Os slogans do maio de 68 rejeitaram a política e colocaram o sonho, o desejo e a autonomia na ordem do dia. E a revolução, longe de ameaçar o capitalismo, ajudou a preparar o futuro deste sistema, com a globalização e o neoliberalismo.
Duas datas do século XX ficaram como ícones da luta social e política: as revoluções russa de 1917 e o maio de 1968, cujos 50 anos se comemoram agora. Foram acontecimentos em que as massas irromperam no cenário político, com repercussão mundial, assinalando mudanças substanciais no modo de viver. Foram confrontos com o sistema capitalista. Um deles – 1917 – resultou na construção da primeira experiência socialista estável e prolongada da história. O outro – 1968 – teve a marca de oportunidades perdidas (Jameson: 1991) e de uma grande reformulação no próprio funcionamento e organização do sistema capitalista.
Uma imagem parcial
O que ficou na memória popular,e da mídia hegemônica sobre o movimento de 1968 é a imagem do levante estudantil, juvenil, cujo resultado foi a ruptura com a maneira marcadamente hierárquica, convencional, que prevalecia até então. 1968 trouxe a informalidade, a quebra de padrões rígidos de comportamento, a liberdade de costumes (principalmente sexuais) e uma alegada tolerância em relação às diferenças. “Cada um na sua” é o lema que exprime aquelas mudanças, apontando para um individualismo que seria exacerbado nas décadas seguintes.
“É proibido proibir” talvez seja a bandeira de 1968 mais conhecida. Mas houve outras, com sentido semelhante. “A imaginação no poder”, ou “seja realista, exija o impossível”, foram outros; nos EUA surgiu o lema “make love not war” (faça amor, não a guerra), que se espalhou pelo mundo como bandeira pacifista e crítica do modo de vida estadunidense, trazendo embutida uma nova visão de mundo.
Estas bandeiras resultaram da luta social que vinha desde o final da Segunda Grande Guerra, e que se acelerarou nas décadas de 1950 e 1960, aprofundando a exigência por direitos civis, pela igualdade e pelo fim da discriminação racial. A luta anti-racista, contra a opressão da mulher e a resistência contra a guerra ganharam grande visibilidade num movimento cujo centro estava nos EUA e na Europa industrializada, que foram cenário de grandes eventos sinalizadores da força da luta popular.
Dois ocorreram nos EUA: em agosto de 1963, 200 mil pessoas se reuniram em Washington para ouvir o famoso discurso Eu tenho um sonho, de Martin Luther King, contra a discriminação racial; mais tarde, em abril de 1967, milhares de pessoas ocuparam a capital dos EUA na Marcha pela Paz, contra a agressão estadunidense ao Vietnã.
Em maio do ano seguinte, foi a vez de Paris e do levante que ficou impresso na história como o grande marco daquela década, o chamado movimento de maio de 1968.
A imagem de 1968 como ano revolucionário, difundida pela mídia e incorporada como um de seus traços definidores pelo sistema que os protagonistas de 1968 pensavam combater, é parcial e reflete o principal limite daquele movimento. A imagem de um maio juvenil encobre a forte luta operária daquele período, que precisa ser resgatada.
Maio foi tema de inúmeras interpretações e análises. Em um artigo de 1969 o historiador Eric Hobsbawn dizia que só em 1968 foram publicados, na França, 52 livros sobre o tema (Hobsbawn, 2003).
Em 1985, os franceses Luc Ferry e Alain Renaut resumiram as principais interpretações no livro Pensamento 68. Havia para todos os gostos. A direita e o governo francês de Charles De Gaule e George Pompidou viram nos acontecimentos um complô subversivo. Outros reduziram tudo a uma crise da universidade que, desde a década de 1950, havia crescido muito: o número de estudantes universitários foi multiplicado por três, chegando a 650 mil. Para intelectuais de renome (desde Edgard Morin até o direitista Raymond Aron) o que houve foi uma revolta juvenil, numa visão fortemente psicologista. Outros pensaram que foi sintoma de uma crise civilizacional, com o questionamento da sociedade de consumo (André Malraux) e o ressurgimento do niilismo anarquizante. Houve também aqueles que diagnosticaram um descontentamento político contra a longa permanência de De Gaulle no poder e contra o autoritarismo da III República francesa. Para os comunistas, por sua vez, era a luta de classes, refletindo a crise econômica (crescimento da economia em queda desde 1966) e o desemprego (que em 1968 era quatro vezes maior do que em 1964) (Ferry e Renaut: 1988).
