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Terça-feira, Julho 16, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XVIII. Tanto tempo e parece que foi ontem.

Minha memória,

Lembro-me de ti a dares os primeiros passos… Foi há tanto, tanto tempo e parece que foi ontem. Quando a minha existência não passava de um pequeno soluço entre sonos abraçados e afagos generosos da minha mãe.

Não sei como fazes para me trazer agora o cheiro da minha pele de criança, do tempo em que a vida se resumia a esse usufruir pacífico entrecortado por choros e risos alternados. Por gargalhadas desmedidas e gestos ainda tão incertos.

Já nessa altura me fazias recordar o quase nada, ainda, da minha pequena vida.

Não eram recordações muito definidas essas primeira lembranças que tu, minha memória, trataste de acarinhas, de cuidar, a tal ponto que ainda hoje as recordo.

Não posso afiançar que o meu berço estivesse exactamente debaixo da janela ou que o pijama aos quadradinhos o fosse realmente mas há coisas que nunca esqueci e tomo por tão verdadeiras, tão absolutamente verdadeiras.

Era uma noite escura e fria e chovia muito. Os tacos do chão da divisão ampla que me pareceu um quarto e depois um sitio apenas para brincar, tinham o cheiro da cera aplicada recentemente. A mãe saíra à pressa para dar à luz nessa noite de Novembro. Uma tia que quase já não reconheço, nos seus dezassete ou dezoito anos, chegou e levantou-me no ar. Lembro-me de rodar e rodar e rodar em gargalhadas, olhar para baixo e reconhecer a minha tia e a janela que ficara ao meu alcance e a noite e o matraquilhar pesado das gotas de chuva na janela…

É tão pequenino mãe, para que serve? E os olhos azuis do meu irmão que me pareceram berlindes de pedaços de mar e os choros e a mãos do recém nascido que agarraram as minhas.

Depois disso, ou não seria logo a seguir, o menino encavalitado nas minhas costas conquistou o quarto todo e, o oeste dos índios e cowboys invadiu definitivamente todo o espaço.

Era num balanço, num balanço que se galopava e o chão verde da alcatifa grossa que nos traçava rumos absurdos nos joelhos, os soldadinhos caídos e no fundo do quarto mesmo ao pé da porta, uma panela bruxuleante com cheiro a eucalipto… A tosse a tosse que persiste, que insiste, que se agarra a recordações e atravessa o espaço.

O tempo da infância recorda-se devagar.

As memórias, creio que todas, iniciam-se ali, nos primeiros passos de cada um. O seu trabalho laborioso começa ali, no início da gente, certificam-se depois, as memórias, de que essas histórias, esses cheiros, esses pequenos episódios se revestem de pompa, importância e muita cor. Por forma a poderem acompanhar-nos sempre em toda a vida.

Hoje, não faço ideia onde param os soldadinhos de chumbo nem me lembro já do fundo do azul que escorria em gargalhadas do rosto do menino. O tempo tratou de afunilar o oeste, acabar com quase todas as tosses e correr com a panela no fundo do quarto.

No entanto, se fechar os olhos e recordar com muita força, o cheiro a eucalipto senta-se ainda na borda do meu sofá e ri-se, ri-se muito. Por causa disso, mesmo sem querer recomeço a tossir…

 


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