Será provavelmente abusivo falar-se de tradição. Mas que é muito comum o ‘júri oficial’ dos festivais de cinema surpreenderem tudo e todos e entregarem os prémios principais a filmes menores, lá isso é. Foi o que aconteceu na 62.ª edição da SEMINCI – Semana Internacional de Cinema de Valladolid que terminou na noite de sábado passado. Junta-se um grupo de pessoas, que na maior parte dos casos se encontram pela primeira vez, – realizadores, produtores, actores, escritores, distribuidores -, apresentados como especialistas da matéria e atribui-se-lhes o poder soberano de ‘cozinhar’ um palmarés. Com sensibilidades e perspectivas naturalmente diferenciadas tentam, durante uns dias, chegar a uma “plataforma de entendimento” e admitimos que tenham receio de optar pelo óbvio. Por isso, aqueles que para o comum dos mortais são os melhores filmes acabam por ser sacrificados e quase completamente ignorados. Os ‘júris oficiais’ raramente recolhem apoio unânime às suas decisões. Mais frequentemente conseguem o pleno da rejeição, pelo menos em parte importante das suas escolhas. Estivemos agora perante um destes casos.
A alternativa seria recolher a votação de toda a gente que vê os filmes, mas para isso existem os ‘prémios do público’. Por isso, não há outra coisa a fazer que não seja aceitar, criticando-os, os veredictos dos grupos aos quais as ‘direcções’ dos festivais confiam essa missão. Veredictos obviamente subjectivos.
E assim…, o vencedor da “Espiga de Ouro” para o Melhor Filme da SEMINCI foi “The Nile Hilton Incident” de Tarik Saleh, um vulgaríssimo e convencional thriller-policial, um ‘filme negro’, nocturno, com corrupção em doses generosas, cuja acção se passa no Egipto e tendo como pano de fundo as manifestações que levaram à queda do regime de Mubarak. Para completar o ramalhete, o Egipto que vemos no ecrã foi afinal ‘reconstituído’ em Marrocos e em Berlim. O cinema pode, de facto, ser uma arte da ilusão e da simulação.
Mas os jurados acharam que a “Espiga de Ouro” não era recompensa suficiente e então vá de entregar a Tarik Saleh os prémios de melhor realizador e melhor argumento.
Três prémios para o norte-americano “The Rider”
Também com três prémios – “Espiga de Prata” (como que um segundo lugar da classificação), melhor actor (Brady Jandreau) e melhor novo realizador -, ficou, com menos polémica, “The Rider”/ O Cavaleiro, de Chloé Zhao, um dos títulos que tínhamos incluído na nossa lista de favoritos. Uma história real, dramática e poética, representada pelos seus verdadeiros protagonistas e ambientada numa América rural, no mundo dos “vaqueiros” e dos “rodeos”
Outra das obras que tínhamos destacado, o impactante documentário “Human Flow” / Maré Humana, do artista chinês Ai Weiwei, perturbador retrato das enormíssimas deslocações de populações que marcam o mundo dos nossos dias foi distinguido com a Menção Especial do Júri. Do mal o menos…
O prémio de interpretação feminina foi atribuído, ex-aequo, a Laetitia Dosch em “Jeune Femme” de Léonor Serraille que consta do programa da Festa do Cinema Francês que está a decorrer entre nós e a Agnieszka Mandat-Grabaka pelo seu papel em “Pokot” de Agnieszka Holland, um dos títulos que mais desiludiram na demasiado extensa selecção oficial.
O prémio da melhor fotografia foi para Ágnes Pádózdi, “Me Mzis Skivi var Dedamicaze” / Sou um raio de sol na Terra, um filme de produção suíça, realizado por Elene Naveriani, passado em Tiblisi, capital da Geórgia e que cruza o destino de algumas prostitutas com o de imigrantes africanos. O filme é sombrio e a preto e branco. Se foi o preto e branco que impressionou o júri, a fotografia de “The Party” de Sally Potter parece-nos bem melhor.
“The Party” de Sally Potter, a grande omissão do palmarés oficial
“The Party” que está prestes a estrear em Portugal foi, de resto, quase olimpicamente ignorado no palmarés. Para a maioria da imprensa presente o melhor filme, com notáveis interpretações e com um argumento invulgar que combina drama com comédia, sonhos e desilusões, traições e cumplicidades. Como prémio de consolação lá lhe saiu a “Espiga Arco-Íris” porque no dizer do júri que a atribuiu (outro, que não o júri oficial), ‘o filme plasma a diversidade sexual integrando-a numa trama coral que assume com naturalidade diferentes orientações do desejo entre personagens de relevância social e política’. E aí está, como um prémio pode ser redutor e contribuir para menorizar um filme que vai muito, mas muito, para além do facto de nele aparecer um casal de lésbicas que acrescenta as suas crises e discussões a um enredo em que a sexualidade é apenas uma das múltiplas facetas que anima as relações entre as personagens.
Palmarés da 62ªSEMINCI
Secção oficial
- Espiga de Ouro – ‘The Nile Hilton Incident Nilo’, de Tarik Saleh
- Espiga de Prata – ‘The Rider’, de Chloé Zhao
- Menção Especial do Júri – ‘Human Flow’ de Ai Weiwei
- Melhor realizador – Tarik Saleh, por ‘The Nile Hilton Incident Nilo’
- Melhor argumento – Tarik Saleh, por ‘The Nile Hilton Incident Nilo’
- Melhor Actriz – Laetitia Dosch, por ‘La Jeune Fille’ e Agnieszka Mandat-Grabka, por ‘Pokot’
- Melhor Actor – Brady Jandreau, por ‘The Rider’
- Melhor fotografia – Ágnes Pádósdi, por ‘Sou um raio de sol na Terra’, de Elene Naveriani
- Premio Pilar Miró para o melhor novo realizador – Chloé Zhao, por ‘The Rider’
- Espiga de Ouro para curta-metragem – ‘Negah’, de Farnoosh Samadi
- Espiga de Prata para curta-metragem – ‘A Drowning Man’ de Mahdi Fleifel
- Prémio FIPRESCI – ‘Daha’, de Onur Saylak
- Prémio da Juventude – ‘Daha’, de Onur Saylak
- Prémio do Público – ‘L´Insulte’, de Ziad Doueiri
- Espiga Arco-Iris – ‘The Party’, de Sally Potter
Secção ‘Punto de Encuentro’
- Melhor longa-metragem – ‘Spina’, de Tereza Nvotová
- Melhor curta-metragem – ‘British by the grace of God’, de Sean Dunn
- Melhor curta-metragem espanhola – ‘Matria’, de Álvaro Gago
- Menção Especial do Júri – ‘Aala kaf Ifrit’, de Kaouther Ben Hania
- Prémio da Juventude – ‘Aala kaf Ifrit’, de Kaouther Ben Hania
- Prémio do Público – ‘As Duas Irenes’, de Fábio Meira
Secção ‘Tiempo de Historia’
- Primeiro prémio – ‘La Libertad del Diablo’, de Everardo González
- Segundo prémio – ‘Dina’, de Dan Sickles e Antonio Santini
- Menção Especial – ‘Bayang Ina Mo’ /Terra Natal, de Ramona S. Díaz
- Melhor curta-metragem documental – ‘What Happened to her’, de Krysty Guevara-Flanagan
Secção ‘DOC España’
- ‘Verabredung’, de Maider Oleaga