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Terça-feira, Julho 16, 2024

Aspereza serrana

José Cipriano Catarino
José Cipriano Catarino
Professor (aposentado) de Português. Licenciado em Estudos Portugueses e Franceses pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre em Linguística pela mesma faculdade.

Chora convulsivamente a criança, o pai levanta-se orgulhoso da proeza, afinal ainda é capaz, só precisa de coisa nova, entra o irmão e vê a cena; envergonhada, a Berta tapa a cara, ficam os ouvidos destapados, espera por ajuda fraterna, por cena que envergonhe o velho, mas o que ouve, sim, o que ouve é: — Também quero!

Anda enraivecido o pai da Berta por, apesar da filha ter feito recentemente a quarta classe, a professora lhe dar pequenos trabalhos domésticos para a ter perto de si e longe desse pai que resumia as funções parentais a maus tratos e espancamentos diários:

— A filha é minha, até a posso cortar ao meio, se me apetecer, berrava, tão alto quanto conseguia na sua voz borracha, para que ninguém ignorasse os seus direitos, sobretudo essa abelhuda, que devia saber que a sua autoridade sobre as crianças terminava diariamente à porta da escola, extinguia-se de vez quando concluíam a primária.

Porém, a Berta recusava perder a afeição que a ligava à antiga mestra, a única pessoa que até então a tratara com amor desinteressado; não reagia aos ralhos embriagados de cada noite, sofria humildemente os espancamentos quotidianos — antes nela que nos irmãos mais pequenos ou na mãe, já tão destruída pelos maus tratos maritais, como se os da vida não fossem inferno suficiente… No seu íntimo, decidira já: “Se algum dia o meu marido me bater, seja pelo que for, deixo-o nesse mesmo instante. Para sempre.”

Para mostrar à professora quem é que mandava na filha, mas também ganancioso do ordenado, pô-la a servir na vila: era uma boca a menos a alimentar, um corpo a vestir, e o salário do mês, de início magros dez escudos, atenuava um pouco a miséria familiar.

Ser posta fora de casa, trocando o mundo conhecido pelo desconhecido apavora certamente qualquer jovem de doze anos — mas foi com alívio que a Berta aceitou o seu destino: dificilmente viveria pior, maltratada quotidianamente e, agora que o seu corpo desabrochava, lentamente é certo, ao contrário das jovens da mesma idade, mulheres feitas, como se receasse mostrar sinais de feminilidade, interpretava diferentemente o comportamento de homens e de rapazes, estes últimos agarrando-a, apalpando-a à bruta, tentando submetê-la à semelhança dos galos de capoeira, que montam as galinhas à bicada; se receava e abominava tais avanços animalescos, temia sobretudo o próprio pai, não sabendo já se quando a segurava para a espancar não a estava também a apalpar, se não lhe batia para a fazer ceder, lembrada de indirectas a que nunca ligara, por então as não ter compreendido, e mesmo de acusações soezes, que ignorara como calúnias raivosas, como a daquele colega de primária, furioso por ter recusado deixá-lo fazer o que queria:

Tás-te a guardar para o teu pai, que monta as filhas todas!

E vendo-a aturdida, gritou-lhe cruelmente, sem receio de ser ouvido:

— Sim, foi ele que desonrou a tua irmã e depois a pôs a servir na vila! E a ti vai-te fazer o mesmo! Se calhar, até já fez!

Sentia-se, portanto, aliviada por sair de casa, livrando-se de ralhos e berros, das tareias diárias, de uma miséria inconcebível hoje em dia. Já tinha a mala de cartão arrumada com os parcos haveres, roupa herdada da irmã mais velha, bem folgada, que a Berta era muito mais magra, preparava-se para se deitar, tentando talvez escapar à surra quotidiana, quando o pai chegou ainda mais bêbedo que de costume — e vendo a fúria que o possuía, a brutalidade com que agredia a mãe, a maldade que os seus olhos, pequeninos da bebida, irradiavam ao ameaçar matá-la com a navalha que sempre trazia consigo, presa com corrente ao cinto, ou para que a arma fosse ameaçadoramente visível, ou por desconfiança dos bolsos rotos, ocorreu à Berta, como raio que iluminasse a escuridão da noite, que o pai não era mau por causa do vinho, antes se embebedava para impunemente poder exercer a maldade. Deveria ter evitado meter-se, afinal era a última noite naquela casa; mas vendo o pai a tentar furar os olhos da mãe, que agarrada pelos cabelos, pontapeada sem piedade, se debatia para fugir com o rosto ao bico da navalha, o sangue que já lhe escorria da face retalhada, num impulso correu a segurar, também ela, o braço ameaçador.

A fúria paterna virou-se contra ela; como se de uma saca de batatas se tratasse, atirou longe a mãe, que bateu contra a cantareira e tombou no chão, semi-inconsciente, enrolada, ensanguentada, sempre carpindo-se numa lamúria monótona, algo como “ai, ai…”, mais grunhido que articulado. Entrementes, o pai agarrara a Berta pelo pescoço com a mão esquerda, levantara-a ao ar como boneca de trapos, encostara à face da criança a sua fuça imunda, picando-a com a barba sempre por fazer, intoxicando-a com o pivete acre da vinhaça, e olhando-a bem nos olhos aterrorizados, vociferou:

— Hoje, tu pagas-mas!

Como num sonho, viu-se arrastada para o quarto, lançada sobre a cama, o corpo do pai sobre o seu, batendo-lhe, arrepelando-a, tentando forçá-la a abrir as pernas, a outra mão desabotoando a braguilha. Contorcia-se, gritava, mordeu desesperada a mão encardida que lhe apertava o pescoço, asfixiando-a, estrangulando-a, numa tentativa de a imobilizar. Vãos os esforços, inútil a resistência, escusados os apelos, inúteis as tentativas de lembrar que era da própria filha que tentava abusar…

— Agora não és minha filha, mas uma cabra que vai servir para a vila, para ser montada pelo primeiro cabrão que te apanhar a jeito!

Esperou por ajuda da mãe, mas a mãe chorava mansamente no canto para onde fora atirada como coisa sem préstimo; rezou por um milagre, a mãe saindo à rua, gritando por socorro, trazendo consigo vizinhança exaltada, que impedisse o crime e fizesse justiça, sovando semelhante canalha que deitado sobre si a fazia gritar com dores de corpo e de alma até então desconhecidas; mas a mãe não saiu do seu canto, não acorreu em seu auxílio, talvez conformada com a inevitabilidade da desgraça, talvez aterrorizada pela violência anterior, o bico da navalha procurando-lhe o branco do olho, talvez por vergonha de que o povo soubesse o que se passava na sua casa, talvez apenas porque sim…

Chora convulsivamente a criança, o pai levanta-se orgulhoso da proeza, afinal ainda é capaz, só precisa de coisa nova, entra o irmão e vê a cena; envergonhada, a Berta tapa a cara, ficam os ouvidos destapados, espera por ajuda fraterna, por cena que envergonhe o velho, mas o que ouve, sim, o que ouve é: — Também quero!

Quer a Berta morrer, nada a prende a este mundo, já nada deseja, excepto isso — desaparecer de vez, enquanto pai e filho discutem, se empurram, guerreiam, rebolam pelo chão, disputando-a como animais no cio, mas não pode sumir, porque há coisas que não dependem da nossa vontade…

 

Excerto do meu romance Um Amor Inventado


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