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Terça-feira, Julho 16, 2024

No centenário do nascimento de Sophia – Parte III

Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Adrienne Savazoni Morelato, de São Paulo
Mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo e poeta

Trajetórias Poéticas entre Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: Da gênesis da criação à poesia como salvação no espaço e no tempo – uma análise do  Percurso e do caminho comuns

Nos romanceiros da Idade Média, diversos temas eram tratados e eles eram subdivididos de acordo com eles: épicos, novelescos, líricos, históricos, o que se percebe, é que Cecília Meireles parece utilizar a força existente de cada um deles, criando um romance híbrido em que se sobressaia a poesia como forma de contestação. Nesta obra, o amor aparece diluído entre o conflito social e individual, se entrelaçando com a música entre a política e a história, como uma força aglutinadora, rompedora e subversiva da velha ordem do mundo. A mesma velha ordem que em Contos Exemplares também se quer combater, por meio de novos arquétipos, pela restauração dos mitos fundadores e, principalmente, pela linguagem poética.

As figuras arquetípicas da louca, do revolucionário, do Judas traidor na imagem do delator, o caçador feliz, a donzela assassinada, o rei em Chico Rei, do negro nas catas, da donzelinha pobre, enfim, figuras de formação de um novo mundo, não se diferenciarão de figuras como o Bispo, o homem e a mulher de “A Viagem”, Búzio, porque encarnam a busca pela materialidade inicial com aquilo que já existe. Não há como destruir totalmente o presente histórico e a imperfeição, mas há de se usar os regressos para fazer destes; a estrada invisível para o descobrimento da verdadeira essência humana. Seres exemplares para novos tempos; inconfidentes, pois: “Caçador que anda na mata,/ são bichos que vais caçando,/ ou caças o que não dizes?” (MEIRELES, 2001 p.758).

Ressalta-se o caráter atemporal de ambas as obras, embora esse atemporal pareça ser mais palpável em Exemplares. Lembrar que Sophia batizou o seu livro de contos com esse nome para relacioná-lo com Novelas Exemplares de Cervantes. A comparação serve para direcionar de forma indireta o livro de Sophia para o cânone, enquanto realça o caráter arquetípico dos contos. Neste livro de Cervantes, há um desdobramento didático e moral nas histórias que de alguma forma será aplicado também nos contos da poeta portuguesa com o intuito de transformar cada narrativa em um modelo não apenas de contar, mas de viver. E como modelo, o tempo e o espaço são diluídos para que a narrativa se estabeleça além deles.

Já Cecília Meireles escolheu um momento histórico específico como o da Inconfidência Mineira para ser retratado, o que colocou esse atemporal de uma maneira mais amena.  Isto obriga o leitor a fazer a conexão necessária desse movimento do século XVIII com a sua época com o objetivo de extrair-lhe os valores essenciais que  lhe irão servir de análise com o real o seu mundo. O que significa que, em o Romanceiro, o atemporal se revela quando se ultrapassa o fato narrado e localizado para extrair dele; a poesia que o transforma em fato permanente, outro exemplo do ser – humano com outros seres humanos e com o mundo.

Já o livro de Sophia, parece ter sido construído em um tempo mítico, onde o ser permanece ou em uma atmosfera regressa até o nada surgir como é o caso do conto “Praia” e “A Viagem”. Nestes contos, o ser tem diante de si; um ciclo eterno de imagens e ações que traduzem sentimentos e ideias vitais da humanidade, enquanto  construção social como é o caso de “O Jantar do Bispo”. Há constantemente em Contos Exemplares, a presença de uma fabulação de origem em cada história, como se em cada passagem, o ser humano pudesse retomar, através da recusa de valores tidos como imutáveis, o seu elo perdido. Recusa-se valores que não refletem o sonho nem a alma.

Este livro vem ao encontro do projeto inicial da poeta portuguesa para a poesia e para a vida em suas próprias palavras: “a luta contra a treva e a imperfeição” (ANDRESEN, 2019). Purifica-se o espírito do ser através das palavras, negando os defeitos e as injustiças. Não é uma recusa da realidade vivida, é a retomada do que é verdadeiramente essencial e satisfatório. A autora mostra nestes contos, como se perde tempo com insignificâncias, quando a impossibilidade dolorosa da permanência do corpo deveria ser celebrada, para que o presente pudesse retomar o seu verdadeiro sentido. No conto “Naufrágio”, por exemplo, o abandono do afogado, entre a areia e a onda, dita uma espera luminosa pela transcendência, quando o que se obtém é a imanência com o lugar.

