiais no activo, atingindo, explica Marcelo Caetano, muitos elementos considerados sustentáculos do regime. Salazar forçava assim uma redução que em 1923 dizia ser necessária mas não lhe cabia enquanto economista concretizar, mas sim aos políticos e técnicos. Acabou por se empenhar nela pessoalmente, agora como político, com a ajuda do “técnico” Santos Costa. Teria um Intendente-Geral força para o fazer ?
Também de 1938 é um texto de José de Araújo Correia(iv) que me parece importante transcrever:
Parece que esta instituição, se vingasse como órgão superior do Estado, seria um elemento muito útil da vida financeira portuguesa. E ela poderia ser alargada aquilo que ainda hoje falta: um corpo de especialistas para remodelação da técnica dos serviços, que, em conjunto com os diversos organismos, lentamente modificasse o modo de realizar com eficiência e rapidez todo o complicado trabalho de expediente, arquivo e correspondência, que constitue a tarefa de cada um.
Porque se não deu o desenvolvimento esperado à Intendência Geral do Orçamento?
Por falta de pessoal idóneo e imparcial que coibisse abusos e corrigisse erros?
Porque segundos pensamentos levaram o Ministro das Finanças a desempenhar, ele próprio, funções meticulosas e delicadas que o deveriam ser pela Intendência?
O Engenheiro José de Araújo Correia acedera ao Governo em 1928 como Ministro do Comércio, juntamente com Salazar, passara à Administração da Caixa Geral de Depósitos e viria a integrar a Assembleia Nacional até 1974, sempre com a análise das Contas Públicas. É de crer que conhecesse bem o Ministro das Finanças…
Este no entanto não atendeu à sensibilidade de Fernando Emygdio nem à de Araújo Correia: em 31 de Dezembro de 1938 dava o seu acordo a uma proposta que lhe fora apresentada pelo Director-Geral da Contabilidade Pública, António José Malheiro, criando internamente um “serviço da Intendência Geral do Orçamento” gerido por um mero chefe de secção, para coordenar a execução das tarefas de que a Direcção-Geral vinha sendo incumbida, particularmente no que se referia às despesas públicas, cuja classificação orçamental viria aliás a ser revista em 1939.
Aureliano Felismino: colocar a Direcção-Geral da Contabilidade Pública nos padrões apontados para a Intendência.
Este licenciado pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa (criada em 1930), assumiu-se como responsável por uma Revista de Contabilidade Pública dinamizada por um conjunto de quadros da Direcção-Geral e vê-se elevado em 1943 a Adjunto de António José Malheiro, a quem acaba por suceder aquando do falecimento daquele em 1947. Em 1943 profere na Sociedade de Ciências Económicas uma conferência em que defende que as funções cometidas à Intendência na elaboração do Orçamento poderiam com vantagens ser desempenhadas pela Direcção-Geral se esta ganhasse um maior conhecimento dos organismos integrados nos vários Ministérios.
Terá sido inspirada por si a criação em 1951 pelo novo Ministro das Finanças Artur Águedo de Oliveira, que fora Subsecretário de Estado de Salazar e era titular da Presidência do Tribunal de Contas, de uma Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência de Serviços Públicos(v) integrada por dirigentes de vários organismos e que adoptava os critérios de verificação / promoção de eficiência propostos há vinte anos para a Intendência. Esta no extanto não seria extinta.
A Comissão fez estudos durante três anos, produzindo outros tantos relatórios, que nunca tiveram despacho governamental, nem do seu presidente nominal – o Subsecretário de Estado das Finanças, António Manuel Pinto Barbosa, nem do próprio Ministro. Com a passagem de Pinto Barbosa a Ministro em 1955 deixou de se falar dela, mas Aureliano Felismino continuou a referir-se-lhe como existente e a inscrever anualmente no Orçamento uma verba que lhe era destinada, até que em 27 de Abril de 1961 um Decreto-Lei aprovava a nova Lei Orgânica da Direcção-Geral e um Decreto assinado somente por Salazar e Pinto Barbosa criava naquela uma Repartição do Orçamento com a função de “Estudar e propôr as formas mais económicas do emprego das dotações orçamentais”, afinal a missão da Intendência criada em 1929, da Comissão criada em 1951 e a de um Serviço de Organização e Métodos que esteve para ser criado no Ministério. Grande era a força dos Directores-Gerais naquela altura!(vi).
Marcelo Caetano: transferir a Intendência para a Presidência do Conselho
Já Marcelo Caetano, regressado do VII Congresso Internacional de Ciências Administrativas realizado em Berna em 1947 publica nesse ano(vii) um artigo com o título O Chefe do Governo e a organização dos seus serviços, onde defende o reforço da Presidência do Conselho, com entre outras medidas, a criação de uma Secretaria-Geral que passaria a integrar a Intendência – Geral do Orçamento. Quando entre 1955 e 1958 exerceu o cargo de Ministro da Presidência e conseguiu que Salazar deixasse criar uma Secretaria-Geral a Intendência não figurava na estrutura desta, mas acabou por ser criada uma Inspecção Superior dos Planos de Fomento a que haveria de suceder em 1962 um Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, responsável pela preparação dos Planos de Fomento. Nomeado em 1968 como Presidente do Conselho de Ministros, emite em Março de 1969 um diploma assinado apenas por si em que cria um lugar de Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho e estabelece que este “poderá por despacho conjunto do Presidente do Conselho e do Ministro das Finanças, ser incumbido da Intendência – Geral do Orçamento”(viii).
