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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Explosão do negócio privado da saúde em Portugal

Eugénio Rosa
Eugénio Rosa
Licenciado em economia e doutorado pelo ISEG

Esta é a terceira parte de um estudo com o título “O agravamento das dificuldades do SNS, a falta de medidas no programa do atual Governo, o aumento das despesas das famílias com a Saúde e a explosão do negócio privado de saúde em Portugal à custa do SNS, da ADSE e das famílias.






Estudo –  3.ª Parte

A explosão do negócio privado da saúde em Portugal, o seu financiamento pelo SNS e pela ADSE e a concentração crescente no setor privado da saúde que aposta, para se consolidar, na degradação do SNS

O negócio privado da saúde explodiu em Portugal nomeadamente nos últimos anos. Entre 2007 e 2017, o número de hospitais privados aumentou de 99 para 114, representando neste último ano já  50,7% do número total de hospitais existentes no país.

Mas é a nível dos grandes grupos de saúde, alguns deles já controlados por entidades estrangeiras, (Grupos Luz, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa, grupo Hospitais Privados do Algarve) que se tem verificado um enorme crescimento (explosão)  os quais têm absorvido/engolido/destruído  os pequenos e médios hospitais, assim como as policlínicas existentes, tornando os consultórios de médicos cada vez mais uma recordação/relíquia do passado, e transformando a maioria dos médicos e outros profissionais de saúde (incluindo os que trabalham também  no setor publico da saúde)  em autênticos “proletários descartáveis” aos quais pagam uma percentagem do preço que cobram ao doente, ou por peça (ex. por cada operação que fazem), sem qualquer vinculo de trabalho permanente.

Esta explosão do negócio da saúde em Portugal, ou melhor, dos grandes grupos de saúde, tem sido feita fundamentalmente à custa do SNS e das suas dificuldades e dos subsistemas públicos de saúde, nomeadamente da ADSE, que os financiam.

O próprio SNS tem financiado em larga escala o setor privado da saúde e fornecido trabalhadores altamente qualificados (médicos e enfermeiros) a preços baratos sem encargos adicionais para os grupos privados de saúde (não têm de suportar encargos sociais nem têm de pagar subsidio de férias e de Natal).

Os subsistemas públicos de saúde, em particular a ADSE, têm tido também um papel fundamental na promoção dos grandes grupos privados de saúde, na medida que lhes concedem um tratamento preferencial em prejuízo dos médios e pequenos prestadores que muito dificilmente conseguem assinar uma convenção com a ADSE e que são engolidos pelos grandes grupos (como membro do conselho diretivo da ADSE eleito pelos representantes dos beneficiários tenho procurado mudar esta realidade mas em vão já que tenho  encontrado uma forte oposição dos dois membros nomeados pelo governo, que constituem a maioria do conselho diretivo)

O quadro que a seguir se apresenta, retirado do relatório e contas divulgado pelo Ministério da Saúde, mostra a enorme dimensão do financiamento do setor privado de saúde pelo SNS.

Quadro 6 – Despesa corrente do SNS em milhões €

Despesa Corrente do SNS – Milhões € – Orçamento do SNS 2018 2019
I. Despesas correntes 9 507 10 027
1. Despesas com pessoal 3 968 4 155
2. Compras de Inventários (aquisições de bens) 1 720 1 834
3. Fornecimentos e serviços externos 3 726 3 922
3.1. Produtos vendidos em farmácias 1 259 1 335
3.2. Meios complementares de diagnóstico e terapêuticas e outros subcontratos 1 234 1 166
3.3. Parcerias Público-Privadas (PPP) 444 474
3.4. Outros subcontratos 169 185
3.5. Fornecimentos e Serviços 620 762

 

Como se conclui rapidamente dos números do quadro anterior, que são os do orçamento do SNS de 2018 e 2019, divulgados pelo Ministério da Saúde, em 2018, o SNS financiou o setor privado da saúde com 5.446 milhões €, sendo 3.726 milhões € com “Fornecimentos e serviços externos” e, em 2019, esse financiamento aumentou para 5.756 milhões €, sendo 3.922 milhões € de “Fornecimentos e serviços externos”.

Só os Hospitais PPP custaram ao SNS 444 milhões em 2018 e, em 2019, essa fatura passada pelos grandes grupos de saúde ao SNS subirá para 474 milhões €, ou seja, um crescimento de 6,8%, i.é, 7,6 vezes superior ao aumento percentual dos rendimentos do SNS em 2019 que foi apenas de 0,9% como se referiu anteriormente. 

