O AI-5 deixou uma ferida até hoje aberta no coração da nação brasileira.
“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Sob esta frase impactante de Jarbas Passarinho, então ministro do ditador-general Artur da Costa e Silva, há exatamente 50 anos foi baixado o famigerado Ato Institucional nº 5, AI-5, um golpe dentro do golpe que recrudesceu o terrorismo de Estado da ditadura militar, tornando-se desta a expressão mais acabada.
Antes, ainda nos debates no Conselho de Segurança, Pedro Aleixo, um civil que apoiou o Golpe de 1964 e ocupava o cargo de vice-presidente, foi único dos presentes a se manifestar contrário ao AI-5. Indagado por Gama e Silva, que era o ministro da Justiça, se tinha algo contra as “mãos honradas” de Costa e Silva, que seria o responsável por aplicar as disposições daquele Ato, Pedro Aleixo assim respondeu: “Não, das mãos honradas do presidente da República eu não tenho o menor medo, eu tenho medo é do guarda da esquina”. Mais tarde, Aleixo foi impedido de assumir o cargo deixado vago quando da morte de Costa e Silva.
O AI-5 foi editado um dia após a Câmara dos Deputados, com ajuda de parte da própria ARENA, partido de sustentação do regime tirânico, ter recusado licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves (MDB), que no início de setembro do mesmo ano havia feito o célebre discurso no qual apelou à população para que não fosse aos desfiles do 7 de Setembro, bem como às mulheres para que não saíssem com os oficiais, considerado a gota d’água para a reação do arbítrio.
A medida tornou o presidente da República, na verdade, o ditador-general, pleniponteciário, ou seja, possibilitou ao mesmo, em caráter excepcional, sem apreciação por parte do Poder Judiciário, a decretar o recesso do Congresso Nacional, a intervir nos estados e municípios, a cassar mandatos parlamentares, a suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão, a decretar o confisco de bens considerados ilícitos e a suspender a garantia do habeas-corpus.
No próprio preâmbulo do ato consta que o mesmo era indispensável para garantir os objetivos da “revolução”, ou seja, era para eles um meio de impedir a “contrarrevolução”. O ano de 1968, emblemático em todo o planeta pelos protestos políticos e quanto à questão dos costumes, foi aqui no Brasil de crescimento da resistência à tirania, nas ruas e em todos os espaços, inclusive dentro do parlamento, como mostrou o caso Márcio Moreira Alves. A reação foi avassaladora, sanguinária e liberticida. Deixou uma ferida até hoje aberta no coração da nação brasileira.
Ainda no dia 13 de dezembro de 1968, foi decretado por tempo indeterminado o recesso do Congresso Nacional, que só seria reaberto em outubro de 1969 para dar o seu referendo à escolha do novo ditador-general Emílio Garrastazu Médici como presidente da República, e, à noite, prenderam o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o JK. Ainda em dezembro daquele ano, vários deputados federais foram cassados, inclusive Márcio Moreira Alves.
Na sequência, as prisões não atingiam apenas lideranças políticas como Carlos Lacerda, apoiador civil da quartelada de 1964 e que teve os seus direitos políticos suspensos, mas também intelectuais, artistas e escritores, entre eles Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony.
Durante a vigência dos atos institucionais, notadamente o que aqui comento, prisões, torturas, perseguições e mortes atingiram milhares de brasileiros. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), com o apoio de comissões estaduais e municipais, bem como dos comitês da sociedade civil, com o Comitê Memória, Verdade e Justiça de Mato Grosso do Sul, mostrou o enorme alcance da repressão. Não somente militantes políticos foram atingidos. Também o foram intelectuais, jovens estudantes, artistas, religiosos, empresários, militares, índios, camponeses e trabalhadores da cidade. Até bebês foram fichados!
Foram quase dois mil trabalhadores demitidos, mais de mil funcionários públicos aposentados, centenas de militares reformados ou colocados na reserva, mais de uma centena de brasileiros banidos, mais de 500 mandatos cassados, muitos brasileiros perderam direitos. Mutilaram mais de 500 filmes, mais de 500 músicas, quase 500 peças de teatro, cerca de 200 livros e 100 revistas, dezenas de telenovelas e muitos documentários. Pela resistência, mas sobretudo pela brutalidade do terror de Estado e pelas estruturas continuadas de poder que nos legou, sobrevivendo mesmo à redemocratização e à Constituição Cidadã de 1988, 1968 é “o ano que não terminou”.
Avanços importantíssimos foram conquistados, mas nos últimos anos muitos foram os reveses, sendo o maior deles a chegada da extrema-direita ao centro do poder, por meio do voto popular, liderada por alguém que não só faz apologia das perversidades dos anos de chumbo, como também trabalha para alterar o regime político democrático inaugurado pela Constituição de 1988, visando a substituí-lo por uma ordem autoritária aberta.
Tudo isso mostra o quão importante é a luta pelo direito à memória, à verdade e, sobretudo, à justiça de transição! “Para que ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça”, conforme se dizia exaustivamente durante a vigência dos trabalhos da CNV e da rede da sociedade civil envolvida com a questão. No entanto, só poderemos voltar a avançar nesse campo se isolarmos e derrotarmos o bolsonarismo, o que requer a unidade de amplas forças políticas, sociais e intelectuais deste país para defender a democracia duramente conquistada, já tão mutilada, mas que precisa ser restabelecida.
por Mario Fonseca, Advogado, membro do PCdoB/MS, filho de resistentes à ditadura militar e membro atuante no Comitê Memória, Verdade e Justiça de Mato Grosso do Sul (CMVJ/MS) | Texto em português do Brasil
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