Longe porém de a Intendência ser transferida para a Presidência do Conselho, foi o Secretariado Técnico que veio a ser transferido nas últimas semanas do Governo de Marcelo Caetano para um Ministério das Finanças e da Coordenação Económica reunindo Finanças e a parte de coordenação geral do Ministério da Economia. Em Outubro de 1974 o dito Secretariado Técnico foi redenominado Secretariado Técnico do Planeamento (a partir do ano seguinte Departamento Central de Planeamento) e incumbido de exercer funções de Intendência-Geral do Orçamento em relação aos Investimentos dos Planos de Fomento, referência que só desapareceu na lei orgânica do Departamento de Prospectiva e Planeamento criado em 1995. Não se estranhe a continuidade entre o período de Marcelo Caetano e o pós-25 de Abril, ela é muito marcada em áreas como o planeamento e a reforma administrativa.
António de Sousa Franco: repensar a Intendência em 1974 e extingui-la 22 anos depois.
No Manual de Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I, publicado mesmo em cima do 25 de Abril e cujo texto, já quase integramente impresso, ainda veio a sofrer algumas adaptações, Sousa Franco alinha prós e contas de uma eventual entrada em funcionamento da Intendência-Geral do Orçamento, no que à preparação dos Orçamentos diz respeito, rejeitando-a contudo em relação à fiscalização das despesas, em que seria fonte de conflitos.
A partir do momento em que mais tarde, assume a Presidência do Tribunal de Contas, começa a defender que este passe a realizar auditorias de gestão como outras das instituições superiores de controlo filiadas na INTOSAI, onde figuram não só Tribunais de Contas mas também organismos de auditoria sem carácter jurisdicional, como o até 2004 denominado General Accounting Office, criado em 1921 na lei americana como órgão da Legislative Branch na mesma ocasião em que a Direction of Budget que inspirou a Intendência-Geral do Orçamento portuguesa foi criado na Executive Branch.
Regressado ao Governo no tempo de António Guterres não só introduziu na organização e processo do Tribunal de Contas os ajustamentos desejados mas, em Setembro de 1976, pôs fim à existência fantasmática da Intendência-Geral do Orçamento que se arrastara por 67 anos e meio, e redenomina a Direcção-Geral da Contabilidade Pública como Direcção-Geral do Orçamento.
Notas finais
Depois de manter o silêncio desde 1938, Fernando Emygdio da Silva veio a revelar, alguns meses depois do falecimento de Salazar em 1970, ser ele o autor material do articulado do diploma de 1929 que aprovando a reforma do Orçamento da Despesa, criou a Intendência-Geral do Orçamento.
Segundo narra – o texto da conferência foi publicado em separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa – o Ministro das Finanças pedira a Armindo Monteiro um projecto de reforma do Orçamento da Despesas deixando claro que consideraria natural que o seu colaborador pedisse contributos ao Professor de Finanças de Lisboa de que Monteiro era amigo e vinha patrocinando a sua carreira. E Fernando Emygdio, tal como tinha defendido em 1923, transpôs, sem a menor objecção do Ministro, a Direction of Budget da lei americana para a portuguesa.
Terá aqui pesado possivelmente uma questão de senioridade, uma vez que Fernando Emygdio era mais idoso do que Salazar e fizera parte do júri nas suas provas de acesso ao professorado, parecendo ter mantido sempre o distanciamento com o novo Professor de Coimbra. Extinguir a Intendência – Geral do Orçamento não só prejudicaria a lenda do salvador das Finanças Públicas mas seria uma desatenção para com o real autor da medida.
Não me parece contudo que o episódio deva ser levado a crédito de Salazar.
Notas
(i) Minhas Memórias de Salazar.
(ii) O que dá origem a que seja referenciada como lei americana de 1920 ou de 1921.
(iii) O V volume foi publico em 1975 pelos seus filhos (Fernando Emygdio da Silva faleceu em 1972),
(iv) Publicado no seu Portugal Económico e Financeiro, 1º volume.
(v) Cujo nome terá sido decalcado do Comité d’ Enquête sur le Côut et le Rendement des Services Publics francês criado em 1946. Foi criada pelo decreto nº 38 503.
(vi) A Comissão criada em 1951 apesar de instalada, nunca foi extinta.
(vii) Na Revista O Direito.
(viii) DL 48 931, de 27-3-1969. Julgo que tal despacho nunca terá sido publicado.