Da política à cultura e ao comportamento
Hobsbawn disse que o final da década de 1960 foi um período “ruim para os profetas”. Acreditava-se, escreveu, ser “possível fazer uma revolução em um país industrial avançado em condições de paz, prosperidade e aparente estabilidade política.” Mas a “revolução não triunfou”, embora o regime político “mais orgulhoso e autoconfiante da Europa”, chefiado por De Gaulle, tenha chegado “à beira do colapso” (Hobsbawn: 2003).
O desafio é resgatar o que está oculto sob camadas de tintura midiática e mercadológica: o que de fato ocorreu? Como o mais extenso desafio enfrentado pela burguesia dos países capitalistas industrializados na segunda metade do século XX esvaiu-se em uma mudança cultural e comportamental substancial mas insuficiente para levar ao chão a Bastilha do capitalismo e fundar uma sociedade nova?
Os problemas que precisam ser investigados são múltiplos. Eles dizem respeito, entre outros, às mudanças no sistema capitalista e seu impacto na forma de vida social; a crise econômica e a resposta burguesa a ela; a incapacidade do movimento revolucionário em propor uma saída articulada e avançada para a crise.
A problemática política dos acontecimentos na França foi analisada por Eric Hobsbawn no artigo de 1969, que apontou duas fases da mobilização em Paris: a primeira, de 3 a 11 de maio, envolveu os estudantes; a outra, de 14 a 27 de maio, trouxe os operários para as ruas com a maior greve geral da história da França. O movimento popular manteve a iniciativa até 29 de maio, quando o governo De Gaulle – apanhado desprevenido – conseguiu retomar a iniciativa.
Hobsbawn destacou o papel dos comunistas. Uma frente popular sob hegemonia do Partido Comunista, que controlava a central sindical mais poderosa, seria a única “alternativa viável de governo”, escreveu. Mas aquela frente tinha muitos problemas, entre eles a morosidade dos aliados não comunistas. Além disso, lembra que o PCF não mobilizou as massas e perdeu a oportunidade histórica de formar um governo que reunisse as forças mais avançadas do país (Hobsbawn, 2003).
Não se pode esquecer que, naquela época, o movimento comunista ainda não se havia recuperado da crise aberta, em 1956, com o XX Congresso do Partido Comunista da URSS e sua opção pela coexistência pacífica e pela via eleitoral para o socialismo. Esse quadro foi agravado por acontecimentos como a ocupação soviética da Hungria em 1956 e pela condenação soviética (e depois repressão militar) da chamada “Primavera de Praga”, um movimento de abertura política na Tchecoslováquia. Na China, desde 1967, estava em curso a Revolução Cultural Proletária, cujo apelo à juventude causou grande impacto entre a esquerda juvenil no ocidente industrializado, fazendo de Mao Tse Tung um dos teóricos de algumas correntes estudantis de 1968.
A oposição ao comunismo pelos estudantes parisienses tinha raízes nessa crise. Naquela conjuntura renasceram entre eles tendências libertárias anarquizantes, traduzidas em slogans anti-autoritários e na denúncia de todas as formas de poder, e valorização da subjetividade e do desejo. um slogan dizia, por exemplo, “tomo meus desejos por realidade pois acredito na realidade de meus desejos”. Havia, nisso tudo, uma forte rejeição do comunismo.
