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Sábado, Dezembro 21, 2024

A menina Cabo-verdiana e a ressaca da Inquisição Portuguesa

Raghunath Kadavanoor
Raghunath Kadavanoor
Licenciado em Jornalismo pela Bharatiya Vidya Bhavan, Rajendra Prasad Institute Mumbai, estado do Kerala, Índia

Não é uma coisa rara nascer com uma falsa sensação de ter pedigree. Muitos portugueses imaginam-se de cor pura/“alma pura” o que poderá ter alguma coisa a ver com a memória colectiva da Inquisição portuguesa. Não é culpa ou pecado deles, mas a sua realidade sócio-cultural foi construída assim.

Penso que os Portugueses continuam psicologicamente a ser vítimas do “Tribunal do Santo Ofício” da Inquisição. A memória das fogueiras a o cheiro da carne dos supliciados mantém-se viva e ardente.

Os inocentes que atirem a primeira pedra

Os Portugueses continuam a atirar pedras, insultos e dão corpo à raiva e ao ódio. Desta vez o alvo foi a mãe Cabo-verdiana. Estes arremessadores de pedras são crédulos, singelos, cândidos, vão na procissão de vela acesa e não têm consciência da dor causada pela misantropia. Misantropia é uma palavra que desconhecem e cujo significado ignoram.

Todos ouviram os gritos e clamores destas almas puras a pedir justiça (sinónimo de castigo) mas nestas hostes justiceiras ninguém deu conta do âmago do assunto. O que aquela mãe fez, aos olhos das Portuguesas é “Heresia”. O que é “grave”, o que é criminoso para esta faixa da população, na minha opinião é uma “tentativa de atestar a pureza” da sua vida social.

A Inquisição foi  estabelecida em Portugal em 1515, procedimento feito a pedido do rei Dom Manuel I. Ele fê-lo para cumprir com o pacto de casamento da exigente e branca Maria de Aragão. Não sabemos porquê, mas desconfiamos dos motivos e da coincidência de a grande maioria das vítimas, mulheres, desta inquisição serem naturais das colónias de Portugal: Brasil, Guiné, Cabo Verde e Índia (Goa).

A história repete-se, desta vez, como farsa. A sociedade portuguesa democrata escolheu a sua vítima: “a menina/mãe Cabo-verdiana”. Não querem  saber da situação de pobreza e de abandono que viveu em Portugal, não querem saber da efectiva capacidade das supostas IPSS que caridosamente cuidam dos sem-abrigo, aqueles que Marcelo Rebelo de Sousa visita nas quadras festivas. Poderiam eventualmente estes puristas da legalidade justiceira juntar Sara às mulheres Portuguesas mortas  diariamente por violência doméstica. Sara não foi morta. Foi levada a tentar matar o próprio filho.

Quanto é que custa arrendar um quarto na “grande Lisboa”? Será mais barato do que montar uma tenda junto aos contentores do lixo perto do Frágil Lux onde os filhos da burguesia e os intelectuais bebem copos e se divertem?

Sara estava na rua, foi desprezada pela família, foi abusada e estava psicologicamente destruída. Aquele que não tiver culpas que atire a primeira pedra.

Recuperando a perícopa da adúltera

No Monte das Oliveiras os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério, puseram-na no meio de todos e disseram a Jesus: ‘Mestre, esta mulher tem sido apanhada em flagrante adultério. Moisés nos ordenou na Lei que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes?’ Isto diziam, experimentando-o, para ter de que o acusar. Jesus, porém, baixando-se, começou a escrever no chão com o dedo. Como eles insistissem na pergunta, levantou-se e disse-lhes:

 ‘Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra’. Tornando a baixar-se, continuou a escrever no chão. Mas ouvindo esta resposta, foram saindo um a um, começando pelos mais velhos, ficando só Jesus e a mulher no lugar em que estava. Então levantando-se Jesus, perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão eles? ninguém te condenou?’ Respondeu ela: ‘Ninguém, Senhor.’ Disse Jesus: ‘Nem eu tampouco te condeno; vai, e não peques mais”.

A sociedade produz cegamente as suas vítimas. A jovem Cabo-verdiana é uma das delas.  Chegou a Portugal, e meteu-se, tal como a imprensa diz, na prostituição. Tinha muitas “outras opções de vida”. Mas meteu-se alegremente na prostituição.

Encontrou-se na rua onde deu ao escândalo um bebê. É  momento para analisar muitas questões. Penso que em vez de apontar o dedo à mulher fragilizada, se apontem os problemas sociais que produzem estes resultados dramáticos.

Pobreza não é um crime. Milhares de Portugueses conhecem esta realidade. Mas talvez não tenham a capacidade, nem os conhecimentos, nem os meios de darem voz ao que sentem. O salário mínimo atual é de mais 78/84 euros mensais que em 1974. Os racionalistas têm que calar a boca. É melhor engolir os sapos do que tornar- se “policia moral” de boca aberta.

Não a queimem na fogueira, deixem-na sair da cadeia e ter a oportunidade de conhecer o filho

Ela é mãe e tem o peito cheio de leite. Além disso, o bebê precisa do calor dela. Nenhuma instituição de protecção dos bebés, nem nenhum juiz deviam  rejeitar esta realidade. Temos que meter na nossa cabeça que a “inquisição acabou em 1821” em Portugal. Às vezes é melhor lembrar nomes tal como Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, que se opôs explicitamente aos  métodos lenhosos da inquisição.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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