 

Como a ADSE financia os grandes grupos privados da saúde

O quadro seguinte dá uma ideia da dimensão do financiamento dos grupos privados de saúde pela ADSE.

Quadro 7 – A dimensão do financiamento dos grandes grupos privados da saúde pela ADSE

Grupos de Saúde e Facturação apenas no regime convencionado 2015 – Milhões € 2016 – Milhões € 2017 – Milhões € 2018 – Milhões € SOMA – Milhões €
Luz 90,2 94,4 89,6 82,2 356,4
José de Mello Saúde 40,8 45,8 52,2 53,7 192,5
Lusíadas 41,3 44,7 45,2 41,1 172,4
Trofa 25,9 29,6 31,3 32,4 119,3
HP Algarve 7,9 9,6 10,4 10,4 38,3
SOMA 206,2 224,1 228,7 219,8 878,8
Total Regime Convencionado 346,3 375,2 387,6 377,1 1 486,2
% 5 Grupos no Reg. Convencionado 59,5% 59,7% 59% 58,3% 58,3%

 

Em 4 anos, os cinco maiores grupos privados de saúde faturaram e receberam da ADSE 878,8 milhões €. E o quadro anterior só inclui a despesa da ADSE com o chamado Regime convencionado. Para além deste, a ADSE tem também o chamado Regime livre, com o qual gasta cerca de 160 milhões € por ano, sendo uma parte importante desta despesa também paga a estes cinco grandes grupos que dominam completamente o setor privado da saúde em Portugal e que estão a “engolir” gradualmente, mas de uma forma implacável, os pequenos e médios prestadores.

A ADSE, por ser o maior “cliente” destes grupos tem um enorme poder potencial de mercado que não é utilizado. Infelizmente devido à existência de um conselho diretivo dominado pelos representantes do governo que têm uma posição pouco firme perante aqueles grupos, criou-se uma situação de indefinição e pantanosa quer na implementação de novas tabelas do Regime convencionado quer nas regularizações de que se aproveitam os grandes grupos privados.

Para se poder ficar com uma ideia clara de como funciona o negócio privado da saúde no nosso país, e como a ADSE os financia, apresentam-se seguidamente dois quadros com preços de medicamentos e de próteses faturados a ADSE por diferentes prestadores privados.

Quadro 8 – Preços dos mesmos medicamentos faturados à ADSE por diferentes prestadores

Códigos dos medicamentos CHNM Designação do medicamento Preço facturado por diferentes prestadores pelo mesmo medicamento (alguns exemplos)
Preço mínimo (€) Preço máximo (€) Diferença euros Diferença em %
10 002 890 Paracetamol 250 mg 0,12 3,66 3,54 2 950,0
10 003 070 Prednisolona 20 mg 0,10 4,75 4,65 4 650,0
10 005 896 Omeprazol 40 mg 0,43 8,85 8,42 1 958,1
10 016 985 Glucose 50 mg/ml 0,92 10,60 9,68 1 052,2
10 033 408 Bacitracina 35,2 mg 0,21 3,03 2,82 1 342,9
10 047 112 Tramadol 50 mg 0,18 1,79 1,61 894,4
10 067 008 Duloxetina 30 mg 0,62 6,63 6,01 969,4
10 068 455 Macrogol 40 0mg pó 0,62 12,67 12,05 1 943,3
10 069 030 Rosuvastatina 5 mg 0,92 10,00 9,08 987,0
10 080 589 Timolol 1 mg+ 0,56 18,39 17,83 3 183,9
10 089 734 Levotiroxina sód. 0,112 mg 0,05 0,66 0,61 1 220,0
10 108 664 Carbomero 2,5 mg 0,14 8,26 8,12 5 800,0

 

As diferenças de preços nos mesmos medicamentos faturados por diferentes prestadores privados atingem 2950% (30,5. vezes mais) e mesmo de 5800% (59 vezes mais). E não existe nenhuma entidade oficial (governo, IGAS; ERS, AdC) que ponha qualquer limite a esta diferença escandalosa de preços e faça qualquer controlo a estes comportamentos.