Nesse quadro, ao hostilizar De Gaulle e também aos comunistas, os estudantes acabaram ajudando o próprio governo, fragilizando o movimento de massas, pois os operários, sob hegemonia comunista, não pensavam da mesma forma que seus jovens companheiros de jornada. Ao retomar a iniciativa, a tônica gaulista foi justamente o anticomunismo, registra Hobsbawn: ele “transformou a situação em uma defesa da ‘ordem’ contra a ‘revolução vermelha’” (Hobsbawn, 2003).
Estagnação, inflação e desemprego
O maio parisiense não foi um acontecimento isolado. Sua transformação em ícone do movimento ecoa a longa tradição revolucionária da capital francesa. A cidade convulsionada durante maio revivia protagonismos ancestrais, como 1848 ou a Comuna de Paris, de 1871, numa das principais capitais do mundo capitalista industrializado.
Mas aqueles acontecimentos não foram somente franceses. Naquela época, o forte crescimento econômico do pós guerra, na Europa e nos Estados Unidos, perdia ímpeto. Ao mesmo tempo, a nova geração – os filhos do baby boom do imediato pós guerra – cresceu embalada pela promessa de uma sociedade abastada, uma vida segura e um bem estar material crescente.
Promessa quebrada com a crise dos anos 60, devido à queda nas taxas de crescimento entre 1960 e 1979 em países como EUA, França, Alemanha Ocidental, Inglaterra e Japão. No conjunto, o crescimento dos países da OCDE caiu da média anual de 5,1% em 1960-1968 para 4,7% entre 1968-1973 e 2,6% entre 1973-1979. O próprio “milagre japonês” balançava: as taxas anuais médias de crescimento cairam de 10,4% entre 1960-1968 e de 8,4% entre 1968-1973, para 3,6% entre 1973-1979. Era o fim dos “anos dourados” do pós guerra, acumulando problemas e contradições que refletiam a acentuada queda na produtividade e na lucratividade nos países industrializados. Nos EUA, por exemplo, a taxa de lucro caiu de quase 6% em 1964 para algo em torno de 4,5% em 1970 (Harvey: 1992).
Contradições aprofundadas
A crise econômica acentuou as contradições que eclodiriam em maio de 68. A luta social e sindical crescia desde o final da guerra. Nos EUA, andou de braços dados com a luta contra o racismo e a opressão da mulher. Lá, diz o historiador Sean Purdy, durante o esforço de guerra, “muitas indústrias foram forçadas a contratar negros e rever classificações operacionais discriminatórias”. A resistência contra o racismo era muito forte entre os trabalhadores negros e apenas em um ano (1943) houve cerca de 242 motins raciais, “provocados por tensões econômicas e sociais relativas a emprego e moradia”, em 47 cidades, entre elas Detroit, “onde 34 pessoas (25 negros e nove brancos) morreram e 700 ficaram feridas” (Purdy: 2008).
Quando a guerra terminou, a burguesia estadunidense começou a manobrar para cercear o movimento operário, cuja derrota “preparou o terreno político para os tipos de controle do trabalho e de compromisso que possibilitaram o fordismo” (Harvey: 1992). Na época a presença comunista nos sindicatos estadunidenses era forte e havia representantes do Partido Comunista dos EUA em onze dos 35 sindicatos filiados à CIO (Congress of Industrial Organizations). Eles foram expulsos daquela organização entre 1949 e 1950 (Herling: 1965), preparando o caminho para a fusão daquela central com a AFL (American Federation of Labor), em 1955.
Esta fusão pode ser vista, diz Jameson, como fundamental “para o desencadeamento da nova dinâmica política e social dos anos 60”. A expulsão dos comunistas e a fusão (“que foi um triunfo do macarthismo”) consolidaram o “novo contrato social apolítico entre os empresários e os sindicatos”, criando “uma situação em que os privilégios da força de trabalho masculina e branca asseguram-lhe a precedência face às demandas dos trabalhadores negros, das mulheres e de outras minorias” (Jameson: 1991).
