Por ocasião do lançamento de ‘Passo e fico, como o Universo’ de Joaquim Pinto da Silva em Bruxelas, o autor convidou-me a partilhar algumas palavras sobre o livro que aqui reproduzo.
A palavra de Pessoa
Caros amigos
Foi há trinta anos que o então diretor da Atlântida, num dos três centros de imprensa do bairro europeu, o do Boulevard Charlemagne, encerrou a Homenagem a Fernando Pessoa citando-o: ‘Agir é a inteligência verdadeira’.
E agir é o que ele mais fez nos trinta anos que se seguiram à sua instalação em Bruxelas, como emigrante, como ele faz questão de frisar, e não cessou ainda de fazer, apesar de ter voltado agora à Foz, ao convívio diário com o Gilreu que se avista do seu terraço, sem por isso se remeter à condição de reformado, porque ele é irreformável, mas antes ao convívio com os percursos e os horizontes policromados de Raul Brandão que lhe são tão caros.
Mas há trinta anos, o autor da obra que aqui nos reúne, trouxe o trabalho da escultora Irene Vilar, dos seus ateliers da Foz no Porto para junto de nós. Aqui, terminou a escultora o seu triângulo pessoano começado uns anos antes em Durban e São Paulo; no conjunto três obras magníficas que prolongam no tempo e no espaço também a memória de um grande vulto da escultura nacional.
E passados dezanove anos, é ainda o nosso autor que encontramos, menos de dois meses após a morte da escultora, no movimento que levou à criação da praça Pessoa, em Ixelles, junto à Place Flagey, onde o busto da autoria de Irene Vilar é agora ladeado da típica calçada portuguesa.
Para isso o nosso autor tornou-se um agregador de contributos e vontades que vão das autoridades portuguesas às autoridades municipais de Ixelles e de Lisboa, da Fundação Engenheiro António de Almeida à Fundação Jacques Brel, das mais diversas personalidades da cultura, da imprensa ou da política e ao próprio mundo empresarial.
É a mesma personalidade que trabalhou com Ilda Figueiredo como trabalha com Nuno Melo, sem por isso deixar de ter ideias políticas firmes e singulares que se podem ver como um rochedo, porque ‘ser penedo é ser por fora o que se é por dentro’, citação que atribui a Teixeira de Pascoaes e com que abre o seu blog.
É ainda a mesma personalidade que conseguiu acumular a qualidade de livreiro, editor e infatigável promotor cultural com a de eurocrata e que se tornou incontornável no panorama cultural lusófono de Bruxelas.
E se eu naturalmente o conhecia nessa qualidade, foi quando me encontrei politicamente sozinho que tive a oportunidade de plenamente entender a grandeza da alma e a verticalidade do carácter de um homem que fez mais do que ninguém para ajudar a transmitir a minha mensagem, não por concordar necessariamente com ela, mas por saber que ela era sentida, sincera e consistente.
E como a sua generosidade e amizade não têm fim, resolveu o meu querido amigo Joaquim Pinto da Silva incluir-me no rol dos apresentadores da sua mais recente obra que aborda Fernando Pessoa, convite a que eu, apesar de ser certamente dos portugueses de Bruxelas menos qualificado para falar desse gigante da literatura, não poderia deixar de abraçar.
E depois de me abalançar a tanto, resolvi centrar-me no domínio onde sinto ter alguma competência – opinião, confesso, pouco partilhada – que é o do pensamento político, matéria a que o nosso autor dá atenção nas suas reflexões sobre Fernando Pessoa, centradas nas críticas deste à República e ao Salazarismo.
Creio que o livro que temos perante nós reequaciona de forma inteligente a questão. A nossa geração foi moldada pela existência de uma dicotomia histórica entre a República e o Estado Novo. E se essa dicotomia é inegável em matéria de secularismo, onde o jacobinismo de uns se contrapõe à promiscuidade institucional de outros, ela não se prolonga no domínio das liberdades, direitos e garantias.
