Em texto anterior falámos da secção oficial da 63ª SEMINCI. Essa é uma secção essencialmente dedicada ao cinema de ficção e é, de facto, a área mais mediática do festival e aquela que concita a atenção da maior parte dos espectadores. Contudo, há outras áreas da programação que suscitam o interesse dos cinéfilos mais inveterados e que procuram ficar com uma imagem mais abrangente do certame. Hoje debruçamo-nos sobre duas mostras que fazem parte, há vários anos, do ‘núcleo duro’ da programação do Festival: ‘Tiempo de Historia’, dedicada à apresentação de documentários, e ‘Punto de Encuentro’ preenchida por filmes de novos realizadores.
“Tiempo de Historia” – retratos do passado e do presente
‘Tiempo de Historia’ é uma mostra, também competitiva, focada no cinema documental. A ‘Historia’ de que aqui se fala, pode ser a de um passado remoto (às vezes com implicações na actualidade) mas pode também ser um olhar sobre o tempo presente e sobre os grandes problemas das sociedades contemporâneas. Desde um registo muito factual até ao chamado ‘documentário de criação’ tudo pode ser encontrado no conjunto de trabalhos propostos aos espectadores, ficando muitas vezes a dúvida sobre a existência de uma fronteira nítida que separe a realidade da ficção.
Desta vez são 15 filmes selecionados, dos quais doze estão em competição. Desde a recuperação da memória das vítimas do franquismo à solidariedade com os refugiados em diversas partes do mundo, passando pela guerra de Síria, pelas ‘fake news’ e pela propaganda russa nas eleições presidenciais americanas ou por temas ambientais, muitas são as temáticas abordadas nesta secção que dedica ainda um espaço relevante à exibição de trabalhos que incidem, com diferentes opções estéticas e estilísticas, sobre a biografia de personalidades da cultura.
Alguns destaques
- “El silencio de otros” (Estados Unidos/Espanha), filme de Almudena Carracedo e Robert Bahar, produzido por Pedro Almodóvar, que mostra a luta pela justiça, muitos anos silenciada, das vítimas do franquismo. Entre elas algumas das 140 mil famílias que nunca conseguiram encontrar os restos mortais dos seus familiares assassinados. Um filme sobre o passado, mas com grande actualidade. De facto continua em vigor em Espanha a Lei de Amnistia de 1977 que não é mais que um pacto de silêncio que impede que os responsáveis dos crimes perpetrados pelo franquismo contra os seus opositores sejam levados a tribunal. A juntar a isso a polémica relacionada com a retirada dos restos mortais de Franco do Vale dos Caídos;
- “Viaje a los pueblos fumigados” (Argentina) filme de um dos mais celebrados cineastas argentinos. Também com importante intervenção política e cívica, o ‘militante’ e senador Fernando Solanas recebeu o Urso de Ouro Honorífico do Festival de Berlim em 2004. Neste filme conta-se a viagem do autor por sete províncias argentinas para documentar as consequências sociais e ambientais da produção de transgénicos com recurso a pesticidas e outros produtos químicos, que multiplicam os casos de cancro e malformações.
- “Nowhere” (Áustria), de Natalie Halla, dá a conhecer o dr. Ngoc, um famoso praticante da medicina tradicional chinesa radicado na Áustria, que com oito anos fugiu da guerra contra os ‘khmers vermelhos’ e que agora põe os seus préstimos ao serviço dos refugiados que chegam, por mar, à Ilha de Lesbos;
- “Libre”, (França), de Michel Tuesca, conta os esforços de um agricultor de um vale na fronteira franco-italiana, que em conjunto com os seus vizinhos e desafiando a lei procura ajudar os refugiados que usam esse caminho para se deslocarem na Europa.
