“O que se diz lá fora sobre o Brasil de Bolsonaro, no início deste seu segundo ano de mandato, deveria cobrir de vergonha os brasileiros. Deveria, coloquemos o verbo no tempo certo”
O que se diz lá fora sobre o Brasil de Bolsonaro, no início deste seu segundo ano de mandato, deveria cobrir de vergonha os brasileiros. Deveria, coloquemos o verbo no tempo certo.
O jornal francês Le Monde publicou, no dia 30, artigo demolidor Bruno Meyerfeld, que chama a atenção por seu realismo e pessimismo, ao dizer que Jair Bolsonaro está aqui para ficar e durar, ainda que a sua pessoa seja afastada do cargo ou não se reeleja em 2022. Recordando seu primeiro ano turbulento, marcado por comentários racistas ou piadas homofóbicas, misóginas e escatológicas, delírios conspiratórios, apologias à tortura e à ditadura, insultos a líderes estrangeiros, coisas que fariam Trump ou Salvini parecerem social-democratas agradáveis, ele conclui, para nossa meditação: “Seria errado ver Bolsonaro como uma destas febres tropicais que passam, que são rapidamente tratadas e esquecidas”.
Na minha tradução livre, ele diz que Bolsonaro pode ter vindo para durar porque agora deixou de ser um político marginal, preside a nona economia do mundo apoiado pelas influentes igrejas evangélicas, por lobbies poderosos e pelas polícias, pela mídia conservadora e os barões da indústria, do agronegócio e dos bancos. “Apesar dos escândalos, todos estão unidos em torno dele.” Depois, não há quem colocar em seu lugar, com a esquerda fragilizada e “quase inaudível”, apesar da libertação de Lula. Os militares não querem assumir, com o vice Mourão, a tarefa de implantar reformas dolorosas. E assim, devemos seguir com um Bolsonaro desbocado, falando para os 30% que o apoiam incondicionalmente e para os 32% (aqui uso dados Datafolha) que acham tudo regular.
E assim conclui o autor pessimista: “Mais profundamente, o Sr. Bolsonaro é o espelho do lado escuro do Brasil, que se supunha, incorretamente, apagado pela década de luz de 2000. Este país ambientalmente magnífico é também, desde a chegada dos europeus, uma terra dedicada à exploração e destruição cruel da natureza. Este reino da transgressão, da liberação do corpo e da sexualidade, é também o centro do obscurantismo mais intolerante. Este país da miscigenação, elogiado por gerações de viajantes, também é baseado em um racismo odioso, herdado de séculos de escravidão. Neste mascarado Brasil, onde tudo é dito, mas tudo permanece escondido, “Bolso” triunfou como um grotesco rei do Carnaval. Este presidente combina-se com as profundas e ultrajantes contradições de seu país. É tudo menos um acidente da História. Com ou sem fadiga repentina (referência às confissões de cansaço de Bolsonaro), removido ou não reeleito, este gênio tropical perturbador não está prestes a voltar para dentro da lâmpada. O reinado de Jair Bolsonaro pode durar mais tempo do que se acredita”. É de fazer o sinal da cruz, mas faz sentido. Eu já deixei de pensar, como no início, que ele não terminaria este mandato em curso.
A propósito do artigo, recolho do ex-chanceler Celso Amorim os seguintes comentários deprimidos para o alvorecer de um ano novo:
“O quadro é muito assustador para quem, como eu, achava ingenuamente que a democracia se consolidara com a eleição de Lula. A tal ponto que cheguei a telefonar para o Fernando Henrique para cumprimentá-lo por ter completado a transição. Quem diria que, depois de um intelectual consagrado, um simples operário metalúrgico! É doloroso perceber como as cretinices do ministro da Educação e as loucuras do chanceler, para não falar das medidas repressivas e de estímulo à violência do próprio chefe da gangue e de seu inspetor Javert, tocam uma corda do coração de muita gente: quantas lutas ainda teremos que travar, quantos pesadelos, quantas vergonhas, até que a “consciência” das massas derrote o opressor? Ocorrerá algum dia? É o que fico me perguntando ao ler este excelente artigo do correspondente do Monde. Já não se trata só dos partidos políticos e das alianças que são capazes de fazer. Trata-se de correntes profundas da psiquê coletiva, sempre mais temerosa de perder o que tem (por pouco que seja), ou que poderá ter em outro mundo, e por isso menos interessada em obter uma vida real melhor para si e para seus filhos. E não é só aqui, mas também em países em que supúnhamos consolidados os valores da liberdade e da justiça verdadeira.”
Certamente, diz o ex-chanceler de Lula, nosso caso é mais chocante, “porque junta o grotesco com o cruel, a imbecilidade estridente com o ódio mais espumante, além da mais avacalhada falta de compostura. Vergonha é o que sentimos, como disse, há pouco, para o Guardian. Uma vergonha que faz lembrar as palavras finais do “Processo” de Franz Kafka, uma vergonha que sobreviverá a nós mesmos.”
Passemos então à matéria do dia primeiro, do mais importante jornal inglês, The Guardian, assinada por Tom Phillips, Dom Phillips e Jonathan Watts, que ouviram seis importantes personalidades brasileiras: além de Amorim, a filosofa e feminista Djamila Ribeiro, a jornalista Patrícia Campos Mello, o ex-ministro Gustavo Bebiano, o índio Davi Kopenawa Yanomami e a atriz Karine Teles.
Eles definem Bolsonaro como um presidente “abertamente homofóbico, aliado da extrema direita religiosa, que declarou guerra a cineastas, jornalistas e ao meio ambiente. Colocou um adepto de teorias conspiratórias no comando da política externa e é permisso com a repressão policial e destruição da floresta tropical”.
Os depoentes falam de todas as coisas que deveriam nos envergonhar, e Amorim põe ênfase na vergonha que sente. Ele recorda que nos 60, na London School of Economics, enquanto lia num jornal a notícia sobre um estudante preso e morto pela ditadura, teve a sensação de que todos olhavam para ele. E sentiu vergonha. Agora também o que sente é vergonha, especialmente pela política externa. “Em 50 anos eu nunca vi algo como o que está acontecendo na diplomacia brasileira. Nem durante o regime militar. Coisas terríveis já aconteceram no Brasil. Mas nossa diplomacia sempre foi mais habilidosa, mais cautelosa, buscando o diálogo sempre que possível. Agora embarcou numa guerra ideológica contra todos o que, na concepção deles, não são ocidentais ou cristãos”.
Para Bebianno, que foi ministro de Bolsonaro, “ele se vê como uma entidade mitológica, abençoada por Deus, extremamente arrogante, que não ouve ninguém”.
Mas voltemos ao artigo do Le Monde. Nem todos sentem vergonha ou temor. Do contrário, não seriam menos de 40% os que rejeitam Bolsonaro. Precisamos dizer que ele pode ter vindo para durar muito, pois talvez isso ajude a maioria a despertar. Mas é também doloroso concluir que muitos acordarão só quando a destruição já tiver avançado muito mais, quando já estivermos com a terra arrasada, em todos os sentidos. Quando tiverem destruído as instituições democráticas, o Estado, o património público, o meio ambiente, a cultura, as universidades e a possibilidade de vivermos em paz, pois agora até terrorismo de direita começamos a ter.
Pensando em tudo isso, como dizer Feliz Ano Novo?
Texto original em português do Brasil
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