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Terça-feira, Julho 16, 2024

A democracia abraça o passado?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Encerrado em Abril de 1974 o ciclo do Estado Novo a democracia que lhe sucedeu foi sendo construída com o possível distanciamento em relação ao passado, embora em muitas áreas se verificasse uma efectiva continuidade.Encerrado em Abril de 1974 o ciclo do Estado Novo a democracia que lhe sucedeu foi sendo construída com o possível distanciamento em relação ao passado, embora em muitas áreas se verificasse uma efectiva continuidade, tais como – já o referi aqui no Jornal Tornado, a da Reforma Administrativa em que o discurso inicial foi o de que se iria dar continuidade às ideias que vinham a fazer o seu caminho – ultrapassando a alegada falta de vontade política de Marcelo Caetano. A ideia de que pudesse haver várias alternativas em termos de Reforma Administrativa não entrou no espírito dos reformadores. Até hoje… Quanto à Educação, Veiga Simão quis continuar como Ministro, e quase o conseguiu.

Desde aí, e particularmente nos anos mais recentes, vêm-se registando, no plano académico, no plano político, ou no plano corporativo-profissional, iniciativas que marcam um desejo de integrar o passado com o presente, embora não necessariamente de o reabilitar. A própria eleição de Marcelo Rebelo de Sousa, que de alguma forma estabelece pontes entre o Estado Novo e a Democracia, e a forma como tem gerido a sua presidência, propicia esse tipo de tentativas, bem sucedidas ou pelo menos inócuas umas, mas que por vezes assentam em equívocos, ou os propiciam.

A importância do Serviço Nacional de Saúde e os problemas que enfrenta não deixaram de despertar, antes pelo contrário, o interesse pela situação no Estado Novo, onde o Ministério da Saúde e Assistência só havia de surgir em 1958 autonomizando-se do …Ministério do Interior. Constitui leitura assaz instrutiva o livro de Andreia da Silva Almeida O Sistema de Saúde do Estado Novo de Salazar – O Nascimento do Ministério da Saúde e Assistência (Prémio António Arnaut), que relaciona a criação do Ministério com a necessidade de reacção do regime à impopularidade que a campanha eleitoral de Humberto Delgado revelara, explica a razão da não escolha de um médico para titular da nova pasta, e se refere aos mandatos de Henrique Martins de Carvalho, Pedro Soares Martinez, e Francisco Neto de Carvalho (1921-2017), todos juristas, com o primeiro e o terceiro a terem passado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Francisco Neto de Carvalho é aliás um caso curioso, é já um alto quadro :do Ministério das Corporações e da Previdência Social (Director-Geral do Trabalho e das Corporações e Secretário – Geral do Ministério) e quando, na última remodelação de Salazar, regressa ao Ministério e é nomeado Director do Instituto de Estudos Sociais, cujas instalações coloca à disposição do Instituto Português de Ciências Administrativas (I.P.C.A.) impulsionado por Marcelo Caetano, para a realização de reuniões até que esta associação científica de direito privado encontre uma sede, vindo mais tarde a ser Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas.

Não sou visitante habitual das instalações do Ministério do Trabalho na Praça de Londres, ao entrar uma vez lá o ano passado não pude deixar de sorrir, ao ver assinalados os “100 anos do Ministério do Trabalho”. Sim, a República criou um Ministério do Trabalho em 1919 tal como noutros países os respectivos estados ensaiaram no pós I Guerra Mundial políticas com vista a aliviar a situação das suas populações e a enfrentar a agitação social, passo que em Portugal o episódio sidonista e o seu flirt com os sindicatos já mostrara ser inadiável. No entanto a tentativa de lançar um sistema de seguros sociais não teve grande sucesso. O titular, Rocha Saraiva, viria a partir de 1928, como professor de ciência política da Faculdade de Direito de Lisboa, a integrar a Secção Portuguesa dos Congressos Internacionais de Ciências Administrativos e visitaria em 1934 a sua sede em Bruxelas mas não teve mais responsabilidades neste domínio.

