Tendo em conta o facto de Delmar Maia Gonçalves ser um escritor moçambicano que se encontra radicado em Portugal, parece-nos compreensível – sem prejuízo de outras considerações de natureza estética que tornam a literatura um campo fecundo de experimentação de vivências humanas –, que a sua caligrafia poética acabe por se ancorar no jogo de linguagem que inscreve os mecanismos de subjectiva do espaço polissémico de “entre-lugares” geograficamente marcados.
Esta colocação preambular, embora espelhe sobretudo as preocupações que balizam o exercício de leitura de alguns poemas do livro Entre dois rios com margens (2013), do poeta e activista cultural da diáspora, Delmar Gonçalves, com vista a realçar que os índices espaciais podem traduzir «uma escrita poética inquieta e provocativa» (Alves, 2007: 69), ela não deixa de ecoar um fenómeno singularmente mais abrangente. Essa abrangência estética tem que ver com a peregrinação do ser humano à escala do globo, que levou Edward Said a considerar que a nossa época é da pessoa deslocada (Said, 2003: 47).
Nesta medida, pode dizer-se que a poética biográfica de Delmar Maia Gonçalves encontra repercussões no título do livro Entre dois rios com margens, enquanto signo metonímico que estrutura o quadro semântico no dualismo[1] estético. O referido diteísmo estético configura uma estratégia enunciativa assente na representação da imobilidade do sujeito No silêncio/ do Exílio profundo, onde se desata o fio/ da palavra vital (Gonçalves, 2013: 11), assim como na representação de um sujeito precisamente viajante[2], que encontra no ofício poético os alinhos, desalinhos/ atinos, desatinos/ acertos, desacertos/ vias e desvios! (Gonçalves, 2013: 39) que modelizam um novo inventário identitário.
Se, no primeiro caso, o silêncio do exílio experienciado pelo «Eu» poemático e pelo «Poeta» pode remeter a uma espécie de “poética contrapontística”, em que o trabalho da língua vai perdendo a capacidade de nomear a realidade angustiante do quotidiano, o que se manifesta no simbolismo do sujeito desenraizado como efeito do confronto de temporalidades e mundividências ambivalentes, no segundo, a travessia assumirá o significado de retorno às origens, que, em visita sepulcral/ Aos entes humanos (Gonçalves, 2013: 68), reinventa os vales da palavras numa obstinação rítmica que busca inutilmente por um refúgio na terra natal, já que a invocação da paisagem mnemónica – que espelha o funeral da verdade –, dialogante com um presente exasperante – que anuncia o suicídio das almas vindouras –, transforma os seus versos num grito de fúria.
Realmente, no conjunto de poemas que encontram motivos de irradiação lírica da realidade moçambicana, são visíveis as tensões ideológicas de um poeta cosmopolita que, na sua errância, transformou-se num verdadeiro repositório de um somatório de experiências /(entre dramas e comédias) (Gonçalves, 2013: 40), ao mesmo tempo que se coíbe de esquecer a história do seu país. Em Moçambique, por exemplo, o sujeito poético revela a persistência dos Corvos, já há muito apontados por Rui de Noronha no seu célebre soneto Surge et Ambula; das Hienas, também glosados pelo consagrado poeta moçambicano José Craveirinha em Babalaze das hienas, numa clara referência à actuação dos actuais dirigentes políticos que se socorrem dos cargos de governação para a satisfação do seu Voraz apetite de Abutres, como se nota nos versos seguinte, da poética de Delmar Gonçalves (2013: 30):
Em Moçambique
ainda há Corvos
de mau agoiro
com sorrisos de Hienas
e um Voraz apetite de Abutres
