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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Transportes de passageiros no Continente – sistema integrado ou manta de retalhos?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Na área dos transportes de passageiros, continua por definir claramente em matéria de políticas públicas o que compete aos órgãos nacionais, ou pelo menos do Continente, o que compete aos órgãos municipais, e, sobretudo, o que compete ao nível intermédio, chame-se este regional, metropolitano ou intermunicipal.

Refiro-me tanto às decisões de investimento como à organização empresarial e aos direitos dos utentes. Em tempos publiquei no Jornal Tornado um artigo sobre os passes do PART – Programa de Apoio à Redução Tarifária, Passes sociais: quando a esmola é grande o pobre desconfia? vejo agora que tenho de voltar ao assunto, em termos mais amplos.

Matos Fernandes

A esta falta de definição que tem reflexos orçamentais, uma vez que, salvo as decisões de incidência e financiamento puramente locais, o financiamento de muitos dos investimentos passa pelo Orçamento do Estado votado pelo Parlamento, aliam-se a circunstância de o Parlamento e o Governo terem competência legislativa concorrente em muitos domínios, bem como a de os deputados intervirem quer através da aprovação de medidas legislativas, em princípio vinculativas para os governos, quer através da votação de meras recomendações a que estes não só não se consideram vinculados mas às quais, suspeito, nem consideram ser necessário reagir.

Decisões de investimento, organização nacional e direitos dos utentes são encarados no âmbito nacional em relação aos caminhos de ferro, após pressões persistentes, que parecem momentaneamente contidas, para transferir a titularidade e a gestão de unidades de negócio específicas para o âmbito regional ou sub-regional. Mesmo assim, resta ver a evolução, sendo para já a reintegração da EMEF na CP um passo positivo.

Já em matéria de transportes urbanos e rodoviários, reconhecendo-se para os primeiros uma jurisdição municipal, tem-se vindo a hesitar sobre os níveis de coordenação superiores a esta. Para o PART optou-se por regular o relacionamento entre o Estado e as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto (e também as Comunidades Intermunicipais) e, aqui contratualizando, entre estas e os operadores, aparentemente sem dificuldades de maior, mas a hora da verdade virá, em Lisboa, com a celebração de novos contratos de concessão de transportes rodoviários sob uma marca CARRIS Metropolitana caso a AML queira fazer valer o seu poder negocial. A FERTAGUS beneficiou por agora, não inesperadamente dado o papel instrumental de Humberto Pedrosa como parceiro privado português no capital da TAP, de uma extensão do período de concessão.

Identifico neste momento quatro grandes disfunções

Fernando Medina

A primeira, é a ausência de um enquadramento adequado para o Metro de Lisboa, depois de se ter avançado para uma intermunicipalização dos / da STCP, sendo que ambas as empresas, tendo um âmbito originalmente municipal, têm de facto um impacto que interessa à população de vários concelhos. Neste contexto, ter ficado o Metro de Lisboa sob gestão do Governo mas de facto sujeito às orientações do Município de Lisboa era, para além de desresponsabilizador, potencialmente gerador de conflitos e a decisão recente de criação da Linha Circular com desconexão no Campo Grande da linha que traz passageiros de Odivelas não podia deixar de suscitar perplexidade e, para os mais directamente atingidos nas suas expectativas, desagrado.

O Metro de Lisboa tem uma história de anúncio de planos de expansão que vão sendo sucessivamente alterados, o que tem dado origem às mais diversas leituras, mesmo quando estão apenas em causa trajectos dentro da capital, em que as zonas oriental e ocidental parecem estar cada vez mais distantes. Dificilmente se pode considerar inesperada a decisão de na Lei do Orçamento para 2020 se suspender a construção da Linha Circular uma vez que a Assembleia da República formulara na Resolução nº 167/2019 (Recomenda ao Governo um efetivo investimento no Metropolitano de Lisboa e um plano de expansão que sirva verdadeiramente as populações, com a suspensão do projeto de expansão da Linha Circular) aprovada em 19 de julho de 2019 e publicada apenas em 10 de Setembro, uma recomendação que o Governo preferiu ignorar, e cujo sentido, agora com carácter vinculativo, foi vertido no Orçamento.

Por mim sempre direi que a forma de converter esta ameaça em oportunidade, será fazer uma revisão pontual da Lei do Orçamento do Estado para 2020, consagrando um instrumento de programação que calendarize a ligação a Loures e os estudos requeridos pela opção Alcântara, que chegou a ser considerada em outros anúncios de expansão da rede do Metro.

A segunda tem a ver com a inadequação das fronteiras das Áreas Metropolitanas e Comunidades Intermunicipais à gestão das deslocações pendulares. A Assembleia da República pronunciou-se em três Resoluções pela abrangência de todo o território nacional pelo PART, ou pelo menos pela celebração de acordos entre as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto e as Comunidades Intermunicipais limítrofes, o que veio a acontecer em diversos casos, embora o problema do financiamento se tenha colocado não só nestes casos mas também no da Área Metropolitana do Porto, que não teve capacidade para arrancar em 2019 com o passe família.