O corporativismo instaurado em 1933 nada tem a ver com esta experiência, e é justo dizer-se que, quaisquer que tenham sido as suas veleidades sociais, acabou sobretudo por ser uma forma de controlo policial dos sindicatos consentidos. No entanto no Ministério e nos organismos dele dependentes registam-se a partir de 1958 e sobretudo a partir de 1964, desenvolvimentos interessantes, como a multiplicação de núcleos de organização e métodos, que continuaria até depois do 25 de Abril, a criação do Instituto de Estudos Sociais na esfera da Junta de Acção Social e a criação de tecnoestruturas nas suas áreas, sobretudo nas de Previdência e Assistência. Em todo o caso nunca vi Ferro Rodrigues ou Vieira da Silva (que certamente não esqueceram o Director do Instituto Superior de Economia, que andaria de pistola pelas instalações) a homenagear o seu antecessor Gonçalves de Proença.

Um ano antes, 2018 assistiria ao centenário de Franco Nogueira, marcado pela oferta do seu espólio ao Arquivo Histórico-Diplomático, e pelo falecimento de Vera Franco Nogueira um mês antes da data. Marcelo Rebelo de Sousa publicaria a este propósito um artigo de homenagem à falecida embaixatriz. A história da actuação do Ministério dos Negócios Estrangeiros nessa época vai-se fazendo, o papel de Franco Nogueira como Ministro e como deputado já tem sido objecto de vários trabalhos académicos, e no plano político valoriza-se a mobilização em torno de uma política ultramarina que se veio a reconhecer não ser sustentável. Quanto ao seu Salazar não deixa de merecer algumas críticas, aliás vem de alguém que terá pensado suceder ao então Presidente do Conselho de Ministros.

Em finais de 2019 ocorreu a homenagem ao Ministro da Justiça Antunes Varela, que terá nascido na Relação de Coimbra e contou a participação do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e da actual Ministra, a qual mereceu críticas de antigos estudantes e até antigos assistentes da Universidade de Coimbra dos anos 1960.

Repare-se que não estou em condições de evocar o ambiente da altura, uma vez que teria 13 anos quando foi publicado o Código Civil, contudo lembro-me de terem aparecido nos jornais declarações do Governo explicando que tinham sido seguidas em alguns pontos orientações diferentes das que resultavam dos trabalhos preparatórios e nos anos seguintes ter lido algumas notas críticas quanto às soluções consagradas em matéria de divórcio. Lembro-me é claro, de terem sido construídos muitos Palácios da Justiça, ponto que a actual Ministra, sempre apertada de verbas, valorizou naturalmente no discurso proferido na recente homenagem. Mais tarde alguém me falou do Ministro, explicando que reagia mal quando se lhe olhava para os sapatos (explicaram-me porquê) e finalmente ainda outro alguém me referiu que Antunes Varela, responsável pela Polícia Judiciária, teria reagido mal ao escândalo dos ballets rose em que estariam envolvidos alguns ministros seus colegas. Mas isto são indicações dispersas e socorro-me aqui portanto do que fui lendo, e em particular do que José Manuel Correia Pinto publicou no seu blogue Politeia e fica transcrito aqui.

Na minha leitura de observador impreparado, a actuação de Antunes Varela alimentou  posições conservadoras e reacionárias no contexto das soluções do Direito da Família:

 À época, questões importantes (hoje muitas delas já esbatidas em quase todas as latitudes) eram, entre outras, a confessionalidade ou a inconfessionalidade do conúbio, a admissibilidade do divórcio, a posição da mulher face ao marido, o estatuto dos filhos (nascidos no casamento ou fora dele), questões – algumas delas – que tinham tido um assinalável recuo na legislação do Estado Novo, principalmente depois da entrada em vigor da Concordata entre o Estado português e a Santa Sé (1940).”