Atualmente uma das maiores fontes de lucros para os grandes grupos privados de saúde não são os atos médicos que realizam (consultas, cirurgias, etc.) mas sim o material (ex. próteses), medicamentos, e MCDT que vendem. Funcionam como autênticos intermediários dos produtores de dispositivos médicos (agora a moda é serem utilizados uma única vez e depois deitados fora para se poder faturar mais) e dos laboratórios cobrando à ADSE preços exorbitantes que ninguém controla. Médicos e enfermeiros, e outros profissionais de saúde, são os novos proletários do séc. XXI, e são instrumentos do negócio gigantesco que é a saúde privada.

Situação semelhante se verifica com os preços faturados por diferentes prestadores à ADSE pelas próteses colocadas nos beneficiários como mostra o quadro 9

Quadro 9 – Preços das mesmas próteses faturadas à ADSE por diferentes prestadores

Códigos das próteses CDM Preço facturado por diferentes prestadores pela mesma prótese (alguns exemplos)
Preço mínimo (€) Preço máximo (€) Diferença euros Diferença em %
14 736 160 19 345 31 141 11 796 61,0
15 894 143 2 458 11 726 9 268 377,1
14 239 175 23 150 29 574 6 424 27,7
11 895 292 725 4 333 3 608 497,7
12 485 977 792 3 723 2 931 370,1
13 844 849 3 184 5 702 2 518 79,1
13 557 351 455 2 501 2 046 449,7
13 847 740 1 144 2 998 1 854 162,1
11 061 480 509 2 327 1 818 357,2
16 711 599 303 2 058 1 755 579,2
16 765 796 445 1 593 1 148 258,0
11 954 906 227 1 299 1 072 472,2
11 059 915 1 272 2 282 1 010 79,4

 

A diferença de preços faturados pelos diferentes prestadores chega a atingir 11.796€ para a mesma prótese e em percentagem varia entre 61% e 579,2%. E os preços mais baixos já incluem naturalmente margens razoáveis de lucro, mas para outros prestadores essas margens ainda não são suficientes. Como o céu é o limite nos códigos abertos que aproveitam para multiplicar várias vezes as margens de lucros faturando à ADSE preços exorbitantes que são pagos com os descontos dos trabalhadores e dos aposentados da Função Pública.

É esta a forma como funciona o negócio de saúde privada no nosso país, portanto muito diferente da lógica de funcionamento do SNS, o que é até facilitado por  toda uma cultura de descontrolo que se instalou na ADSE, com a conivência dos sucessivos governos, que se está agora a tentar alterar, mas que está a ser muito difícil devido à ausência de vontade firme para o fazer.

Para se poder ficar com uma ideia das consequências deste descontrolo a nível da despesa permitida pelo governo e pelas sucessivas direções nomeadas por ele, interessa ainda referir que a ADSE pretende regularizar esta situação, cortando a faturação excessiva, mas a oposição dos grandes grupos de saúde é muito grande e a ameaça de rescindirem as convenções é grande se a ADSE não aceitar as suas exigências, nomeadamente a nível das chamadas “regularizações” ou seja, visando recuperar o que foi cobrado a mais fundamentalmente pelos grandes grupos de saúde que só no período 2015/2018 somam cerca de 60 milhões € (cerca de 80% é referente aos 5 maiores grupos privados de saúde) mas que ninguém tem a coragem de cobrar.

A cobrança devido à pressão dos grandes grupos privados tem sido sucessivamente adiada. A situação é pantanosa e tem existido pouca firmeza na defesa da ADSE por parte dos membros do conselho diretivo da ADSE nomeados pelo governo que constituem a maioria.

É preciso dizer, para que fique clara a minha posição, que, no atual paradigma da ADSE,  os grandes grupos privados de saúde são necessários à ADSE e aos seus beneficiários, porque são eles que possuem, no setor privado, os maiores e melhores hospitais com capacidade para realizar os atos médicos mais complexos (cirurgias).

Mas o que é necessário é estabelecer uma relação mais equilibrada entre esses grupos e a ADSE, que não existe, e controlar os preços que praticam. E isto é necessária para que os interesses da ADSE e dos beneficiários sejam defendidos, o que ainda não acontece porque apesar do Decreto-Lei 33/2018 ter determinado que o conselho diretivo da ADSE fixe preços máximos a pagar por próteses, medicamentos e procedimentos cirúrgicos, isso ainda não aconteceu e os prestadores continuam a poder faturar o preço que querem,  porque  aquele Decreto-Lei continua por cumprir  1,5 anos após a sua publicação e o governo nada faz.

