… Como a inenarrável sessão da Câmara dos Deputados que no passado domingo deu luz verde ao processo de impeachment contra a presidente.
Mas quando se podia pensar que já víramos tudo, eis que surgem novos desenvolvimentos, no mínimo espantosos. Vejamos: Hoje mesmo, enquanto em Brasília Dilma Rousseff fazia as malas para ir nesta quinta a Nova Iorque, a fim de denunciar na ONU “a tentativa de golpe”, em São Paulo, o seu vice, Michel Temer reunia com amigos e aliados a fim de montar “o seu governo”, assumindo sem constrangimento uma decisão que o Senado ainda não tomou!
Ao mesmo tempo, noutro ponto da capital, o Superior Tribunal Eleitoral – especificidade jurídica brasileira entre muitas outras – começava a reunir provas de um processo que pode teoricamente levar à destituição dos dois, se for provado que houve financiamento ilegal da última campanha eleitoral que os colocou juntos no poder. O dia ainda não tinha acabado, e já outros episódios se acrescentavam: a Oposição entrava no judiciário para tentar impedir Dilma de falar nas Nações Unidas – apesar de ela se encontrar ainda no pleno uso das suas funções – e o decano do STF, juíz Celso de Mello, intervinha abertamente no debate político, tomando partido contra a chefe de Estado, ao afirmar que ela falar de golpe constitui “um gravíssimo equívoco”, dado que o processo de impeachment corre dentro da normalidade jurídica.
E ainda houve mais isto – um novo adiamento sine die, pelo Supremo, da decisão de admitir ou não que Lula possa assumir um cargo no governo, deixando o ex-presidente no limbo para o qual o confinou, e limitando assim objectivamente a sua capacidade de intervenção política num momento crucial. É GOLPE OU NÃO É GOLPE?
É neste contexto – em que judicialização da política e politização do judiciário mutuamente se reforçam – que se intensifica o debate sobre a questão de saber se estamos ou não perante um golpe. Aparentemente, não, pois do ponto de vista formal tudo decorre de acordo com as normas e ritos da Constituição. Mas uma análise mais aprofundada levanta sérias dúvidas. Como é possível, por exemplo, que o STF permita que um presidente da Câmara dos Deputados – Eduardo Cunha – já indiciado e constituído réu por corrupção, dirija um processo de impeachment contra uma presidente eleita que – ao que parece caso raro na política do país – não se aproveitou do cargo para enriquecimento pessoal?
Isso, claro, para já não falarmos de que a maioria dos deputados estão envolvidos em processos judiciais, alguns com acusações gravíssimas, incluindo homicídio. Por outro lado, mesmo que o Senado – como tudo para já indica – venha a votar pelo impeachment, restará ainda saber se o processo foi ou não inteiramente legítimo. Para tal, o Supremo teria que admitir analisar o fundo da questão e não se limitar às formalidades.
Concretamente, o STF teria que analisar não só se tudo decorreu de acordo com as normas, como sobretudo se os argumentos invocados – as chamadas “pedaladas fiscais” – manobras de contabilidade para financiar programas sociais em larga escala- configuram ou não o chamado “crime de responsabilidade” que a Constituição exige para que possa haver impeachment. Ora os juízes do STF nesta como noutras questões estão divididos e ainda não é certo que o tribunal venha a admitir o provável último recurso que o governo não deixará de interpor se a sentença do Senado for pela destituição.
Sem esse derradeiro esclarecimento persistirá sempre a dúvida sobre se assistimos a um processo limpo ou se tudo não passou de uma manobra – com a cumplicidade dos media – para provocar a queda do governo e levar a Oposição ao poder sem passar pelas urnas. Porque – note-se – é isso que o vice Michel Temer se prepara para fazer. Não se trata apenas de substituir a sua cabeça de lista para prosseguir as políticas que lhe garantiram, junto com Dilma, o voto de 54 milhões de eleitores e a vitória nas eleições de Dezembro de 2014. Trata-se de uma reviravolta completa na política do país – porventura e no limite até necessária, mas que o simples impeachment não consente.
O impeachment, a confirmar-se, apenas legitima a mudança na liderança, não nas políticas que foram votadas. Para as alterar, novo voto é imprescindível.