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Sábado, Dezembro 21, 2024

O povo iraniano grita pela liberdade

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A revolução não é forçosamente popular nem mesmo quando é popular é necessariamente democrática. O mundo conheceu inúmeras revoluções que não foram populares, mas que conseguiram o seu alvo pela fraqueza do poder.
A revolução de Outubro, por exemplo, não só não foi popular mas como teve mesmo como fim imediato sabotar as eleições democráticas onde os bolcheviques iriam perder (como perderam, já depois de conquistarem o poder). Mesmo a base popular da revolução – os marinheiros de São Petersburgo – virou-se contra os bolcheviques assim que percebeu o logro em que caiu e foi massacrada em Kronstadt pelo exército vermelho comandado por Trotsky.

  1. Democracia, povo e revolução

Se estes factos são mal conhecidos, a ascensão dos Nazis ao poder não o é menos. O livro do popular publicista americano Fareed Zakaria de há 15 anos que era suposto ser a bíblia da pós-democracia, confunde as datas, os factos e os processos essenciais na ascensão de Hitler ao poder, julgando que ele toma o poder quando ganha as eleições em vez de ter ganho o poder quando as perdeu baseado na alucinação apaziguadora de Hindenburg para quem Hitler tinha deixado de ser perigoso ao ter perdido as eleições.

Mas mesmo quando as revoluções são populares, elas não são por isso necessariamente democráticas. A sublevação popular contra os judeus em Portugal do princípio do século XVI foi genocida e nada teve de democrática, como de resto acontece com a generalidade das matanças étnicas ou etno-religiosas (as que se sucederam à queda do império soviético, por exemplo) que contemporaneamente se têm feito sentir com especial acuidade no mundo muçulmano através do jihadismo.

O racismo antijudaico que anima a generalidade das movimentações populares do mundo muçulmano é tudo menos democrático. Ele é mais violento e xenófobo do que os outros movimentos de perseguição das minorias religiosas, e por vezes étnicas nos países muçulmanos (incontáveis mas ignorados pela imprensa ocidental) porque os judeus cometeram o supremo ‘crime’ de não se deixarem massacrar e tornar-se independentes num canto do deserto do vasto mundo do Médio Oriente. É de realçar que este racismo se estende ao mundo ocidental que na base de uma visão totalmente distorcida e descontextualizada do Médio Oriente faz coro pelo genocídio dos judeus.

O jihadismo contemporâneo do Cachemira – alimentado especialmente pelo Paquistão, mas também pelo Irão e pela Turquia – começou pela limpeza etno-religiosa dos não muçulmanos do vale do Cachemira onde o Islão é maioritário, e é tudo menos democrático.

O mais óbvio exemplo contemporâneo de revolução popular antidemocrática é de resto a revolução islâmica iraniana. É certo que Khomeini antes de tomar o poder garantiu que não tinha quaisquer ambições políticas (‘sou um velho homem religioso’) e jurou defender os direitos e liberdades. Mas se os iranianos se deixaram enganar por alguém com um longo currículo fascista e fanático como o de Khomeini, sendo o clero xiita conhecido pela arte da dissimulação, é porque se quiseram embalar na ficção.

O cálculo de muitos democratas que viu Khomeini como útil no derrube da ditadura do Xá sem por isso presidir a uma nova ditadura pior ainda do que a anterior revelou-se um erro de brutais consequências.

Posto isto, há que ter em conta as duas principais escolas contemporâneas que definem a democracia, a de Karl Popper, para quem o essencial é o poder de derrubar um mau governo, e a de Habermas, que acentua a necessidade de consenso.

Qualquer destas visões é fundamental. Não há democracia que possa assentar no esmagamento dos direitos de quem quer que seja, mesmo que se trate de uma pequena minoria, sejam ciganos ou quem quer que seja, como também não há democracia se estivermos perante um miasma onde do voto não sai consequência nenhuma e a mesma oligarquia permanecer no poder.

  1. A época das revoluções

O último ano viu poderosos movimentos revolucionários que se desenvolveram pelo mundo inteiro. Grande parte deles foi desencadeado por razões pontuais, como o aumento do preço do gasóleo em França, dos produtos petrolíferos em geral no Irão, do bilhete do metro em Santiago do Chile, ou de um imposto sobre as chamadas do Whatsapp no Líbano. Outros, como em Hong Kong ou no Iraque foram políticos à partida e visaram a interferência de ‘Big brothers’, o Partido Comunista da China num caso, os Guardas revolucionários islâmicos, noutro caso.

Qualquer destes movimentos assumiu rapidamente dimensões políticas, e são essas dimensões que nos interessam. Em alguns casos corre-se o sério risco de se passar de situações não democráticas – como a da tentativa de perpetuação no poder pela chapelada eleitoral na Bolívia – a outras que não são mais democráticas, ou mesmo piores ainda.