Segundo o poeta, a nomenclatura política pós-colonial coloca a descoberto os fantasmas da opressão colonialista portuguesa, porquanto a conduta das elites, metaforizada pelos sorrisos de Hienas ou pelo jogo sujo, quer dizer, discursos eloquentes, mas carentes de uma fidelização pragmática e ético-moral, que lhes abona a perpetuação do poder, consiste em grilhetas de opressão que concorrem para a acomodação dos seus efeitos nocivos, perceptíveis na agudização quotidiana do empobrecimento e do sofrimento do povo. Esta notação acusatória, que encontra respaldo no que o poeta chama poema contra, também é notória no poema Chuabo, quando o sujeito lírico palmeia uma cidade de Quelimane lúgubre e sem perspectivas de melhoramento das condições de vida dos indivíduos num futuro próximo, justamente porque
Abutres
Semearam tempestades de vazio
Para que lá
Apenas se colhessem
Ventos de nada (Gonçalves, 2013: 73),
De igual modo, é função do tom de revolta que o poeta projecta Chokwé como lugar de alocução para observar como amargura a força destruidora dos fenómenos naturais, assim como prestar solidariedade aos indivíduos deste sulbúrbio, na terminologia de Mia Couto, onde A água acordou pesadelos/ E a esperança adormeceu (Gonçalves, 2013: 59). Porém, esta «semântica agressiva, crua e profundamente irónica», conforme preferiu descrever Vera Novo Farnelos no texto de apresentação doutro livro do autor, designadamente Fuzilaram a Utopia (2016), parece ganhar maior acutilância, quando o sujeito poético se insurge no púlpito da história contra o triunfalismo da ambição perversa que mergulhou o país numa guerra fratricida.
Num esforço de intertextualidade, que retoma o título de um poema grandiloquente de Eduardo White nomeadamente, Homoíne, esse lugar de rememoração sintomática da nossa vergonha colectiva, Gonçalves não esconde a sua negação ao adestramento da memória para que a poesia encontre, nos destroços da razão humana, a capacidade de carregar as angústias do mundo sem, contudo, cometer o erro de esquecer um pedaço que seja/da esfera do nosso caos! (Gonçalves, 2013: 24):
Em Homoíne
Destila-se lágrimas no vapor
Do tempo
Das balas (Gonçalves, 2013: 48).
De facto, as lágrimas que se derramam No vapor/ Do tempo continuam a inundar a nação moçambicana num recital de conflitos bélicos em que a capacidade aniquiladora Das balas denota o percurso inverso das aspirações colectivas, designadamente o da negação do primado da paz e de reconciliação efectivas. Por isso, o 4 de Abril assoma do universo poético gonçalino como uma voz das conchas que se abre contra esse estado de coisas, compassando as fragilidades de fixação do ideal “Nacionalista” num quadro que perturba a experiência do leitor, na medida em que as Velhas balas congeladas nas tumbas jamais anunciam o apagamento dos símbolos da morte, todavia, a exacerbação do terror da guerra e a continuação do luto colectivo:
Em Muxúnguè
Despertaram
Velhas balas congeladas
E a morte
Acordou (Gonçalves, 2013: 67).
Uma observação que nos permitisse colocar uma pausa a este exercício de análise não ilude a possibilidade de aproximação do pensamento estético de Delmar Gonçalves à poética átona de Sebastião Uchoa Leite. Na verdade, segundo escreve Paula Glenadel, no comentário que esboça sobre a opinião de Luiz Costa Lima, o poeta, tradutor e ensaísta pernambucano pratica uma «agressão […] contra a linguagem do sublime, a dizer dos sentimentos rarefeitos das almas eleitas […]» (Lima, 1991 apud Glenadel, 2007: 57), uma postura consciente que a poética gonçalina também evidencia seja na forma, através de uma ruptura «com os padrões esteticamente normativos, não respeitando a métrica, rima ou ritmo[3]» (Farnelos, 2016), seja na abordagem de «temas relacionados com morte, guerra e exploração dos mais fracos» (ibid.), mais fracos estes equiparados aos misteriosos/ peões da partida de Xadrez, na dicção poética de Gonçalves (2013: 33).
