Das margens do Rio Capibaribe no Recife, a partir das ruínas da antiga fábrica de seu pai, Francisco Brennand deu forma a um mundo de sonho e perplexidade. Escultor, ceramista, pintor, desenhista e gravador, morreu nesta quinta, aos 92 anos, ainda em plena atividade. Suas mãos moldaram com barro e tinta uma mitologia própria, monumental, que ficará gravada no tempo.
“O tempo vai confirmar que ele é o maior artista do Brasil”, diz a pintora Tereza Costa Rêgo, que cursou a Escola de Belas Artes ao lado de Brennand, ambos muito jovens ainda.
No Marco Zero da capital Pernambucana, lê-se no chão, na obra de Cícero Dias, a célebre frase: Eu vi o mundo e ele começava no Recife. Ao levantar o olhar, é possível avistar na linha do horizonte, do outro lado do mar, uma série de figuras incrustadas num caminho de arrecifes. É o Parque de Esculturas Francisco Brennand, um dos portais para adentrar na obra do artista, que – tal qual o deus ceramista que cria vida do barro – pariu no Recife o universo imaginado que deixa de legado.
De outra geração, o cineasta Kleber Mendonça Filho escreveu em seu Facebook, ao saber da partida de Brennand:
Como pernambucano que sou, Francisco Brennand provou que artistas são meio mágicos, e que têm algo de literatura antiga, vivendo em algum castelo. A marca dele em pedra é vista em tantos lugares, é distinta, sugere classe social e uma estética local. E lá estava ele às vezes de bengala na oficina no meio de uma tarde, de suspensório e barba, nosso próprio Willy Wonka, só que melhor. Era daqui. E vai continuar sendo”.
Em uma entrevista à Folha de S. Paulo, em 2013, provocado a definir-se com poucas palavras, Brennand respondeu: “Feudal, supersticioso, pornográfico”. A referência às terras medievais ele justifica, ao explicar que não pode se compreender sem estar ligado a uma terra e a um local. Diz muito sobre ele.
Privilégio, talento e inventividade
Nascido em uma família tradicional do Recife, Brennand começou a ter contato com barro muito cedo. Seu pai, apesar de ter herdado uma usina de açúcar, era fascinado pela matéria e criou, em 1917, a Cerâmica São João, no isolado bairro da Várzea – o mais distante do tal Marco Zero -, muito marcado pela vegetação de Mata Atlântica.
Na olaria pouco industrializada, o menino cresceu. Lá, em 1942, o jovem Francisco foi aluno informal do escultor Abelardo da Hora, então funcionário. Um ano depois, conheceria Ariano Suassuna, colega de classe no antigo Colégio Oswaldo Cruz, que lhe convidou para ilustrar um jornal literário.
Recebeu orientação em pintura de Álvaro Amorim – um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco – e Murilo Lagreca. Em 1947, ganhou o primeiro prêmio de pintura do Salão de Arte do Museu do Estado de Pernambuco, com o quadro de uma paisagem inspirada no engenho São João, da família.
Como era comum entre aqueles de posses no estado, Francisco foi enviado à Europa para estudar. Tinha apenas 22 anos e a ideia, que depois avaliaria equivocada, de que existiam artes superiores, como a pintura a óleo e a escultura em mármore carrara, e outras inferiores, como a cerâmica, que considerava de uso mais utilitário. A viagem desfez essa impressão.
Logo que chegou a Paris, Cícero Dias o convidou a uma exposição de Pablo Picasso. Qual foi a sua surpresa ao descobrir que tratava-se de uma mostra de cerâmicas do artista espanhol. “Fiquei desmoralizado por ter rejeitado a cerâmica, produto fabricado pelo meu pai”, lembrou em uma entrevista Brennand, que passou a dedicar-se à matéria-prima que recebeu a forma de suas obras mais famosas.
A oficina-devaneio
A fábrica de cerâmica do pai já estava abandonada havia 26 anos, quando Brennand resolveu erguer das ruínas o seu reino. Lá, entre a vegetação e os escombros da olaria, fincou a si mesmo e a sua arte singular, gigantesca e monumental. Fez brotar do chão seres estranhos, um misto de fantástico, mitológico e sagrado, com forte carga de sexualidade.
Inventava ali a Oficina de Cerâmica Francisco Brennand, um lugar de quimeras, misto de ateliê, museu, parque de esculturas e santuário, que agrega murais, painéis, esculturas, pinturas e desenhos. Conhecer o local, que virou parada obrigatória para os que visitam a cidade, é como transportar-se para outra dimensão.
