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Terça-feira, Julho 16, 2024

No centenário do nascimento de Sophia – Parte II

Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta

Trajetórias Poéticas entre Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: Da gênesis da criação à poesia como salvação no espaço e no tempo – uma análise do  Percurso e do caminho comuns

A doce Canção de Vaga Música

Pus-me a canta minha pena
Com uma palavra tão doce,
De maneira tão serena,
Que até Deus pensou que fosse
Felicidade – e não pena.

Anjos de lira dourada,
Debruçaram-me da altura.
Não houve, no chão, criatura
De que eu não fosse invejada,
Pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,
Fiz suspirarem defuntos.
Um arco-íris de alegria
Da minha boca se erguia
Pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto,
Deus não soube, tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
-todos perdidos de encanto,
Só eu morrendo de triste!

Por assim tão docemente
Meu mal transformar em verso,
Oxalá Deus na o aumente
Para trazer o Universo,
De polo a polo contente.

(MEIRELES, 2001 p. 348-349)

Neste poema do livro denominado de Vaga Música, Meireles assume sua predileção por cantar, isto é, a poesia novamente unificada com a música, assim como sonhou os simbolistas. As cantigas são restauradas em seus poemas, pois há uma obsessão clara em Cecília pelo ritmo e pela sonoridade das palavras, onde poetar volta a ser sinônimo de fazer música. “A doce canção” se torna um metapoema, onde a poeta celebra o cantar, como se essa ação vivificada fosse o próprio ato de escrever. De acordo com maior teórico-crítico da escritora, Darcy Damasceno (apud SALOMÃO, PESSONI e BERGAMO, 2012 p.7) sintetiza que a poesia de Cecília Meireles resgata a música interior que existe dentro do ser pela sonorização das imagens:

A poesia “musical” de Cecília, segundo Damasceno (1991) traz os sentimentos e emoções do subconsciente para representá-los em um plano da realidade, de forma que não se distingue a fronteira entre o que pertence ao plano exterior e o que é interior ao “eu” em sua poesia. O mundo é incorporado à melodia interior do poeta através das imagens, metáforas e do ritmo. A sua sensibilidade consegue, ao tocar a realidade, criar um mundo subjetivo que dá consciência poética a tudo o que se encontra no subconsciente.

Neste sentido, a melodia e o ritmo na obra da maior poeta brasileira encarnam a gênese da palavra e apregoam no corpo do significante e na expressão do significado; a reunificação das polaridades na canção e no mito. Escrever sobre o cantar cantando passa a ser um exercício de escrever sobre o escrever escrevendo, no qual, reafunda-se a palavra, a imagem, o divino e o sujeito. Cecília Meireles diz: “Pus- me a cantar a minha pena”, e essa pena não é apenas o destino infalível, a punição amarga ou a tristeza que ela assume constantemente no tecido desse poema, mas também representa o símbolo do escriba, porque a pena do tinteiro não deixa de ser a representação da própria escrita. “De uma maneira tão serena”, isto é, escrever sobre o escrever, colocar a pena em ação, passa ser algo tão leve e suave para a poeta quanto o ato de chorar. É algo natural do corpo, do movimento das mãos quanto do movimento dos olhos. Escrever como se cantasse passa a ser uma necessidade orgânica.

Cecília ressalta que a sua poesia deriva da dor e que “o prodígio imenso do pranto” é capaz de produzir versos tão doces que quem lê ou quem os ouve, não sabe as dores imensas que estão por trás. Ressalta neste poema, antíteses delicadas, onde a alegria que transparece do canto-poema se contrasta com a amargura e a angústia que corrói por dentro dela. Eis a chave do mistério do seu canto e que ninguém procurou saber: “Todos perdido de encanto/ Só eu morrendo de triste!” A dor, o lamento e a pena em seus variados sentidos, ou seja, o próprio ato poético, se tornam a principal razão da existência da poeta.

Na verdade, a força da antítese misturada à hipérbole, “só eu morrendo de triste” define o canto como uma oração capaz de unir as polaridades universais: céu e terra, água e fogo, sonho e realidade, dor e alegria, pranto e riso, vida e morte. Essa figura fora predominante no Barroco, outro movimento artístico e filosófico recorrente na obra da poeta de Viagem como inspiração.