Desta forma, as contradições sociais que vinham das décadas anteriores se aprofundaram, alimentadas pela segregação racial e pela opressão da mulher. Elas foram enfrentadas por um forte movimento grevista que desmente a tese muito difundida – principalmente por teóricos de grande evidência naqueles anos, como Herbert Marcuse – do “aburguesamento” da classe operária e sua acomodação aos valores dominantes.
O pós guerra também foi um período de fortes mudanças na economia dos EUA, “afetando os trabalhadores em geral, mas especialmente as pessoas dos bairros pobres e negros das grandes cidades”. A indústria começou a se deslocar para lugares onde os trabalhadores eram menos organizados e a mão de obra mais barata. Primeiro, diz Purdy, “os subúrbios brancos das grandes cidades e depois para os estados anti-sindicais do Sul e eventuamente para outros países”, minando os ganhos dos trabalhadores (Purdy: 2008).
Nos EUA, a extensão da resistência dos trabalhadores pode ser medida pelas greves dos anos 1960 e 1970, com destaque para a grande greve de 200 mil trabalhadores dos correios de 1970. A luta era contra os patrões e o governo, e também contra os sindicalistas pelegos. “Movimentos ‘de base’ de mineiros e de caminhoneiros criticavam a burocracia, a corrupção e o conservadorismo dos seus líderes sindicais, conseguindo democratizar alguns aspectos do movimento sindical ligados às suas atividades profissionais” (Purdy: 2008).
Os governos John Kennedy e Lindoln Johnson, nos EUA, tentaram contornar estes problemas com um programa moderado de combate à pobreza. Mas seu “fracasso em resolver antigos problemas sociais, como o racismo”, provocou “a explosão de diversos movimentos sociais – por direitos civis, paz, liberdade sexual e cultural”. Entre 1963 e 1968 ocorreram 341 motins urbanos de negros em 265 cidades, diz Purdy. O movimento por direitos civis, diz ele, foi o “mais importante movimento social na história dos Estados Unidos”. O auge de suas mobilizações foi 1963, quando ocorreram mais de 1.412 manifestações; em uma única semana mais de 15 mil pessoas foram presas em protestos em 186 cidades (Purdy: 2008). A ligação entre a luta anti-racista e o protesto operário foi simbolizada pelo assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968: naquele dia ele estava em Memphis (Teneesse) justamente para apoiar uma greve de trabalhadores negros.
Nos EUA, naquela época, surgiram várias organizações de protesto, que fortaleceram o movimento black power e o nacionalismo cultural afro-americano. Elas estavam ligadas à luta dos trabalhadores. Nos anos 1970, a Liga Revolucionária de Trabalhadores Negros organizou metalúrgicos em várias fábricas de automóveis. Uma organização como o Partido dos Panteras Negras tinha, em 1970, segundo o FBI, a simpatia de 25% da população negra (aumentando para 43% entre os menores de 21 anos). “Justamente por causa dessa popularidade ampla, a organização foi esmagada, entre 1969 e 1971, pelo FBI com muitos dos seus líderes assassinados ou presos em ações policiais” (Purdy: 2008).
Greves na Europa
Na Europa, a situação não era diferente e o movimento grevista crescia por todos ao lados. Na França, foi de Decazeville (1961 e 1963), cidade industrial e de mineração no sul do país, a Nantes, a oeste, em 1964. Em abril de 1965, os 12 mil metalúrgicos da Peugeot e da Berliet, pararam; em fevereiro de 1967, a fábrica de aviões Dassault, em Bordéus, a oeste, parou; houve paralizações, naquele ano, em toda a região de Lyon, mais para o sul. Em março e abril de 1967 foi a vez dos metalúrgicos de St. Nazaire, próxima a Nantes; em janeiro de 1968, uma greve na fábrica de caminhões Saviem, em Caen, no norte, teve confrontos com a polícia. Estes são apenas alguns exemplos da luta operária cujo auge foi a grande greve geral de maio-junho de 1968.
