Ei-los que saem resplandecentes de felicidade por pisarem solo pátrio, sorrisos abertos, olhos molhados não sei se da pegajosa chuvinha molha-tolos, se por avistarem já por entre a cerração velhote ou criança que os espera tiritando no cais…
A couchette do Sud Express desperta alvoroçada com o alegre chilrear das passageiras, pressentindo-se na nossa terra.
— Minha senhora, deixe-me dormir! — rabujo sonolento.
— Ó senhor, a gente levantamos-se cedo!
A noite dorme ainda nos vales da serra, pelas janelas embaciadas vislumbram-se pinheiros fugidios, correm velozes penedias fantasmagóricas, tudo vago, indistinto, difuso da morrinha que tomba incessantemente. No corredor, o revisor tenta convencer passageiro grudado na porta do comboio a voltar para o aconchego da couchette:
— Saia desse frio, ainda falta muito para chegarmos!
E ele, com maravilhosa pronúncia de beirão, floreada de Ss ápico-alveolares: — Num xaio daqui, que quero xer o primeiro a buer um bagaxinho na estaxão da Guarda!
Gente de trabalho, trazida pelo “amor da pátria, não movido / De prémio vil, mas alto e quási eterno”. Jovem taxista na banlieue, que acumulou avaramente horas extra para acrescentar dois dias ao fim-de-semana. Proprietário de duas “petites surfaces, coisa de mil metros carrés cada, a dimensão ideal”, afirma, para o petit commerce. Mulheres que fazem ménage. Se viessem de avião, mais rápido, mais barato, perderiam um dia nas viagens aeroporto-casa e volta, o tempo é precioso, todo ele escasso para tanta saudade.
Ei-los que saem resplandecentes de felicidade por pisarem solo pátrio, sorrisos abertos, olhos molhados não sei se da pegajosa chuvinha molha-tolos, se por avistarem já por entre a cerração velhote ou criança que os espera tiritando no cais…
Povo que lavava no rio e hoje lava escadas em Paris. Ridicularizado no falar, no vestir, nos costumes. Rude, tosco, mesquinho, por vezes brutal. Mas pleno de vitalidade, dotado de capacidade de sobrevivência invejável — e animado por amor à pátria sem par, incompreensível para muitos.
Um século depois, é ainda e sempre o Povo imortalizado por Cesário Verde:
Povo imortalizado
Povo! No pano cru rasgado das camisa
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!(Cesário Verde)
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