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Terça-feira, Julho 16, 2024

Os Melros

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Agora o tempo estava ameno. Em Janeiro o casal de melros tinha escolhido território para a vida futura num grande jardim de uma casa abandonada há muito.

Trepadeiras e arbustos variados cresciam de forma desordenada pois a mão do homem, com a tesoura de poda, deixara há muito de vir contrariar a natureza. Ou seja, o antigo jardim senhorial passara a paraíso de aves, insetos, lagartixas, ouriços cacheiros e outros pequenos mamíferos, cada qual fazendo a sua vida, acomodando-se às diferente épocas do ano. Havia mesmo uma zona de mata onde cresciam pinheiros bravos, um enorme pinheiro manso e um aristocrático castanheiro.

Os melros tinham decidido fazer ninho num azevinho já bem alto, depois de terem hesitado entre as várias forquilhas de uns galhos de árvore mais avantajada.

Corria agora o mês de Junho. O macho ainda jovem dera início ao canto nupcial no fim de Janeiro, pois o tempo corria de feição,nem muito frio nem muito ventoso. Esse canto anunciava aos quatro ventos que aquela zona lhe pertencia, a ele e à cara metade. Até os machos adultos o seguiram na escolha deste pedaço de terreno densamente arborizado um ou dois meses mais tarde. O gorjeio alegre e aflautado fazia as delícias da Dona Laura, a única vizinha da decadente casa apalaçada. Esta senhora era testemunha da progressiva ruína a que a casa ainda aparentemente intacta estava votada. Algumas telhas vidradas, partidas, deixavam já infiltrar águas de chuva, madeiras dos tetos apodrecidas pendiam tristes e quebradas fazendo correr o risco de ruírem paredes até agora sustentadas pelas grandes trepadeiras que invadiam portas e janelas despedaçadas.

Ilustração: Os melros, de Beatriz Lamas Oliveira

A melra muito noiva e enamorada já começara a procurar galhos, folhas e ervas para construir o ninho onde haveria de colocar os ovos depois de o ter bem calafetado com lama trazida no bico quando não nas patas. O macho não ajudava muito na construção da futura morada, nem ela queria, muito coisa do seu jeito e gosto para escolher formas e materiais onde haveria de chocar os belos ovinhos que o instinto maternal lhe dizia estarem a chegar.

Tinham comida variada ali em volta durante todo o ano. Não precisavam de procurar novas paisagens por falta de alimento. Bagas coloridas de alguns arbustos, insetos catrafilados com arte,até mesmo algumas lagartixas descuidadas que brincam ao esconde esconde sem desconfiar da cilada.

A vida corria-lhes de feição e nada os fazia esperar qualquer desgraça.

A vizinha dona Laura subia ao terraço da sua casa e com uns binóculos que lhe deixara o marido e observava a vida animal selvagem, tão animada, do jardim do antigo palacete dos Górgias.

Sabedora do gosto que os animais têm pela sua privacidade a viúva Laura Amorim não se deixava observar, usando os binóculos herdados, com precaução e no silêncio que habitava a sua própria casa.

O casal de melros merecia toda a sua devoção e cuidados. O macho de cor negra azulada, com os olhos acutilantes orlados de um anel amarelo igual à cor do bico afiado era fácil de distinguir da fêmea alegre e atarefada, pois o bico desta era muito mais escuro, enquanto no peito a plumagem mostrava um pontilhado branco acastanhado.

A viúva Amorim era uma apreciadora emérita do canto do melro vizinho. Conhecia-lhe tonalidades e variações e sabia reconhecer o canto de aviso de perigo nas redondezas, do canto de chamada da fêmea escolhida para a vida.

Um muro alto separava o seu do jardim do palacete abandonado. Por isso subia ao terraço para observar a vida dos animais, o que a interessava sobremaneira e lhe dava maiores alegrias do que as conversas com os outros habitantes da aldeia que não lhe acompanhavam os gostos pela bicharada fervilhante do parque do lado. Na verdade, na aldeia de A-dos-Padrinhos, o interesse maior era a vida alheia e disso estava a Dona Laura completamente alheada.

Já no tempo do falecido marido, o Coronel Amorim, de que ficara com os binóculos militares, ambos pouco se interessavam pelas vidas da Dos-Padrinhos e o Coronel era conhecido pela alcunha de Óculo Emplumado, quer por causa da viseira de couro que usava no olho direito ferido numas manobras militares, quer pelos modos bruscos e emproados com que escondia um coração terno que rodeava a esposa de atenções veladas.

O gato da Viúva Amorim, o Bigodes, era o único ciumento da casa. A ele não permitia a dona que subisse ao terraço, pois daí podia saltar para o muro, e deste para algum braço do pinheiro manso que se estendia cada vez mais em direção ao castanheiro amado, e sem cerimónias nem afetos descabidos aproveitar-se da distração dos melros que de manhã saltitavam nas clareiras ainda relvadas do jardim do lado, transformando-os em presa abocanhada. Embora os melros no seu gorjear sejam capazes de imitar o miar dos bichanos, a Dona Laura pensava ser mais precavido não os deixar entrar em contacto. Aulas de música, não ia a viúva deixar o Bigodes dar aos melros pela calada.

Ilustração: Aguarela, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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