Apesar disso, será preciso ressalvar que, na produção poética de Delmar Gonçalves, esta «agressão» está propositadamente mascarada, para que a Crítica de Ouvido[4] se faça «uma agressividade que nunca comete agressão, uma exaltação que nunca é raiva, que é mais discernimento, uma pátria a bulir por dentro que não contém uma fronteira» (Honrado, 2001).
E não conter as fronteiras não significa necessariamente exilar-se entre dois rios, onde só o silêncio fala na cegueira agoniosa do mundo, enquanto a torrente do absurdo corrói as margens, arrastando consigo a ilusão/ da utopia igualitária (Gonçalves, 2013: 15), porém a força motriz precisa para ressuscitar, nos velhos Imbondeiros e no Amanhecer agreste de Nicoadala, as esperanças de um poeta que «busca a frescura das palavras e persegue o mistério dos sentidos» (Ferreira, 2013: 8) com mãos e vozes seguras. Pois,
Os pássaros
Acordaram esperanças
A morte morreu
E a vida renasceu (Gonçalves, 2013: 58).
“Os pássaros / acordam esperanças”, pois é! Isto é incrível. Nicoadala surge como o palco de todo o mal e de toda a esperança, em que a natureza desempenha um papel importante na pacificação da paisagem social. A natureza humana é ultrapassada pela natureza poética, porquanto a única esperança que sobra é utópica e lírica. A liricização da realidade configura uma característica fundamental da poética de Delmar Gonçalves, nestes rios que somente têm as margens para futilizar o mal.
- ALVES, Ida Ferreira (2007). “Poesia de Língua Portuguesa e Identidade Plural: dois exercícios antropofágicos”. In AMARAL, Ana Luísa et. al. (2007). Cadernos de Literatura Comparada – 16 Paisagens do Eu: identidades em devir. Porto: Edições Afrontamento, pp. 63-86.
- FARNELOS, Vera Novo (2016). “‘E Eu sou Eu’: Uma Leitura do livro ‘Fuzilaram a Utopia’, de Delmar Maia Gonçalves”. Texto de apresentação do livro Fuzilaram a Utopia na Associação 25 de Abril. Disponível em http://delmarmaiagoncalves.blogspot.com/2016/12/uma-teoria-sobre-fuzilaram-utopia-de.html?m=1, acedido a 8 de Outubro de 2019.
- FERREIRA, Amadeu (2013). “Prefácio”. In GONÇALVES, Delmar Maia (2013). Entre dois rios com margens. Cascais: CEMD Edições, pp. 6-8.
- GLENADEL, Paula (2007). “Poéticas do Desaparecimento: o sujeito à espreita em dois poemas de Sebastião Uchoa Leite e Marcos Siscar”. In AMARAL, Ana Luísa et. al. (2007). Cadernos de Literatura Comparada – 16 Paisagens do Eu: identidades em devir. Porto: Edições Afrontamento, pp. 53-62.
- GONÇALVES, Delmar Maia (2013). Entre dois rios com margens. Cascais: CEMD Edições.
- HONRADO, Alexandre (2001). “Moçambiquizando, de Delmar Maia Gonçalves”. Lisboa /Madoma. Disponível em http://macua.blogs/moambique _para_todos/2006/03/ moambiquizando_.html?pr=94214&lang=pt, acedido a 8 de Outubro de 2019.
- SAID, Edward (2003). Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
[1] Cf. Gonçalves (2013: 33).
[2] Cf. Gonçalves (2013: 12).
[3] A este propósito, pode ler-se o pensamento do poeta no lançamento da obra…
[4] Crítica de Ouvido é uma obra de Sebastião Uchoa Leite, publicado em 2004 sob a chancela de Cosac Naify editora. Embora seja um livro de natureza ensaística, pareceu-nos sugestivo a recuperação do epíteto por encaixar perfeitamente na nossa abordagem sobre a poesia de Delmar Maia Gonçalves.