 

O fornecimento pelo SNS de mão de obra altamente qualificada e barata aos grandes grupos de saúde

Outra forma de promover e financiar o negócio privado da saúde em Portugal. A necessidade de remunerações e carreiras dignas em troca da exclusividade

A promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde que trabalham simultaneamente no SNS e nos grandes grupos privados, o que contribui também para a baixa produtividade e mesmo para a desresponsabilização que se verifica em muitas áreas do SNS, consentida e até promovida pelos sucessivos governos que se têm recusado a acordar com os representantes destes profissionais remunerações e carreiras dignas em troco da exclusividade, constitui, objetivamente, por um lado,  uma forma  importante de financiamento dos grandes grupos privados de saúde que é muitas vezes ignorada ou subestimada e, por outro lado, um instrumento de descapitalização e destruição do SNS.

Quem conheça a forma de funcionamento de pequenos, médios mas fundamentalmente dos hospitais dos grandes grupos privados de saúde sabe bem que eles possuem um reduzido corpo clínico próprio e permanente, que designam por “médicos e enfermeiros residentes”.

Para além destes  possuem uma enorme carteira constituída por centenas de médicos e também de enfermeiros que trabalham no SNS, a quem  recorrem apenas quando têm serviço (consultas, operações etc.), e a quem pagam normalmente à peça (por ex. um preço por operação que realizam que constitui apenas uma parcela que recebem do doente) ou à percentagem (por ex. 70% do preço cobrado ao doente por uma consulta ou 20% por um TAC). Faz lembrar as antigas praças de jorna no Alentejo.

A esmagadora maioria destes profissionais do SNS não têm vínculo permanente com os hospitais privados, por isso os grupos privados não têm de suportar quaisquer outros encargos para além das percentagens ou do preço pago por ato médico realizado. Não têm suportar despesas com a Segurança Social ou CGA, nem  têm de pagar subsidio de férias e de Natal, diferentemente do que sucede com o SNS.

Os grandes grupos privados de saúde têm acesso a trabalhadores altamente qualificado a um preço muito baixo (trabalho barato e altamente precário) devido à existência do SNS, à ausência de remunerações, carreiras e condições de trabalho dignas no SNS causado pelo seu subfinanciamento crónico, à promiscuidade-publico privado dominante, e à ausência de exclusividade e à  má gestão e baixa produtividade que lhes  estão naturalmente associadas.

Os grandes grupos privados da saúde, é preciso ter a coragem de o afirmar com clareza, só têm conseguido prosperar, e desenvolver-se da forma como tem acontecido em Portugal à custa do SNS, nomeadamente dos seus profissionais e dos seus recursos financeiros e dos subsistemas públicos de saúde (ex.: ADSE).

O quadro 10, que a seguir se apresenta, mostra em números o caráter parasitário dos hospitais privados fundamentalmente dos grandes grupos de saúde em relação ao SNS, em termos de profissionais altamente qualificados. Se se quiser controlar e reduzir a explosão do negócio privado da saúde em Portugal é criar as condições necessárias e impor a exclusividade aos profissionais de saúde que querem desenvolver a sua atividade do SNS. Matava-se a assim a “galinha de ouro” dos grandes grupos privados de saúde que teriam de pagar dignamente aos seus profissionais (atualmente, a maioria recebe à peça ou à percentagem e tem trabalho precário)

Quadro 10 – A promiscuidade público-privada está destruir o SNS: os grupos privados de saúde florescem à custa dos profissionais de saúde do SNS

Natureza Institucional 2007 2011 2014 2015 2016 2017
Total – Hospitais 198 226 225 225 225 225
Hospital público e PPP 99 123 118 114 111 111
Hospital privado 99 103 107 111 114 114
Total – Médicos 21 024 20 539 21 893 22 874 24 003 25 130
Hospital público e PPP 17 675 18 616 19 618 20 231 20 933 21 897
Hospital privado – Médicos 3 349 1 923 2 275 2 643 3 070 3 233
Total – Enfermeiros 32 090 37 090 36 532 37 838 39 820 41 107
Hospital público e PPP 29 330 33 935 33 143 34 414 36 020 36 883
Hospital privado – Enfermeiros 2 760 3 155 3 389 3 424 3 800 4 224
A percentagem de hospitais privados e de médicos e enfermeiros nos privados
% Hospitais privados / Total 50,0 45,6 47,6 49,3 50,7 50,7
% Médicos nos H. Privados 15,9 9,4 10,4 11,6 12,8 12,9
% Enfermeiros H. Privados 8,6 8,5 9,3 9,0 9,5 10,3
Fonte: INE