A República pouco acrescenta de democrático, e menos ainda de liberal, ao constitucionalismo monárquico. Marcada pelo regicídio e pelo terrorismo da Carbonária, ela vai inevitavelmente consagrar meios mais violentos de disputa do poder do que os que eram normalmente utilizados antes da sua implantação.
A primeira guerra vai contribuir para a destruição do edifício político e social português, como aliás o fez um pouco por todo o lado na Europa, mergulhando o país no caos, no golpe e na guerra civil. As ditaduras e não as eleições – como já era de resto o caso no constitucionalismo monárquico – são vistas como a forma normal como se mudam governos, e por essa razão, quer a ditadura de Sidónio Pais quer o golpe de 28 de Maio, são populares, na medida em que são vistos como meio de mudarem o governo, não porque o povo se queira privar indefinidamente da capacidade de influenciar o poder.
Estou por outro lado convencido que Salazar só decidiu institucionalizar a ditadura copiando o modelo fascista, nos finais de 1931, quando do decreto da suspensão da convertibilidade do escudo em ouro, que deita por terra o alvo principal do programa de estabilização económica e financeira que pôs em marcha entre 1928 e 1931.
Como nos diz o autor, há quem veja na apresentação da Mensagem ao concurso Prémio Antero Quental de poesia anunciado pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) em 1933 como sinal da contemporização de Pessoa com o fascismo. Como ele nos explica, nada de mais errado!
Como se pode constatar na carta enviada por Pessoa a João Gaspar Simões em 1932, a Mensagem (o título do livro com os 41 poemas era ainda na altura Portugal) era o primeiro de um vasto conjunto literário, dominado pelo ‘Livro do Desassossego’ que ele tinha a intenção de publicar, e as razões para essa primazia prendem-se, como ele esclarece, com ‘as suas condições materiais de momento’ que aconselham a prioridade à publicação de uma obra de maior sucesso editorial em potência.
Como ele também esclarece em entrevista, escreveu o primeiro poema do que viria a ser a Mensagem em 1914, o que nos ajuda a entender que a obra em nada foi inspirada pelo regime.
Não será difícil de adivinhar, no entanto, que os 5000 escudos oferecidos pelo citado concurso do SPN tenham sido a única razão que levou o autor a candidatar-se a ele. Desqualificado pelo júri sem outra razão plausível que o do seu posicionamento político, a Mensagem será repescada para um prémio secundário, e o seu prémio majorado de 1000 para 5000 escudos graças a António Ferro que provavelmente entendeu o valor literário da obra e tentou assim a conquista política de Pessoa.
A resposta de Pessoa não se faz esperar com um artigo contundente de elogio à maçonaria – na altura precisa em que o regime a estava a ilegalizar – e com o seu boicote à cerimónia de entrega do prémio por Salazar em fevereiro de 1935.
Como evidencia o livro agora dado à estampa, Pessoa afirma-se como profundamente antifascista, entendendo mesmo – no que é pioneiro – a equivalência deste regime com o soviético.
Permito-me também fazer uma breve incursão na referência açoriana de Pessoa. O poeta, órfão de pai aos cinco anos, teve com a mãe, nascida em Angra do Heroísmo, e a sua família, uma relação intensa.
Quando de passagem por Angra, em casa da sua tia Anica no número 26 da Rua da Palha, o jovem de treze anos tornou o seu primo Artur, mais novo ainda que ele, redator de ‘A Palavra’ jornal de que ele mesmo se tornou editor, com o heterónimo de Dr. Pancrácio.
É nessa condição e nesse tempo que ele faz uma primeira sátira ao dinheiro, tema recorrente na sua obra que, graças a ‘Passo e fico, como o Universo’ de Joaquim Pinto da Silva, fico agora com vontade de explorar.
Insistiu o nosso autor que dissesse algumas palavras sobre mim. Em Bruxelas, depois da condição de diplomata e de parlamentar europeu, vivo desde 2010 na minha plena condição de emigrante. Dirijo uma pequena associação humanitária e um grupo de reflexão, tendo escrito e publicado, graças ao nosso autor, sobre moeda, matéria que tenciono prosseguir e aprofundar.
Um muito obrigado e as maiores felicitações ao Joaquim!
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