A terceira tem a ver com a exigência de passes, apesar de gratuitos, para as crianças entre 4 e os 12 anos, gratuitidade que constitui uma medida de vistas largas que tanto se justifica por ser uma forma de aliviar os encargos das famílias (e assim, indirectamente, reduzir a incidência dos factores de natureza económica que desencorajam a natalidade) como de familiarizar a geração mais jovem com a utilização de transportes colectivos. Reportando-me agora ao regime de contra-ordenações consignado pela Lei nº 28/2006, de 4 de Julho, republicada em anexo ao Decreto-Lei nº 117/2017, de 12 de Setembro, será de aplicar este regime, em todo o seu rigor, às dezenas de milhares de jovens que assim viajam gratuitamente todos os dias, sozinhos ou acompanhados, e se tenham esquecido do seu cartão?

Julgo que a nossa legislação já terá em tempos acolhido um tratamento mais favorável do caso do passageiro / passageira que, tendo título de transporte válido, se esquece de o trazer consigo ou não o localiza quando lho pedem. E pergunta-se, e estou a pensar no caso da miúda de 8 anos filha de Cláudia Simões que tinha cartão válido com transporte gratuito mas não o trazia consigo, que fazer nestes casos? O artigo 3º da lei, que talvez não tenha sido pensado para o caso das crianças de 4 a 12 anos, remete-a para o Artigo 7º, isto é para as contraordenações graves e simples, mesmo não tendo de pagar o transporte. No caso de um passe assentando na intermodalidade em que se percorrem vários concelhos, se utilizam vários modos de transporte e vários operadores, e que é gratuito, por que razão os motoristas dos autocarros, investidos da responsabilidade de “agentes de fiscalização”, têm de cair em cima das crianças filhas das Cláudias Simões, “agentes das contra ordenações” como a sábia lei as designa? Bom, suponho que é porque os pagamentos da Área Metropolitana de Lisboa no âmbito do PART são repartidos em função das validações registadas pelos operadores, que assim não têm uma função meramente estatística. No entanto não é a mesma coisa que andar num transporte colectivo sem ter pago o preço devido pela passagem.

Mas Cláudia Simões não informou o “agente de fiscalização” que quando chegassem à paragem de destino, estaria lá o irmão da miúda com o passe dela, para fazer a validação, não prejudicando a VIMECA? Sim, mas o artigo não sei quantos da Lei diz que a validação tem de ser feita à entrada, e que quem não o fizer paga uma coima cujo montante dá para comprar vários passes mensais e um número de meses de passes gratuitos matematicamente infinito, o que, para usar uma palavra cara aos juristas que nos escrevem as leis, é manifestamente desproporcional.

Razão tinha Sttau Monteiro quando escrevia “O Reino caiu nas mãos duma gente mesquinha que chama alma ao estômago e que eleva regulamentos policiais à categoria de princípios sagrados.

A lei conseguiu teoricamente o grau máximo de dissuasão mas carece de ser aplicada com inteligência e flexibilidade pelos operadores. Se não, reveja-se a lei tendo em conta os objectivos e os mecanismos do PART, para não criar conflitos desnecessários.

A quarta disfunção, ou, mais brandamente, ameaça de disfunção, tem a ver com a intenção da Câmara de Cascais, liderada por Carlos Carreira e Miguel Pinto Luz, de impor a gratuitidade dos transportes colectivos no concelho, desde que usados por residentes deste, e pretender alargá-la aos transportes ferroviários, isto é, à CP, que estão fora da sua jurisdição. Se a moda pega… Deve haver algum grau de universalidade nas políticas redistributivas, mesmo que mascaradas de políticas ambientais.

 

 

Se bem que tenha sido necessário diferir a produção de efeitos do diploma que “intermunicipalizou” a STCP.

 O Metro de Lisboa arrancou como empresa quase exclusivamente detida pelo Município, que, ao contrário do que António Costa e Fernando Medina chegaram a propalar, foi, depois da nacionalização, indemnizado ao abrigo da Lei publicada em 1977.

Sou um utilizador da Linha da Cintura na ligação entre Moscavide/Gare do Oriente e Alcântara mas os horários de funcionamento estão muito aquém das necessidades de ligação entre as zonas oriental e ocidental de Lisboa.

O objectivo de reduzir a entrada de carros em Lisboa parece que seria melhor servido com a ligação a Loures, tendo sido a construção da Linha Circular justificada com a maximização do número de passageiros transportados e consequente contributo para o equilíbrio de exploração do Metro, o que com a adopção dos novos passes não parece líquido.

Em tempos o prolongamento do Metro até ao Colégio Militar foi, em reuniões técnicas, pressionado pela existência do projecto de criar na zona uma Cidade Administrativa, da qual, uma vez tomada a decisão relativa ao Metro, não mais se ouviu falar.

Respectivamente, nº 28/2019, de 19 de Fevereiro (Recomenda a adoção de medidas que garantam o acesso de todos os utilizadores de transporte público ao programa de apoio à redução tarifária, nos movimentos pendulares), nº 177/2019, de 11 de Setembro ( Recomenda ao Governo a articulação tarifária e a promoção da redução de preços dos transportes nas ligações entre áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais limítrofes) e nº 233/2019, de 31 de Dezembro (Recomenda ao Governo a efetiva aplicação do Programa de Apoio à Redução do Tarifário dos Transportes Públicos em todo o território nacional).

Deixo de parte o caso hipotético da criança que acompanha turistas ou residentes em outras áreas do Pais, muito embora me pareça que a exigência de pagamento do custo dos transportes poderia ser nestes casos também dispensada.

Felizmente Há Luar!, Acto II, Fala de Sousa Falcão.


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