Em 2017, apenas 12,9% dos médicos e 10,3% dos enfermeiros tinham um vínculo permanente com os hospitais privados, constituindo aquilo que eles designam por “corpo clínico residente”. A maioria dos restantes milhares de médicos e enfermeiros “utilizados” pelos grandes grupos privados de saúde pertenciam à sua carteira de profissionais mal pagos e, infelizmente, também no SNS. É clara a natureza parasitária nomeadamente dos grandes grupos privados da saúde em relação ao SNS, relativamente a profissionais de saúde altamente qualificados e baratos.

Os grandes grupos privados de saúde não existiriam nem se desenvolveriam, da forma como se tem verificado em Portugal, se não existisse o SNS e também os subsistemas públicos de saúde. As dificuldades que os sucessivos governos têm criado ao SNS – subfinanciamento crónico do SNS, interferência continua na sua gestão, estrangulamento financeiro por parte do Ministério das Finanças, falta de autonomia, nomeação de administradores e de direções pouco competentes que são muitas vezes autênticos comissários políticos obediente do governo, etc.- e também à ADSE têm constituído um maná para os grandes grupos privados da saúde em Portugal. Se não se puser um travão a tudo isto a destruição do SNS continuará e as dificuldades da ADSE aumentarão

O quadro 11 mostra a despesa corrente com a saúde que não é paga pelo SNS e pelos SRS da RA.

Quadro 11 – Repartição da despesa corrente da saúde em Portugal no período 2000/2018

ANO Despesa Corrente com saúde em Portugal 1000€ Percentagem da despesa TOTAL que não é do SNS nem dos Serviços Regionais de Saúde (Açores e Madeira)
TOTAL SNS + Serviços Regionais Saúde Açores e Madeira Despesa corrente com saúde excluindo a so SNS e a dos SRS dos Açores e Madeira
2000 10 758 798 6 306 973 4 451 825 41,4%
2001 11 414 934 6 626 220   4 788 714 42,0%
2002 12 206 461 7 104 734 5 101 727  41,8%
2003 13 010 302 7 485 835 5 524 467 42,5%
2004 14 163 666 8 113 980 6 049 686 44,1%
2005 14 966 348 8 609 589 6 356 759 45,2%
2006 15 188 768 8 49 615 6 698 153 45,2%
2007 15 907 572 8 715 161 7 192 411 44,1%
2008 16 729 079 9 162 818 7 566 261 45,2%
2009 17 332 440 9 715 227 7 617 213 43,9%
2010 17 332 440 10 507 205 7 160 957 40,5%
2011 16 790 717 9 640 572 7 150 145 42,6%
2012 15 742 27 8 991 558 6 750 385 42,9%
2013 15 476 704 9 070 198 6 406 506 41,4%
2014 15 615 760 9 086 268 6 529 492 41,8%
2015 16 132 90 9 238 315 6 893 875 42,7%
2016 16 853 780 9 593 111 7 260 669 43,1%
2017Po 17 456 492 9 932 487 7 524 005 43,1%
2018Pe 18 345 065 10 484 715 7 86 350 42,8%
Var. 2000/18 70,5% 66,2% 76,6% 3,5%
Fonte: INE

A despesa corrente de saúde em Portugal que não é paga pelo SNS e pelos Serviços Regionais de Saúde dos Açores e da Madeira tem aumentado muito mais do que a despesa pública com saúde (SNS*DSRS).

Entre 2000/2018, a despesa do SNS mais a despesa dos Serviços Regionais de Saúde das Regionais Autónomas aumentou 66,2%, enquanto a restante despesa corrente com saúde cresceu em Portugal 76,6%. Em 2018, esta última representava já 42,8% da despesa total corrente com a saúde em Portugal. A explosão do negócio privado da saúde está intimamente associado ao crescimento significativo desta despesa e às dificuldades do SNS.