Outro cenário da luta operária foi a Itália. Apenas alguns exemplos: em novembro de 1968 houve paralização de trabalhadores rurais em Ávola, Sicília, onde dois grevistas morreram em choques com a polícia. Em abril de 1969 uma paralização em Battiplaglia iniciou o movimento grevista no norte; seu centro foi a fábrica da Fiat, em Turim, e a luta se estendeu até dezembro, incluindo a greve geral de 3 de julho, contra o aumento dos aluguéis.
Assim, na época, o norte industrial italiano parou em conseqüência das greves, barricadas e conflitos. Um deles ocorreu em Maghera, um polo industrial que tinha então em torno de 60 mil trabalhadores, a meio caminho entre Pádua e Veneza. Ali, a greve começou em junho de 1969, com uma inovação: a reivindicação de salário igual para todos, inaceitável para os patrões e para os dirigentes sindicais. Quando os grevistas decidiram marchar sobre Veneza, houve choque com a polícia, com feridos nos dois lados; ao fim, a polícia se retirou e a multidão de 50 mil estudantes e operários marchou para a histórica cidade, onde ocuparam a Praça San Marco e dançaram até a madrugada.
Espontaneidade x liderança estruturada
Os acontecimentos de Maghera são significativos por juntar dois traços inspirados no movimento de maio em Paris – a mistura de luta e festa e as reivindicações fora do contexto tradicional das lutas operárias – com aquela que foi a caraterística própria do maio italiano: a união dos operários e dos estudantes.
Eles exemplificam o diagnóstico feito por Eric Hobsbawn trinta anos depois daqueles acontecimentos. Os “movimentos mais característicos de 1968”, escreveu, “idealizaram a espontaneidade e se opuseram à liderança estruturada e estratégia. Sua ideologia natural deveria haver sido o anarquismo” (Hobsbawn: 1998).
O maio de 68 assistiu assim à reestréia da ação direta na luta de massas, trazida pela nova esquerda e seus novos personagens da história – os estudantes, os negros, as mulheres e outras minorias minorias oprimidas. Alguns teóricos daquele movimento – com destaque outra vez para Herbert Marcuse – chegaram a defender a tese de que estes novos personagens seriam os substitutos, dali para a frente, do proletariado como coveiros do capitalismo…
Nos EUA, um aspecto marcante das lutas dos jovens nas décadas de 1960 e 1970 foi o pacifismo. Além da denúncia contra o imperialismo, havia uma razão muito concreta: muitos jovens estadunidenses não aceitavam participar da guerra contra o Vietnã. Essa rejeição levou a um desengajamento inédito, enfraquecendo o apoio popular à guerra. Milhares de jovens rasgaram as convocações que recebiam para alistar-se. Muitos fugiam; cerca de 50 mil foram para o Canadá para escapar ao serviço militar. “Até 1968, manifestações, motins e ocupações foram comuns em faculdades por todo o país. Várias grandes manifestações feitas em Washington entre 1967-1970 inflamavam a oposição à guerra, quebrando o consenso político nacional e enfraquecendo a resolução dos governos em continuar o conflito” (Purdy: 2008). Entre 1967 e 1971, o número de desertores passou de 47 mil para 90 mil.
As condições concretas de maio de 68
Não há roteiros pré-estabelecidos para os movimentos revolucionários: eles ocorrem em situações históricas concretas e singulares; são condicionados pela situação particular em que se encontram as classes sociais, pela correlação de forças entre elas e pela compreensão mais ou menos clara que os agentes sociais e políticos tem da situação concreta, das tarefas postas ao movimento e da capacidade de enfrentá-las e superá-las.
A luta de massas da década de 1960 é um exemplo. Ele envolveu dois movimentos distintos e confluentes – a luta de classes do proletariado e também a luta de negros, mulheres e jovens pela igualdade por reivindicações “específicas” – “identitárias”, diríamos hoje.