“A obra de Brennand é atordoante, mas revigorante. Ela nos assegura que, sob o manto da perplexidade, que cada vez mais nos perturba e atemoriza, uma força impenetrável persiste. Algo que nos faz viver. Não será a própria vida?, escreveu o escritor José Castello.
Na oficina, mais de 2.000 peças do artista, algumas com formas abstratas, que remetem aos mistérios da origem da vida e da morte. Há cantos gregorianos, fontes e jardins, um deles projetado pelo paisagista Burle Marx.
Até pouco tempo, era comum cruzar com o artista pelos corredores de seu “feudo”. Conversava com quem o abordasse. “A oficina era o lugar dos meus jogos de infância, um lugar propício ao mistério. Era isolado, escuro. A floresta cresceu em torno de mim durante 40 anos e a oficina ficou como um ninho. O conjunto passou a ter para mim um valor místico”, contou ele, em entrevista.
Quem conheceu o artista mais de perto, relata uma sabedoria de oráculo. Afeito ao cinema e à filosofia, homem bonito e sedutor, produziu até o fim. “Brennand encontra a eternidade legando a sua gente, a Pernambuco e ao Brasil um espaço único, mágico, encantado, que há de permanecer pelos tempos futuros como registro de uma vida repleta de inteligência, sensibilidade e cultura. Poucos artistas no Brasil foram como Brennand: ponte entre os tempos”, destaca o crítico de arte e curador Marcus Lontra.
O horror, o horror
O intertítulo acima está inscrito em um dos painéis da oficina de Brennand, uma referência à obra-prima Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Se é capaz de provocar alumbramento, a obra do artista também pode evocar sentimentos menos suaves.
“Não viemos aqui para ser felizes. Somos escravos de nossa própria condição humana. Não existe liberdade. Até mesmo os pássaros têm de respeitar territórios demarcados, senão são devorados por outras espécies”, disse à Revista Cult.
Ele mesmo relata que uma das únicas pessoas que teve uma interpretação correta de seu trabalho foi uma velha senhora que, acompanhando uma sobrinha, quando viu suas cerâmicas, disse: “Valha-me, Deus, nossa senhora, estou diante de um museu de horrores, uma carnificina”. Foi embora e disse que não voltaria.
“Nunca ninguém tinha conseguido perceber em minha obra o que ela realmente é. A velha senhora foi a minha crítica mais aguda”, revelou o artista, em entrevista certa vez.
Lado B
Parte pouco conhecida da biografia do artista é que, na década de 1960, ele foi autor das ilustrações de dez fichas de cultura, cartilhas que Paulo Freire usava no seu processo de alfabetização popular.
“Estamos todos lá: nossa flora, nossas frutas, nossa fauna, nossos trabalhadores, nossas cores, nossa gente, nossa luz, nossa realidade. Nós. Educando-nos a nós mesmos. Sendo o que também somos. Com orgulho e exuberância. Foi inédito”, apontou Joaquim Falcão, membro da Academia Brasileira de Letras, professor da Escola de Direito do Rio e da Fundação Getulio Vargas.
Outro fato não muito divulgado é que veio de Francisco Brennand a ideia de transformar a antiga Casa de Detenção do Recife na atual Casa da Cultura. A proposta surgiu no período em que foi chefe da Casa Civil, durante o primeiro governo de Miguel Arraes, de 1963 até às vésperas do golpe militar de 1964.
Sem arquitetar uma despedida
Quando completou 90 anos, Brennand concedeu entrevista ao Jornal do Commercio, na qual afirmou que não temia a morte, só o sofrimento. “Com a morte, só se perde o presente. Mas não o passado, que já não temos. Nem o futuro, que não teremos. Começamos a morrer quando nascemos”, resumiu.
Ao refletir sobre imortalidade, costumava dizer que “as coisas são eternas porque se reproduzem – a eternidade é a reprodução”. Depois de passar dez dias internado no Real Hospital Português, no Recife, Brennand morreu, nesta quinta, devido a complicações de uma infecção pulmonar.
Como não poderia deixar de ser, quis que suas cinzas fossem espalhadas nas terras de sua oficina, onde sua obra reproduz seu olhar sobre o mundo, fruto de beleza e espanto, eternizando assim o mestre, que viveu recluso em seu reino.
por Joana Rozowykwiat, Recife | Texto original em português do Brasil
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