 

A concentração enorme e crescente no setor da saúde privada em Portugal e algumas conclusões finais para reflexão e debate

Tem-se assistido nos últimos anos a uma crescente concentração no setor privado de saúde com a liquidação ou absorção pelos grandes grupos de saúde dos pequenos e médios hospitais e mesmo de policlínicas. Os cinco grandes grupos de saúde – Luz, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa e Grupo Hospitais Privados do Algarves – alguns deles já totalmente controlados por grupos estrangeiros (ex.:Luz e Lusíadas), dominam já completamente o setor privado de saúde em Portugal tendo  áreas geográficas preferenciais de atuação. E continuam a crescer rapidamente como acontece com o grupo Luz que duplicou recentemente a sua capacidade de produção nomeadamente em cirurgia, com o grupo JMS que está a terminar um grande hospital em Lisboa, e com o grupo Trofa que abriu recentemente um hospital na Amadora e uma grande Policlínica em Loures.

Os pequenos e médios prestadores privados de saúde (hospitais de Misericórdias e de IPSS, policlinicas consultores de  médicos, etc.), estão a ser destruídos ou engolidos pelos grandes grupos de saúde que gozam de um tratamento preferencial junto do SNS e dos subsistemas públicos de saúde (ex. ADSE), Em tudo isto os beneficiários, que financiam a ADSE;  acabam por serem prejudicados pois o acesso a cuidados de saúde, financiados pela ADSE, é difícil em muitas regiões do país devido à recusa desta  em se assinar convenções com os pequenos e médios prestadores locais (exs: hospitais das Misericórdias e de IPSS e Policlínicas de proximidade). E esta cultura ainda não se conseguiu alterar na ADSE.

A defesa do SNS, uma das mais importantes conquistas de Abril, é fundamental para todos os portugueses, o que passa, a meu ver, por um financiamento seguro, certo e  adequado, o que exige a inclusão na lei de uma da “norma travão”, por carreiras, remunerações e condições de trabalho dignas para os seus profissionais, o que não acontece atualmente, pela imposição da exclusividade aos profissionais que queiram trabalhar no SNS, pela eliminação da promiscuidade publico-privado que gera a má gestão e baixa produtividade, por uma gestão baseada na competência, na autonomia e responsabilização, que não existe atualmente, pela eliminação do enorme outsourcing (aquisição de serviços a privados) que é também uma forma de privatização do SNS, etc..

E tudo isto não se alcança apenas com grandes declarações  sobre a necessidade de defender o SNS nem com a ausência de normas  concretas que garantam condições de funcionamento, como acontece na nova Lei de bases da saúde (Lei 95/2019), que não estabelece nada de concreto em relação a questões essenciais para a consolidação do SNS (financiamento, exclusividade, autonomia, boa gestão, produtividade, responsabilização, etc,.). Vamos agora ver como o novo governo PS/Costa/Centeno regulamenta a nova lei de bases da saúde, e se na sua regulamentação são suprimidas ou não as deficiências e omissões da Lei 95/2019 que referimos. O futuro o dirá.

 

O SNS, os serviços de saúde dos Açores e Madeira e a própria ADSE tê, até aqui, resistido aos ataques que têm sido sujeitos mas isso está a atingir o limite

Apesar dos violentos ataques que o SNS, os Serviços Regionais de Saúde das Regiões Autónomas têm sofrido – subfinanciamento crónico, cortes significativos nos orçamentos e cativações , interferências constantes do Ministério das Finanças na sua gestão diária, ausência de autonomia que gera a desresponsabilização, proibição de contratar os trabalhadores que necessita para prestar serviços com um mínimo de qualidade a utentes e beneficiários, submissão à obsessão de reduzir rapidamente o défice orçamental a zero, etc., etc – o mesmo sucedendo à ADSE que tem sofrido cortes arbitrários no seu orçamento e cativações, assim como ingerências diretas na sua gestão, através das representantes do governo no conselho diretivo; repetindo, apesar de todos estes ataques  o SNS e os SRS dos Açores e Madeira tem conseguido, até a esta data, manter ganhos de saúde, em algumas áreas,  superiores à média dos países da União Europeia como mostram os gráficos 7 e 8  que se apresentam mais à frente.