Em qualquer caso, é a revolução contra a teocracia iraniana no Líbano, Iraque ou Irão que se deu o movimento político com maior significado. Ela quebrou a muralha do silêncio sobre a natureza e a dimensão do império teocrático. É um silêncio que interessa aos EUA que não querem admitir que no Iraque serviram de instrumento à teocracia iraniana; à França em particular e à Europa em geral que não quer admitir ser ficção a existência de um Líbano democrático e independente; à Rússia que serviu de instrumento à teocracia iraniana na Síria e a todo o apaziguamento que quer acreditar em ficções como a de uma teocracia iraniana rendida à não proliferação nuclear.

Fora do consenso dos interesses, a mesma muralha é sustentada pela nebulosa ideológica da velha esquerda aliada à nova direita que em França (onde o movimento é mais aberto) põe lado a lado Marine Le Pen e Jean-Luc Melenchon sob o alto patrocínio de Putin na defesa do fascismo teocrático.

Mestres na arte da dupla palavra, os dirigentes clericais ajudam à festa, sendo capazes de num momento reivindicar nos comícios a grande vitória da conquista do poder em quatro capitais árabes (Beirute, Bagdade, Damasco e Sana) para denunciar no momento seguinte os movimentos populares nesses países como operações de sabotadores imperialistas e exigir a não interferência estrangeira neles.

Depois, porque são revoluções determinadas e dirigidas contra a ditadura, a corrupção e o terrorismo teocráticos que não têm ambiguidade possível na sua relação com os interesses instalados no mundo inteiro.

Ainda, porque são as revoluções mais barbaramente reprimidas, a tiro real, por vezes rajada de metralhadora, com centenas de vítimas mortais, milhares de feridos e números astronómicos de presos.

Finalmente, porque no Irão o poder reconheceu a liderança do Conselho Nacional da Resistência Iraniana (CNRI) na sublevação popular, e o CNRI tem um programa claramente democrático, assente na abolição da teocracia, direito de voto, respeito pelas etnias e religiões, laicismo, combate à misoginia, fim ao fanatismo e à exportação do terrorismo, respeito do ambiente e desenvolvimento.

  1. A revolução iraniana e a traição ocidental

Na semana de 15 e 22 o Irão foi sacudido por um poderoso movimento revolucionário contra o regime teocrático e cleptocrático, tendo sido atacados em centenas de cidade em todo o país inúmeros símbolos do poder, seminários, gabinetes de representação do líder espiritual, bancos e sedes e veículos dos guardas revolucionários islâmicos.

O regime reprimiu com brutalidade sem limites, metralhando manifestantes de helicópteros e por atiradores especiais, provocando pelo menos 300 vítimas mortais, 3 milhares de feridos e mais de 10000 presos (estimativas parciais de dia 24 que poderão revelar-se muito abaixo da realidade) com escolas e edifícios públicos transformados em prisões.

Um dos dirigentes do regime ameaçou mesmo repetir o massacre dos prisioneiros, tal como o fez em 1988, em que se estima tenha executado 30.000 presos políticos.

Na maior parte do mundo fez-se uma cortina de fumo perante o massacre usando desde o silêncio pura e simples a técnicas de desinformação mais sofisticadas. O grupo ‘Financial Times / Economist’ por exemplo, que não esconde a sua adulação pela teocracia, resolveu fazer dos protestos de Hong Kong a grande notícia (que decorrem há cinco meses e onde não se deu nenhum desenvolvimento dramático nesta semana) para esconder os do Irão.

Em Portugal, contudo, foram ainda mais sinistros os processos. Tendo o regime iraniano – como é costume quando pretende desviar as atenções – dado ordens às suas filiais jihadistas em Gaza para atacar Israel, a Assembleia da República, que não disse uma palavra sobre o massacre no Irão, resolveu dedicar uma resolução a Gaza, em que, pasme-se, em vez de condenar a Jihad Islâmica pelas centenas de mísseis (todos eles oferecidos pela teocracia iraniana) visando alvos civis com que atacou Israel, condenou Israel por se ter ousado defender.

Esta aberração, que não espanta vinda de partidos alinhados com a ditadura iraniana como o PCP ou o BE (partidos que no Parlamento Europeu recusaram votar favoravelmente a condenação da perseguição das mulheres no Irão), foi escandalosamente votada pelo PS, que faz assim tábua rasa dos princípios que apregoa.

É certo que em Portugal a comunicação social dá uma imagem totalmente distorcida do que se passa no Médio Oriente, invertendo-se a realidade, e que essa prática levou à criação de preconceitos sem fim que alimentam o antissemitismo. É certo que esse antissemitismo foi também alimentado por negócios reais ou presumidos que serviram fundamentalmente para alimentar a corrupção em alta escala.

Mas a situação a que se chegou não pode deixar ninguém indiferente. O sinistro julgamento público a que um partido que tem o desplante de se chamar ‘Livre’ submeteu a sua deputada e a grotesca confissão dos pecados que esta fez da uma pálida imagem do ambiente de perseguição e intolerância reinante.


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