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Terça-feira, Julho 16, 2024

A necessidade de uma boa legislação ambiental europeia

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A preservação do ambiente é, a justo título, uma preocupação maior da humanidade e tende a tornar-se tão mais importante quanto mais a humanidade se conseguir libertar do estigma da necessidade de sobrevivência ou da pura avidez pela supremacia sobre os nossos semelhantes, por todos os meios necessários incluindo o da guerra.

Enquanto a humanidade continuar dominada por qualquer destes labéus, a paixão pelo ambiente será no entanto sempre algo tido por secundário, por mais que quem quer que seja jure o contrário. A luta pela preservação do ambiente terá que ser portanto acompanhada pela preocupação pela preservação de valores humanistas.

  1. Racionalizar a acção ambiental

Quer isto dizer que imaginar uma comunidade de interesses organizados ou não em Estados a acordar um mapa minucioso de acções que supostamente nos garantem a preservação do nosso ambiente enquanto esses mesmas interesses têm como principal preocupação a dominação ou mesmo a destruição de outras realidades humanas é na melhor das hipóteses uma fantasia, e na pior, um engodo.

Tenho por isso como certo que a ideia de tudo esquecer em função de qualquer urgência ambiental, seja ela mais ou menos fundada, não é uma boa norma de conduta e poderá revelar-se como um devaneio atrás do qual se escondem interesses que pouco se preocupam com questões ambientais.

Penso que a melhor forma de prevenir a manipulação de necessárias medidas ambientais é, para além de ter o cuidado de medir os seus impactos humanos, a de as racionalizar tanto quanto possível e certificar-nos que por trás de medidas justificadas por um objectivo concreto, ou melhor apenas por uma linha de comunicação, não se escondem impactos e interesses que de todo em todo não são justificáveis.

Creio ser exactamente isso o que falhou no pacote ambiental proposto pela Comissão Europeia que esta denominou de ‘acordo verde’ e é esse o principal argumento da minha apreciação sobre o mesmo.

De acordo com o calendário anunciado pela comunicação da Comissão, teremos em Março de 2030 um pacote de acções que incluem:

  1. Lei sobre o clima;
  2. Estratégia para a biodiversidade e
  3. Um plano de acção sobre a economia circular.

Três temas tidos como independentes uns dos outros, mas que são largamente interdependentes.

  1. A urgência climática

O nosso clima depende de um conjunto largo de variáveis astronómicas e planetárias, e por isso a história geológica do planeta tem registado enormes variações climáticas, nomeadamente num passado recente. Possivelmente, nos últimos séculos, o enorme impacto da acção humana no planeta, que passa pela salinização e outras formas de esterilização da terra, acidificação e destruição do ambiente marinho, de lagos e de rios e directa ou indirectamente na composição da atmosfera, terá impactos na evolução do clima que irão interagir com elementos naturais.

Quem estiver minimamente atento ao que se tem escrito nas principais revistas científicas mundiais de divulgação terá certamente constatado a enorme incerteza e quantidade de novos elementos trazidos ao debate que não permitem a ninguém com um mínimo de bom senso dizer que o problema está equacionado em toneladas de dióxido de carbono e graus de temperatura, mas que nos leva a crer que existem possibilidades suficientemente fortes de aquilo que a nossa sociedade industrial rejeita para o meio ambiente estar a ter um impacto suficientemente importante no clima para devamos reduzir, evitar ou mesmo, tanto quanto possível, eliminar essas rejeições ou emissões.

A questão não se resume ao clima, e tem impactos em toda a biodiversidade, que são mais directos e se conhecem de resto com mais rigor e segurança do que os que respeitam à sua ação no clima. A acidificação dos mares ou das florestas, a eutrofização das águas e a morte do solo por salinização e adubação desequilibrada ou o envenenar de insectos são formas indirectas de destruição dos habitats ou de espécies protegidas, e portanto ameaçam a biodiversidade.

Nem tudo o que destrói a biodiversidade tem o mesmo impacto no clima, dado que a formação de ácidos na atmosfera, por exemplo, poderá ter o efeito oposto ao da emissão de óxido nitroso no efeito de gás de estufa, mas os efeitos da acção humana na biodiversidade podem ter um efeito indirecto potencial no clima, e este, por sua vez, pode acentuar os impactos na biodiversidade.

Tudo isto pode ser dito de outra forma: que é necessário que a nossa economia seja circular, o que quer apenas dizer que não produza emissões – emissões que podem assumir formas sólida, líquida ou gasosa, em si, a questão é pouco relevante – para o nosso meio ambiente, a fim de não afectar negativamente a saúde do nosso planeta, medida nomeadamente pela sua biodiversidade.

Portanto, no essencial, estamos a tratar da mesmíssima coisa usando vocabulário diverso, prevendo actuações diversas, mas invertendo a racionalidade e a lógica: em vez de falarmos de emissões que afectam a biodiversidade e, directamente ou por via da biodiversidade, afectam potencialmente o clima, falamos do efeito mais difuso, o do clima, sobre o qual queremos fazer uma lei, para a partir daí tratar do que é mais óbvio, geral e menos controverso com estratégias e planos de acção.

Dizer que é mais urgente tratar do que é o resultado mais dilatado no tempo, difuso e discutível daquilo que fazemos agora, adiando o tratamento dos impactos mais imediatos é irracional e só pode entender-se por razões que a razão desconhece.

  1. Uma estratégia ambiental coerente

Qualquer estratégia ambiental tem de partir da avaliação dos impactos das emissões das actividades industriais humanas, em função disso, do grau de urgência da sua limitação ou eliminação através das medidas consideradas mais adequadas.

Vejamos por exemplo, a salinização dos solos, que é talvez a consequência clássica mais devastadora para o meio ambiente da acção industrial do homem na natureza e que, nem por ser a mais antiga, a de resultados desastrosos mais comprovados, e a meu ver a mais prioritária, aparece onde quer que seja nas preocupações do acordo verde.

A salinização dos solos conduz à sua desertificação e por tanto eliminação de toda a vegetação com a eliminação consequente da biodiversidade e, por exemplo, do conhecido efeito de consumo de dióxido de carbono e produção de oxigénio da fotossíntese.

A salinização resulta de formas insustentáveis de rega ou ainda de formas insustentáveis de utilização de sais na natureza, e é talvez o mais clássico exemplo de ausência de circularidade no ciclo produtivo. Por que razão não aparece em lado nenhum da economia circular, da estratégia da biodiversidade ou da lei do clima? Porque toda a construção ambiental que nos é apresentada é baseada mais em clichés do que em utilização ponderada, racional e com conteúdo de conceitos, instrumentos e objectivos.

A fim de termos uma boa legislação europeia, temos que a fazer sair do universo de frases feitas e construir um sistema legal na base de peças lógicas, bem encadeadas e sustentadas.


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