O Barroco traduz o último movimento sobrevivente da Idade Média, antes da Modernidade, no qual a Igreja Católica tenta restabelecer o seu poder. Ele é a tensão plena entre o Renascimento, onde a razão e o poder do ser humano são recém-descobertos, e esse Medievo perene e apaixonado. A arte barroca se desata em conflitos entre o mundo antigo e o mundo novo que se anuncia, entre a expressão mais atormentada do interior humano e a plácida contemplação filosófica trazida pelos clássicos, gerando na arte um desdobramento exagerado de sentimentos e reflexões, sensações e permanência.

Afrânio Coutinho (1976), em sua Introdução à Literatura Brasileira, diz que o Barroco se traduz como “a arte da morte e dos túmulos”, na qual, morrer é a pura decadência do corpo, “Fiz suspirarem defuntos” (MEIRELES, 2001 p.348) enquanto não deixa de ser o caminho para a ascensão da alma. O contraste entre alma e corpo ou a aura platônica e a realidade material foi algo trabalhado pela cultura e pelo pensamento greco-romano. Contudo, a noção cristã de pecado trouxe para essa dualidade, a característica de tormenta, pois a efemeridade era algo natural para os clássicos, não o motivo de uma impossibilidade e o martírio de uma finitude.

Já em Sophia de Mello Breyner Andresen, a qual estudou Filologia Clássica, a dualidade é posta de uma maneira natural e conciliatória, como se fosse a ordem primeira das coisas. Vilma Areas (2004, p.21)  em seu artigo: Sophia, clássica e anti – clássica como o seu classicismo é ideologia no sentido moderno do termo, isto é,  passíveis de contradições. A releitura de a recuperação de toda a simbologia grega da contradição é inerente à Modernidade Estética na dialética presente entre o clássico e o anti – clássico, tradição – ruptura.

Pode-se dizer que tanto Meireles, quanto Andresen fizeram de suas vozes poéticas; manifestos pela liberdade contra o Estado Totalitário. Foram implacáveis na defesa dos valores humanos. As angústias do entre – guerras e também do pós, as ditaduras que ambas enfrentaram, cada uma em seu país, mostra como cada uma traçava sua obra poética numa “justa relação com as coisas” (ANDRESEN, 2019) Como se o objetivo da poesia fosse a purificação da palavra e a consciência da subjetividade. O regresso inteiro ao início dos inícios, o significante com o significante em si mesmo, suas formas e sons.

Dessa maneira, a procura por uma poesia pura que emerge a justiça, o divino e o ser, onde as palavras revelam-se para fora das águas e do pranto, é a tônica essencial do equilíbrio entre as duas. O ritmo e o canto de anunciação restabelece a origem das coisas e faz compreender a ligação do ser com o mundo. Não há como fazer uma poesia que tenha este ritmo e este canto sem defender a democracia no sentido original dessa palavra: demokracia, onde demo significa povo e kracia significa poder. O poder para e do povo significa emanar a liberdade de expressão e a liberdade poética. Assim entendia racionalmente Sophia; tanto é que ela chegou a elaborar dezenas de Teorias Poéticas, onde esse entendimento é colocado quase como um manifesto. Enquanto, essa defesa, para Cecília, era quase um instinto.

Contos Exemplares e o Romanceiro da Inconfidência serão os livros onde a pauta pela liberdade e pela justiça se manifestará de forma mais consciente e direta, mesmo que seja através de alegorias. Elas refletem não necessariamente uma opinião política específica, mas o conflito social, histórico e humano pela livre expressão e pela inteireza. Cantos contra a opressão em todas as suas manifestações: social, histórica, de pensamento, mas principalmente, cantos contra a opressão da linguagem, que é uma premissa do Modernismo; a ruptura com as formas tradicionais que engessavam a criatividade e a liberdade no discurso. Contos e Romanceiro são obras densas, hibridas de narrativas e poesia como é a linguagem literária na Modernidade. A primeira é uma prosa poética e a segunda, uma poesia com prosa, conjunto de narrativas em versos na forma de romanceiro, assim como eram as epopeias.