Outros títulos desta secção
- “Ayotzinapa, el paso de la tortuga”, (México), de Enrique García Meza e coproduzido por Guillermo del Toro. Relato do dramático desaparecimento de 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa;
- “Renzo Piano, un arquitecto para Santander” (Espanha). Exibido fora de concurso, este é um filme de Carlos Saura, um dos mais importantes cineastas espanhóis vivos. A propósito do projecto do centro de arte que a Fundação Botín implantou na baía de Santander, Saura relata a trajectória profissional e criativa do renomado arquitecto italiano Renzo Piano, o autor do Centro Pompidou, em Paris e de alguns dos edifícios do ‘New York Times’;
- “Altamira: el origen del arte” (Espanha) a nova longa-metragem documental de José Luis López Linares, resultado da visita com câmara que o realizador pôde fazer às Grutas de Altamira, algo que não era permitido desde os anos 80;
- “Comandante Arian” (Espanha/Alemanha/Síria), obra de Alba Sotorra, que conseguiu documentar a revolução feminista no Curdistão e entrar com a sua câmara na primeira linha da guerra da Síria e assim mostrar a luta das mulheres curdas contra o Estado Islâmico;
- “El amor y la muerte – Historia de Enrique Granados”, (Espanha), filme de Arantxa Aguirre que recria a vida apaixonante e tumultuosa do compositor Enrique Granados na Barcelona da passagem do século XIX para o século XX;
- “Down para arriba”, (Argentina), um documentário de Gustavo Garzón sobre o grupo ‘Sin Drama de Down’ composto por pessoas com síndrome de Down que, uma vez por semana, se reúnem numa escola de teatro de Buenos Aires;
- “Island of the Hungry Ghosts”, (Alemanha/Reino Unido/Austrália/Estados Unidos), primeira longa-metragem documental da australiana Gabrielle Brady, é uma viagem a uma ilha do Oceano Índico em que os caranguejos terrestres migram aos milhões para o mar, mas que também esconde um centro de detenção de alta segurança onde milhares de pessoas estiveram encerradas por tempo indefinido;
- “Generation Wealth”, (Estados Unidos), uma visão crítica das sociedades contemporâneas (e em particular da norte-americana) obcecadas pelo lucro, pelo enriquecimento, e pelo culto da imagem e do sucesso a todo o custo. Um filme com contornos autobiográficos da documentarista e fotógrafa Lauren Greenfield;
- “Ay Carmen!”, (Espanha), de Fernando Mendez-Leite, exibido fora de concurso, põe a actriz Carmen Maura a falar, de uma forma desassombrada e inteligente, não só da sua carreira, mas também da sua infância, da descoberta da vocação e dos primeiros passos na profissão;
- “Our New President”, (Estados Unidos / Rússia) de Maxim Pozdorovkin, é a história da eleição de Donald Trump contada através a propaganda russa. O filme, por vezes hilariante (mas por onde às vezes perpassa algum sentimento de vergonha) retrata a intromissão russa nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016;
- “La grande-messe”, (Bélgica/França), é um retrato divertido feito por Méryl Fortunat-Rossi e Valéry Rosier dos grupos de casais franceses que todos os anos instalam as suas caravanas numa zona montanhosa numa curva junto à estrada por onde passa a Volta a França;
- “Degas: Passion for Perfection” (Reino Unido), de David Bickerstaff, também exibido extra-concurso, mergulha na figura do pintor, escultor e fotógrafo francês, uma das personalidades mais importantes da arte da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. A sua permanente insatisfação fez com que muitas das suas obras nunca tivessem sido mostradas enquanto foi vivo. O filme do cineasta britânico resgata agora algumas delas.
Ricardo Vieira Lisboa – presença portuguesa no júri de “Tiempo de Historia”
Programador do ‘IndieLisboa’ e crítico de cinema no site ‘À pala de Walsh’, Ricardo Vieira Lisboa é um dos jurados desta secção. Os outros são os realizadores Emanuele Garosa (Itália) e Eduardo Trías (Espanha).
“Punto de Encuentro” – A SEMINCI à descoberta dos cineastas do futuro
Embora na secção oficial da SEMINCI se possa encontrar uma dezena de primeiras ou segundas obras, é em ‘Punto de Encuentro’, outra área competitiva da programação, que estão concentrados os trabalhos de cineastas em início de carreira. Espaço de divulgação de obras, por vezes com acentuado carácter experimental, que procuram explorar novas formas de narração e de linguagem cinematográfica. Temáticas novas ou antigas, mas tratadas com inovação e modernidade, e em grande parte dos casos com uma forte ligação à realidade das pessoas e das sociedades. Alguns vindos do cinema documental, os realizadores representados na presente edição que decorre até ao próximo dia 27, tratam temas como a velhice, a identidade sexual, a luta pelas liberdades individuais e comportamentais em sociedades conservadoras, as doenças e a deficiência, a procura das raízes familiares, entre outros. Pelo meio algumas comédias e temas menos comprometidos.
As doze longas-metragens que integram esta secção são oriundas de Argentina, Dinamarca, Egipto, Espanha, Estados Unidos, Quénia, México, Suécia, Tunísia, Ucrânia e Venezuela.