Bachelard em seu livro L´eau e les rêves (1974) revela que toda a experiência marítima nos guia para uma experiência narrativa, ou seja, o mar em si mesmo é história, porque remete o humano à saga heroica diante do improvável e do desconhecido. Confrontar o  mar é retornar para as águas primitivas, berço da origem da vida, nos remetendo ao útero primordial, isto é, a casa primeira. O naufrágio, como um ser estabelecido entre as ondas e a praia, vivifica outro símbolo: a lama, ou a mistura da água com a terra.

Para a Bíblia (1969), a lama é a matéria-prima do corpo humano, aquela que irá moldar o primeiro homem e a primeira mulher. A terra molhada resgata a função da água e das lágrimas de penetrar o sólido e amolecê-lo: “Ambos, ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra” ( ANDRESEN, 2002 p.103) . A chuva e a lágrima fecundam a terra e dá a ela sua função de abrigo do feto de uma nova planta e do alimento mantenedor da vida de outros bichos. E com o mesmo sentido que aparece nos contos e poemas de Sophia, a terra e a lama irão aparecer na poesia de Cecília como no início do poema Lembrança rural:

 

Lembrança rural

Chão ver e mole. Cheiro de selva. Babas de lodo,
A encosta barrenta aceita o frio, todo nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.

(MEIRELES, 2001 p.354)

 

Ou como no poema seguinte “Descrição”: Amanheceu pela terra/ um vento de estranha sombra/que a tudo declarou guerra. (MEIRELES, 2001 p.355). Neste caso, percebe-se que o elemento terra não vem acompanhado sozinho. De preferência, sempre com a água ou com o ar, mas a terra solitária não é mais que um espaço do deserto, não cumpre a sua função de casa, pois não abriga, não protege e não faz nascer. Ela  necessita da água principalmente para se tornar completa e una; o barro e a lama, ou mesmo a rocha para ser solo, a água a modula e é com esse poder que ela a transforma como nestes versos do poema “Exílio”:

 

Exílio

Das tuas águas tão verdes
Nunca mais me esquecerei.
Meus lábios mortos de sede
Para as ondas eu inclinei.
Romperam-se em teus rochedos:
Só bebi do que chorei.

(MEIRELES, 2001 p.341)

 

Os rochedos são os primórdios da terra, a face nua do planeta antes da origem da vida. A imagem das ondas rompendo os rochedos, não é nada mais que uma cena composta dos tempos imemoriais, tempo no qual o humano, os bichos e as plantas ainda nem se imaginavam presentes na face do mundo. Um lugar onde não havia as horas e os minutos, apenas uma eternidade galopante. A poeta evoca esse poder de atravessar, com as palavras e poesia, o início dos inícios. Nele, não haveria ainda terra e água, mas apenas rochas e oceanos. Ela coloca o seu corpo em face de esse momento, lábios a beber dessa ruptura entre rochedos e ondas, vasta amplidão inicial e indescritível para a humanidade, por não ter como retornar para onde nunca esteve. A sede dos lábios mortos é desse espaço inicial tão puro.

“Exílio” transpassa várias passagens do tempo e do espaço em um mesmo poema. Se o seu início busca levar o corpo da poeta para o corpo de um planeta nu e solitário em seus inícios, onde o vago e o permanente andam juntos, nas outras estrofes, a viagem se estende para o sonho; “Recordo tanto o martírio/ Em que andou meu pensamento!/E os meus sonhos ainda giram/ Como naquele momento”, a anunciação e o apocalipse:

 

Exílio

Perderam-se os meus suspiros
Desanimados, no vento.
Recordo tanto o martírio
Em que andou meu pensamento!
E os meus sonhos ainda giram
Como naquele momento

Os marinheiros cantavam.
Ai, noite do mar nascida!
Estrelas de luz instável
Saíam da água perdida.
Pousavam como assustadas
Em redor da minha vida.