José Manuel Correia Pinto chama a atenção para que o Ministro, simulando intervir no debate jurídico, se permitiu-se recomendar o silêncio a um Professor de Direito que publicara um Manual que perfilhava concepções mais abertas:

Eu sempre entendi, por várias razões cujo desenvolvimento se não coaduna com a índole da Revista, que nas prelecções feitas perante o público receptivo e impreparado dos alunos o professor deve concentrar especialmente a sua atenção sobre os problemas da interpretação da lei e da integração das lacunas do sistema, e sobre as tarefas de elaboração científica dos materiais fornecidos pela legislação, abstendo-se quanto possível de intervir em questões de outra ordem, incluindo as que entram abertamente no domínio da política legislativa. Estas interessam de modo particular aos políticos, à administração, às assembleias legislativas ou às comissões revisoras, nas quais os professores têm sempre um papel destacado a desempenhar – mas fora do público escolar, longe do ambiente específico da actividade docente.

Sobre Antunes Varela diz também Correia Pinto:

Durante o longo período em que exerceu funções no Ministério da Justiça muitos crimes foram cometidos pelas forças repressivas da ditadura, nomeadamente as polícias, com destaque para a Pide. Muitos combatentes antifascistas foram assassinados e um número infindável de lutadores pela Liberdade foi preso e torturado. Foi durante a permanência de Varela no Ministério da Justiça que o General Humberto Delgado e a sua secretária foram assassinados pela Pide, em Espanha, em condições sobejamente conhecidas.Varela não somente fechou os olhos a todos estes crimes como indirectamente neles participou,”

Também têm sido mencionadas as retaliações exercidas em plenas sessões dos Tribunais Plenários sobre os próprios advogados ou o tratamento dos presos políticos nas cadeias, que dependiam do Ministério.

É certo que a lei que, pós 25 de Abril, mandou julgar os Ministros do Interior, não fez o mesmo em relação aos Ministros da Justiça. Não deixa no entanto de ser curioso notar que no livro de Andreia da Silva Almeida citado se revela que no Arquivo António de Oliveira Salazar da Torre do Tombo existem documentos mostrando que o nome de Antunes Varela chegou a ser ponderado para Ministro do Interior. E não nos esqueçamos de, tal como aventado em relação a Franco Nogueira, ter sido o nome dele falado para suceder a Salazar.

O que levou a efectuar esta homenagem a Antunes Varela e o Governo de António Costa a participar nela? Regresso ao artigo de Marcelo Rebelo de Sousa sobre Vera Franco Nogueira:

Com seu marido, Alberto Franco Nogueira – então colaborador dileto de Paulo Cunha – pertencia a um grupo de amigos de meus pais. Que incluía, entre outros, Maria Amélia e Paulo Cunha, Isabel e Inocêncio Galvão Telles, Mura e Francisco Leite Pinto, Arlette e Luís Leite Pinto, Ália e Henrique Veiga de Macedo, e, mais tarde, Maria das Dores e António Pinto Barbosa e Maria Helena e João Antunes Varela.”

Será esta a explicação? Ou será demasiado simples?

Aqui chegado, começo a cogitar qual será a próxima homenagem de abraço ao passado? Bom, recordo-me de um Capitão que foi Subsecretário de Estado da Guerra, meteu na ordem uma grande parte da oficialidade republicana conservadora que tinha feito o 28 de Maio e foi participando no Estado Novo, geriu o reapetrechamento do Exército, chegou a Ministro da Defesa sempre em sintonia com o Chefe

Não me admiraria que um dia destes o Ministério da Defesa Nacional anunciasse uma homenagem ao antigo Ministro, General Santos Costa.

 

 

Não sendo fundador do I.P.C.A., Neto de Carvalho foi no entanto um dos seus primeiros sócios efectivos. Num mundo académico de estudos sectorializados foi-me inicialmente difícil identificar as várias referências a ”Neto de Carvalho” com um mesmo protagonista.

Ver também o meu As Secções Nacionais Portuguesas… e para os anos mais recuados também A Organização Científica do Trabalho em Portugal após a II Guerra Mundial, 1945-1974, de Ana Carina Azevedo.

“Vera Franco Nogueira”, Público de 18-8-2018.

Politeia, 26 de Dezembro de 2019 – “A homenagem a Antunes Varela pela Relação de Coimbra – Os discursos da Ministra da Justiça e do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça” e 15 de Janeiro de 2020 -“Antunes Varela, Ministro da Justiça de Salazar – Varela e a Autonomia do Ensino Universitário.”

Que acompanhou ao funeral no Vimieiro.


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