Filmes em competição
Os filmes em competição são os seguintes:
- “Ara” / Agora, de Pere Solés (Espanha), médico e documentarista que faz a sua estreia na ficção com um filme que conta com a participação de doentes reais e de uma equipa de psicólogos clínicos para abordar o tema da anorexia;
- “Diane”, de Kent Jones (Estados Unidos). O autor do documentário “Hitchcock/Truffaut” e colaborador de Scorsese, conta nesta sua primeira ficção a história de uma mulher de setenta anos que vive só e que passa os dias a ajudar as amigas e a família enquanto procura recuperar a relação com o filho perdido no mundo das drogas;
- “Museo”, de Alonso Ruizpalacios (México). Do realizador do celebrado “Gueros”, o filme é baseado no assalto mais famoso ocorrido no México. Trata-se de uma ficção com base documental. Gael Garcia Bernal e Leonardo Ortizgris representam os papeis de dois jovens, à beira dos 30 anos, que por motivos nunca esclarecidos aproveitam a noite de Natal para sair de junto da família e fazerem um assalto ao Museu de Antropologia do México de onde fazem desaparecer muitas peças extremamente valiosas;
- “Paisaje”, de Jimena Blanco (Argentina). A produtora de “Eva não dorme” (Pablo Aguero) ambienta o seu trabalho de estreia como realizadora no final dos anos 90. Conta o despertar sexual e a busca de aventura de quatro raparigas adolescentes que vão a Buenos Aires ver um concerto de rock, perdem as mochilas com documentos e dinheiro e caminham à toa pela cidade até conseguirem regressar às suas casas;
- “Rafiki”, de Wanuri Kahiu (África do Sul/Quénia/França/Holanda/Alemanha/Noruega). Apesar da rivalidade política entre as suas famílias, Kena e Ziki, duas jovens quenianas, lutam por manter a sua relação desafiando o conservadorismo da sociedade em que vivem;
- “The Return”, de Malene Choi (Dinamarca/Coreia do Sul). Dois jovens dinamarqueses, de origem coreana, adoptados, voltam ao país de origem, conhecem finalmente o seu país natal e contactam com outros adoptados, uma situação que coloca em causa a sua estabilidade emocional e identidade;
- “Tårtgeneralen”, de Filip Hammar e Fredrik Wikingsson (Suécia). Em 1984, um popular programa de televisão escolheu a pequena cidade de Koping como a terra mais ‘parada’ da Suécia. Hasse Pettersson, un habitante do lugar, recusa-se a permitir que a terra seja motivo de chacota e quer criar algum alvoroço ao preparar a maior ‘smörgåstårta’ do mundo, una espécie de tarte típica de Suécia;
- “Volcano”, de Roman Bondarchuk (Ucrânia/Alemanha). Lukas, um intérprete que acompanha uma equipa de inspectores de controlos militares, fica caído perto de uma remota localidade no sul da estepe ucraniana. Sem saber para onde ir, encontra refúgio numa casa de um pequeno lugar;
- “Yo imposible”, de Patricia Ortega (Venezuela/Colômbia). Ariel, depois de uma relação sexual falhada descobre que quando nasceu era intersexual e que a família nunca lho disse. Depois de uma intervenção cirúrgica, criaram-na como uma rapariga;
- “Yomeddine”, de A.B. Shawky (Egipto). Beshay nunca saiu da colónia de leprosos em que o abandonaram em criança. Depois da morte da mulher vai em busca das raízes na companhia de um rapaz órfão que conhece no caminho;
- “Weldi”, de Mohamed Ben Attia (Tunísia/Bélgica/França). A vida de um trabalhador do porto de Tunis, perto da reforma, e a da mulher giram em torno da saúde do filho, estudante, que tem enxaquecas frequentes. Quando parece estar a ficar melhor o filho desaparece e junta-se aos combatentes do Estado Islâmico;
Fora de concurso, “Me llamo Gennet”, de Miguel Ángel Tobías (Espanha), filme baseado na vida de uma mulher nascida na Etiópia, surda e cega, adoptada em Espanha e que foi a primeira a obter um título universitário. Uma ficção com base documental de um realizador comprometido com a justiça, as causas sociais e os direitos humanos.
Dois filmes portugueses nas curtas de “Punto de Encuentro”
São 16 as curtas-metragens que foram selecionadas para esta secção. Seis espanholas, a exibir na ‘Noche del Corto Español”, concorrem a um prémio de 3000€. As restantes 10 concorrem a um prémio do mesmo valor. Entre elas duas portuguesas: “3 Anos Depois”, de Marco Amaral e “Amor, Avenidas Novas”, de Duarte Coimbra. As restantes são oriundas de México, Suíça, Canadá, Polónia, França e Roménia.
Manuel Mozos no júri de “Punto de Encuentro”
Mais um sinal do relevo dado ao cinema português nesta edição da SEMINCI é a presença do cineasta português Manuel Mozos no júri de ‘Punto de Encuentro’ de que fazem também parte a distribuidora e programadora alemã Cosima Finkbeiner, e a realizadora Clarisa Navas.
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