Por várias razões – que vão desde as articulações de governos conservadores e da direita patronal até a impotência das organizações proletárias em formular saídas próprias para a crise – a luta do proletariado não teve êxito. Na ausência de um programa proletário para romper o impasse e avançar, prevaleceram as palavras de ordem anti-autoritárias, subjetivistas e com ênfase na mudança de costumes, que foram características do movimento juvenil e das chamadas minorias.
Esta foi uma das ambiguidades daquele movimento, como o marxista estadunidense Frederic Jameson apontou. E ele vai além na caracterização daquelas ambiguidades: embora houvesse um forte traço anticapitalista naquelas lutas, elas acabaram sendo funcionais para a nova etapa do desenvolvimento capitalista. “Os anos 60”, escreveu Jameson, “frequentemente imaginados como período em que o capital e o poder do Primeiro Mundo estão em retirada por toda parte, podem também igualmente ser encarados como período de expansão inovadora e plenamente dinâmica do capitalismo, equipado com todo um arsenal de técnicas e novos ‘meios de produção'” (Jameson: 1991).
A revolução do eu
Na década de 1960, a crise do sistema capitalista impunha a busca de novos caminhos, com mudanças profundas na organização da produção, na sociedade e na política. Eram escolhas conflitantes e a opção por uma delas dependia dos rumos que a luta de classes tomaria. E estes rumos dependiam, por sua vez, da capacidade do proletariado e de sua liderança em formular um projeto de sociedade mais avançado, ultrapassando as contradições e abrindo caminho para ao progresso social. Mas nem o proletariado nem sua direção pareceram, naquela conjuntura, capazes de chegar a tanto.
Hobsbawn também chamou a atenção para este ponto. Foi significativo, escreveu, que a rejeição ao capitalismo não tenha sido feita “em nome de outro padrão de ordenação da sociedade, embora o novo libertarismo recebesse uma justificação daqueles que sentiam que ele precisava de tais rótulos, mas em nome da ilimitada autonomia do desejo humano. Supunha um mundo de individualismo voltado para si mesmo levado aos limites. Paradoxalmente, os que se rebelavam contra as convenções e restrições partilhavam as crenças sobre as quais se erguia a sociedade de consumo de massa, ou pelo menos as motivações psicológicas que os que vendiam bens de consumo e serviços achavam mais eficazes para promover sua venda” (Hobsbawn: 1995).
Isto é, na falta de um projeto de reorganização da sociedade, e frustrada a luta por uma superação classista das contradições do capitalismo – cujo horizonte fosse a transição para uma nova sociedade – prevaleceu a revolução do eu, prenúncio do neoliberalismo que viria nas décadas seguintes. “Assumia-se tacitamente agora”, prossegue Hobsbawn, “que o mundo consistia em vários bilhões de seres humanos definidos pela busca de desejo individual, incluindo desejos até então proibidos ou malvistos, mas agora permitidos – não porque se houvessem tornado moralmente aceitáveis, mas porque tantos egos os tinham” (Hobsbawn: 1995).
A nova fase do desenvolvimento capitalista impunha o consumo de massas, e esta era a via para a satisfação daqueles desejos. A velha ética do trabalho baseada na produção, num padrão de consumo austero e na economia para o futuro, ficava para trás. Em seu lugar, abria-se um período hedonista, de busca do prazer e da satisfação de impulsos individuais, com ênfase no consumo – isto é, de subordinação ao desejo – centrado no indivíduo e suas ansiedades.
Além disso, o capitalismo tornava-se, pela primeira vez, verdadeiramente global. As últimas zonas remanescentes de pré-capitalismo eram, cada vez mais, coisa do passado. “Os anos 60 terão sido então o momentoso período de transformação em que essa reestruturação sistêmica se fez em escala global” (Jameson: 1991).