Em relação à ADSE, que é fundamentalmente financiada com os descontos dos trabalhadores da Função Pública e não pelo OE, o que precisa com urgência para garantir a sua sustentabilidade, e como temos com toda a clareza afirmado,  é  de uma direção mais profissional, mais assertiva na defesa dos interesses da ADSE e dos beneficiários, com competências de gestão para dirigir uma entidade com a dimensão que tem a ADSE (1.200.000 de beneficiários e mais de 600 milhões € por ano), e com uma visão estratégica, e menos dependente do governo, eliminando da ingerência deste na sua gestão corrente que a sujeita a objetivos que não os interesses dos beneficiários.

Gráfico 7 – Mortalidade infantil em Portugal e na União Europeia – 2016

Como revela a OCDE, em 2016,  a mortalidade infantil era, em Portugal de 3,2 mortes por 1000 nascimentos, enquanto a média nos países da União Europeia, no mesmo ano, atingia 3,6 mortes por 1000 nascimentos. Uma situação mais favorável para Portugal também se verificava a nível da esperança de vida à nascença como mostra o gráfico 7 também com dados da OCDE.

Gráfico 8 – Esperança de vida à nascença em Portugal e na União Europeia – 2016

Como revela a OCDE, em 2016, a esperança de vida em Portugal era de 81,3 anos, enquanto a média nos países da União Europeia era de 81 anos.

Os indicadores apresentados, que são os mais utilizados para avaliar os ganhos de saúde, revelam que, apesar dos ataques ao SNS, Portugal continua a apresentar valores mais favoráveis. No entanto, se os ataques continuarem é evidente que a saúde dos portugueses, que enfrentam já graves dificuldades no acesso a serviços, se degradará rápida e inevitavelmente.

E isso já começou  com a degradação crescente do SNS devido à politica do governo na área da saúde, totalmente subordinada à lógica do Ministério das Finanças (todos somos Centenos disse candidamente o anterior ministro da saúde) que tem a obsessão de défice orçamental zero, cujo titular se quer apresentar e brilhar em Bruxelas como “como bom e obediente aluno” , o que tem tido o apoio do 1º ministro como revela o programa do atual governo. E esta obsessão é tão grande que no próprio programa de governo se afirma que “ o primeiro objetivo a reter: a divida publica desce para próximo dos 100% do PIB no final da legislatura que agora se inicia”; e o segundo objetivo a reter: o saldo primário deve manter perto dos 3% do PIB(pág. 4 do programa do atual governo).

Portanto, os dois primeiros e principais objetivos deste governo para a legislatura que agora começa são meramente financeiros e de submissão à Comissão Europeia, secundarizando os interesses do país e dos portugueses.

Para o atual governo, estes últimos (os dos portugueses)  devem-se subordinar/sacrificar aqueles primeiros (os meramente financeiros: défice primário de 3%; divida publica descer para 100% do PIB) , pois até os enuncia abertamente e com toda a clareza no seu próprio programa, para que não haja ilusões afirmando mesmo que eles são os principais, logo tudo deve ser subordinado/sacrificado para os poder alcançar e poder depois dizer: “este é o governo de contas certas”. É este naturalmente o titulo com o qual quer ser condecorado e recordado.

E tudo isto é ainda mais grave porque há áreas da saúde, habitualmente esquecidas, onde a  situação de Portugal é preocupante, como mostram os dois gráficos seguintes do Health at a Glance-2019.

Gráfico 9 – Percentagem de adultos com diabetes Tipo I e Tipo II – 2017

 

Como o gráfico mostra a percentagem de adultos com diabetes em Portugal (9,9%) é superior em 54,6% à média dos países da OCDE (6,4%) em 2017, o que é preocupante. `

Outro aspecto preocupante é o revelado pelo gráfico 10, também do Health at a Glance-2019 .

Gráfico 10 – Percentagem de população com mais de 15 anos que consideram que o seu estado de saúde é mau ou muito mau – 2017

Em Portugal, em 2017,  15,3% da população com mais de 15 anos considerava que o seu estado de saúde  era mau ou muito mau, quando a média nos países da OCDE era, no mesmo ano, apenas 8,7%.

E segundo também a OCDE, em 2017, a população com mais de 15 anos que considerava que o seu estado de saúde era bom ou muito bom era, em Portugal, apenas 48,8% quando a média nos países da OCDE atingia, no mesmo ano, 68,1% (pág. 85 do  Health at a Glance-2019 ).

Tudo isto é preocupante e devia fazer-nos pensar sobre as consequências para os portugueses da política de saúde em Portugal que está a destruir o SNS e a ADSE e a promover em larga escala o negócio privado de saúde.

 

 





 


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