Dos teus horizontes quietos
Nunca mais me esquecerei
Por longe que ande, estou perto,
Toda em ti me encontrarei,
Foste o campo mais funesto
Por onde me dissipei.

Remos de sonho passavam
Por minha melancolia.
Como um náufrago entre os salvos,
Meu coração se volvia.
_ Mas nem sombra de palavras
Houve em minha boca fria.

Não rogava. Não chorava
Unicamente morria.

(MEIRELES, 2001 p.341 -342)

 

Na segunda estrofe, Cecília emprega as palavras recordar, sonho e pensamento como se essas três coisas fossem ações de um movimento só, no caso aqui do vento, o qual nada mais seria do que o canal onde percorre os suspiros e os lamentos da poeta. Contudo, o vento que era o meio de transporte se transforma na própria voz- corpo de Cecília quando evocado, não apenas como uma mera ultrapassagem de espaços e sim como um atravessador de tempos. “Naquele momento” é o passado incontável, somente atingido pelo vento encarnando a voz e corpo de quem suspira.

Já na terceira estrofe, os marinheiros cantam, ou seja, outras vozes se aproximam e a vida já fora criada, os humanos estão no mar e, do canto, nasce a contação. As histórias vibram do mar – da água perdida como a vida salta dela para a terra. Pois, apenas no mar ou nas histórias, as estrelas podem chegar tão perto do horizonte da paisagem e do corpo humano. Nada melhor que um ai “Ai, noite do mar nascida”, tão parecido com os ais das cantigas medievais, as quais não deixam de ser a origem da língua portuguesa, para traduzir a expressão de espanto diante do gênesis propagado pelo poema.

E como uma canção de criação e anunciação, ele continuará a buscar um encontro, aquele que talvez fosse destruído pela civilização – o encontro do corpo com a natureza e a espera pela a unificação com outro ser: “Por longe que ande, estou perto/Toda em ti me encontrarei”. Canta-se e conta-se ao mesmo tempo quando até o silêncio fala. E quando o silêncio fala, é porque houve um retorno ao começo de tudo, já que, antes da palavra existir, o som antecedente era o murmúrio do nada: “Dos teus horizontes quietos/ Nunca mais esquecerei”.

O que fica em toda a viagem pelo tempo e espaço é apenas a melancolia da poeta, capaz de se transformar em rio e mar, onde os escolhidos não naufragam. E a poesia retorna para dentro do ser, no qual mostra que a perfeição nasce da entrega das palavras ao silêncio: “_Mas nem sombra de palavras/ Houve em minha boca fria”. O poema se despede com o retorno para um fim. “Exílio” se completa com o retorno da poeta definitivamente para dentro de si, mas para isso acontecer, a viagem da gênesis ao apocalipse fora imprescindível. Exila-se no espaço nu das rochas no seu encontro com as ondas e retorna para onde a morada é permanente – o coração e a boca, isto é, da casa primeira é que se tem a estrada para a casa eterna; o corpo.

Percebe-se que, o mito do Paraíso Perdido de alguma forma é uma constante na obra das duas escritoras, contudo, as duas autoras o trabalham de maneiras distintas, visto como em Cecília, esse dilema não aparenta ser um conflito intenso à primeira vista. Ela parece já saber onde buscá-lo, pois o término de tudo só pode ser alcançado quando se tem todos os começos. A imagem do círculo, onde o principio surge depois do fim vibra em sua obra. Neste sentido, o paraíso não reencontrado aparece diluído em seus poemas, perene, fluído, porém, de um modo muito mais melancólico do que em sua quase contemporânea poeta portuguesa. O mito de reencontrá-lo não é uma obsessão ou uma busca como em Sophia, mas um dilema paradoxal entre a dor e a reflexão constante do ser, o que faz da melancolia a única via possível. Porque a saga de regresso ao paraíso não deixa de ser uma jornada ao espaço primitivo, onde a palavra é devolvida ao canto e a magia, ou ao seu mais profundo vazio como no poema analisado acima.

Em Sophia de Mello Breyner Andresen, o tema da perda do Paraíso Perdido será um ponto mítico fundamental, principalmente no conto “A Viagem”. Esse conto inicia a narrativa no meio da vida pelo homem, um lugar feito de sonhos e sem localização geográfica ao certo. O conto propõe um reencontro dos símbolos principais de toda obra da autora em um único espaço; o mar e a lama, além das imagens do jardim e da casa. Embora todos, de algum modo, se remetem à casa, à morada, já que, o jardim não deixa de ser a sua parte externa e o mar e a terra; as personificações da casa natural humana, isto é, da matriz de onde viemos e de onde partimos:

 

As casas

Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contém todos os ventos dos espaços.