O escritor estadunidense Thomas Frank chamou a atenção para o aspecto mercadológico da mudança (Frank: 1998). Para ele, a crise cultural e social dos anos 60 significou um ajuste: agora, o capitalismo estava baseado no consumo e na diferença do acesso aos bens de consumo. As classes se consolidaram, diz ele, e isso impunha, para aqueles de renda mais alta, a necessidade de inventar novas marcas para que os diferenciassem da massa, levando à busca de novos padrões de identidade e à rejeição do convencional (na moda, no comportamento, no estilo de vida). Tudo como marca de distinção em relação aos demais, em relação à massa. Daí para a ênfase no desejo era um passo.
“A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos”, escreveu Hobsbawn. Um exemplo da nova situação foi a explosão do consumo dos jovens, ilustrada pelo crescimento na venda de discos ou nas mudanças no mundo da moda. Nos EUA, vendiam-se 277 milhões de discos em 1955, quando surgiu o rock. Em 1959, passou para 600 milhões; em 1973, alcançou a marca de 2 bilhões – sete vezes mais. Na França, 1965 foi o ano em que a indústria de roupas femininas produziu mais calças do que saias (Hobsbawn: 1995).
Ensaio geral para o neoliberalismo
A trajetória de Jerry Rubin é emblemática dos rumos seguidos após os anos 60. Ativista da nova esquerda, ex-líder estudantil da Students for a Democratic Society (SDS), o principal movimento estudantil nos EUA na época, foi fundador do Youth International Party (Partido Internacional da Juventude), dos yippies, envolvendo rock, drogas e esquerdismo. Naquela ocasião, informa a Wikipedia, declarou que os “yippies são os verdadeiros revolucionários da Era de Aquário”.
Menos de duas décadas depois, Rubin era um capitalista de sucesso, investidor da Apple Computers e teórico dos yuppies individualistas dos anos 80. Agora ele defendia que “a criação de riquezas é a verdadeira revolução americana”.
A trajetória dos hippies da década de 1960 foi dar nos yuppies das décadas seguintes – e o traço de união entre as duas figuras foi o individualismo do cada um na sua.
A crise do capitalismo atravessou os anos 70 e a saída para ela foi conservadora, e não revolucionária; burguesa, e não proletária. Ela concretizou-se com as as campanhas vitoriosas do republicano Richard Nixon para a presidência da República nos EUA em 1968 e 1972 e sua promessa de restaurar a lei e a ordem. Mais adiante, no final da década de 1970, a direita se consolidou com um “projeto feroz para ‘restabelecer a autoridade social’” (Purdy: 2008). O sonho libertário de 1968 traduziu-se então no pesadelo anunciado pela ascensão ao poder de Margareth Thatcher, na Grã Bretanha, e de Ronald Reagan, nos EUA. E deixou a impressão amarga de que todo aquele vigoroso movimento foi parte do ensaio geral da globalização e do neoliberalismo.
Analyses et documents
1973 – As greves selvagens na Europa Ocidental (tradução portuguesa de Analyses et documents, nº 182-183, março de 1970). Porto, Afrontamento
Ferry, Luc, e Ranaut, Alain1988 – Pensamento 68 – ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo, Ensaio
Frank, Thomas
1998 – The conquest of cool. Chicago, University of Chicago Press
Harvey, David
1992. Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola
Herling, John
1965 – História dos Sindicatos nos EEUU. Rio de Janeiro, Lidador
Hobsbawn, Eric
1995 – Era dos extremos. São Paulo, Cia das Letras
1998 – “O ano em que os profetas falharam”. Folha de S. Paulo (Mais!), 10.5.1998
2003 – “Maio de 1968”. In Revolucionários. Rio de Janeiro, Paz e Terra
Jameson, Frederic
1991 – “Periodizando os anos 60”. In Pós Modernismo e política. Heloisa Buarque de Hollanda (org). Rio de Janeiro, Rocco
Purdy, Sean
2008 – “O século americano”. In Leandro Karnal e outros. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo, Contexto
Internet: Jerry Rubin
Publicado inicialmente na Revista Princípios, nº 95, abril/maio de 2008. Foram feitas alterações de estilo. | Texto original em português do Brasil
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