Contudo, tanto em Contos quanto em Romanceiro, o que se sobressai é a poesia encarnada em histórias modelares e arquetípicas de comportamentos humanos e sociais. Enquanto no livro de contos de Sophia, há uma moral definida em cada história diante da suspensão do tempo, no Romanceiro da Inconfidência há um dialogo constante entre o ser histórico, personagem daquele momento retratado, e a humanidade presente em qualquer lugar e época. De acordo com Maria Zaira Turchi (1999 p.37). O Romanceiro da Inconfidência “se realiza numa dupla direção: uma, imediatamente histórica, e outra, que se aprofunda no mistério existencial. Na verdade, porém, trata-se de duas direções numa só […] fazendo parte de um destino supra – individual e coletivo”.  Neste sentido, o Romanceiro faz do fato histórico um caminho para uma busca intensa das profundezas do ser, onde o exterior reflete o interior, os acontecimentos refletem os símbolos, o todo expressa a unicidade, as personagens, os arquétipos literários e o coletivo, o individuo.

Os arquétipos em o Romanceiro da Inconfidência estão relacionados com a construção de um novo país, o mito fundador de uma nação, tão importante para o gênero épico, enquanto Contos Exemplares também procura o seu mito fundador, modularmente pela fundação de um novo ser – humano.  Contudo, a fundação de um novo país quanto de um novo ser-humano tanto em uma obra, quanto na outra, se mostra uma grande impossibilidade só resolvida pela mística do sonho. A própria forma escolhida por Cecília, que é o romanceiro, faz alusão a uma gênese linguística comum da Península Ibérica, na qual se une o lírico e o romance, gênero poético altamente musical da tradição oral, típico da Idade Média, manifestado por meio de jograis em redondilhas maiores com rimas assonantes. Enquanto Sophia escolhe o conto como a forma inicial.

Ressalta nas duas poetas, esse desejo de resgate ao início dos inícios, palavra, conto e canto. Como é presente no primeiro ‘romance’ de Romanceiro da Inconfidência que, não por acaso, chama “Fala Inicial”, o que caracteriza não apenas a introdução à história a ser contada e cantada, aos romances que virão no livro, mas também à primeira fala humana, ao nascimento da linguagem, tanto para o ser, confundindo-se com a fala materna num misto de ternura e aprendizado, quanto para a história quando o homo-sapiens se descobre através dela mais do que bicho, descobre-se gente. “Fala Inicial” assume no Romanceiro da Inconfidência o início e o fim, já que, essa passagem demonstra quase em forma de premunição, todo enredo que virá. Não é a toa que a marcação dessa passagem graficamente é diferente da do enredo capturado em cada romance, ela se apresenta em itálico, sinalizando que ali; a voz dominante é a da poeta – narradora, com a função muito parecida que havia no coro das tragédias, a de ser uma personagem coletiva que introduz e canta o drama que será lançado durante o enredo:

Fala Inicial

Não posso mover meus passos
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que os amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

(MEIRELES, 2001 p. 744)

O arrepio da morte, a voz da condenação, a sombra das angústias, as chaves do coração demonstram o quanto a narrativa de Cecília almeja não apenas a reconstrução da memória de um importante fato histórico para o país, mas sim a investigação suprema da subjetividade humana. O labirinto maior, a ser desvendado, não é somente aquele que se desenvolve exteriormente com os percalços dos acontecimentos, fatos e materiais históricos, mas os labirintos da alma, do espírito e da mente são muito mais difíceis de sair e de se encontrar neles, por serem na maior parte, escondidos e negados pelo lado de fora. Na verdade, o que o Romanceiro da Inconfidência ensina em sua leitura é o quanto os fatos históricos traumáticos são puros reflexos de subjetividades atormentadas, tolhidas e oprimidas.  Por essa razão, “Fala Inicial” também se torna a fala final, nascimento e morte, exterior e interior, fechando o grande poema (pois apesar de dividido em romanceiros e cantos, a obra pode ser analisada como um só poema no todo) num enorme ciclo.


Texto original em português do Brasil



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