(ANDRESEN, 1974 p.80)

 

A casa, como símbolo  do espaço mítico da origem, se torna o abrigo do desejo, de unificar e reunificar os perdidos, os fragmentados, os ausentes e os divididos. E para essa reunificação, o corpo da mulher aparece como o único capaz desse feito: “o perfil da mulher recortava-se entre as flores” (ANDRESEN, 2002 p.103) diz  Sophia no contoA Viagem”.

Esse desejo de retorno ao paraíso é tratado como o principio fundador de toda narrativa e de toda poesia, porque ali estaria a verdadeira união do ser humano com a mãe natureza, uno em corpo e espírito – raiz e  sobrevivência dos vivos sem divisões e sem rupturas. A busca do paraíso perdido é o retorno ao inteiro, à totalidade, sem as maldades e os percalços da civilização. A busca pelo princípio do mundo. Por essa razão, a escritora portuguesa deixa o conto “A Viagem” sem um fim específico, o homem e a mulher terminam a viagem à beira do precipício, pairados entre o abismo e o céu, suspensos na exatidão do caminho.

Enquanto em Cecília, o fim e o início parece se eclodir em uma única imagem cíclica da memória aos sentidos. O sonho é a constatação do oco que é a realidade. De acordo com Bacherlard (1974), o abismo figura em si – mesmo um grande útero que puxa o ser humano para o centro da Terra. A Terra e a terra não deixam de serem casas porque nos abrigam e abrigam vidas. Ali, param a jornada ou a recomeçam, e o abismo como espaço de uma casa desconhecida se torna a junção entre o início e o fim, vida e morte, e o conto acaba assim sem um desfecho: “C’ est dans la plus profonde matrice de la Terre, que les hommes vécurent au commencement” (Eliade, 1957 p. 195).

Não deixa de haver uma visão semelhante entre as duas, sobretudo, da função da palavra poética como um estado de pura purificação e canto, porém, a diferença estará no modo de lidar com essas imagens, símbolos e temas. Sophia de Mello consagra seu canto e seu conto à imanência das coisas e das palavras, ao tempo de Dionísio, o qual representa o eterno-presente, enquanto em Cecília Meireles, a poesia se eleva do chão para o sonho para que ela possa desvendar os limites e os detalhes de cada constatação, através da música e da imagem, onde a melancolia se torna um ritmo de reflexão e postura diante da poesia, ou o próprio sentido de se fazer poesia. Melancolizar-se na escrita é revelar-se e revelar o outro. Para Sophia de Mello Breyner Andresen, a experiência de vida é a experiência sentida, o que leva a poeta imanar com as coisas de maneira a se embrenhar em seu aspecto finito e curto no espaço e no tempo:

 

As rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo luar das noites transparentes
Todo fulgor das tardes luminosas
O vento bailando das Primaveras
A doçura amarga dos poentes
E a escalação de todas as esperas

(ANDRESEN, 2004 p 32)

 

O ponto de união será a corporificação da natureza, ou a transfiguração do corpo feminino na paisagem. Essa característica seria típica de uma escrita de autoria feminina, porque a palavra historicamente fora proibida às mulheres. O discurso, a escrita, a fala, a letra, todas essas ações e substâncias vetadas pelo patriarcado ao sexo feminino, deram ao ato de escrever por mãos femininas, um tom de libertação e de resignificação tanto da escrita, quanto do que é ser mulher. Dizer que a escrita de autoria feminina carrega em sua materialidade, uma diferenciação com a escrita vertida por mãos masculinas, causa um impacto nos meios críticos acostumados ao vazio do discurso tido como imparcial e paradigmático, mas que no fundo, esconde uma predileção histórica por uma determinada voz, corpo, posição social, papel social e visão de mundo. Negar as diferenças de vozes no texto é negar as diferenças dos corpos, olhos e boca de cada sujeito que se lança através de seu corpo para produzi-los.


Texto original em português do Brasil



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