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Terça-feira, Julho 16, 2024

A circulação do livro no espaço da lusofonia

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

No que diz respeito à língua, e porque em português nos entendemos, à partida não haveria grandes entraves. E, digo à partida porque eles existem. Em Portugal, por exemplo, somam-se nos leitores anticorpos em relação aos livros em Português de origem brasileira ou africana.

Por ocasião do Encontro de Escritores promovido pelo Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora na Biblioteca Camões a 13 de Fevereiro de 2020 e perante um público interessado e muito participante.

O debate decorreu entre a mesa e a assembleia, com a promessa de continuar.

O meu agradecimento ao Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora Dr. Delmar Maia Gonçalves e a todos os autores e intervenientes culturais presentes, pela oportunidade de debate de temas tão importantes.

Vivemos numa era global em que é simples fazer circular tudo, absolutamente tudo e, fazê-lo num espaço de tempo curto. Efectivamente, o nosso consumo global pauta-se pela circulação de bens sejam eles de primeira necessidade ou não. Todos comemos as mesmas frutas, vestimos as mesmas roupas, consumimos a mesma tecnologia independentemente do espaço geográfico que ocupemos. Tudo circula. Tudo, menos os livros. Os livros não circulam e quando o fazem, fazem-no penosamente.

Sabemos que existem alguns entraves à leitura que se prendem com as várias expressões da Língua Portuguesa no espaços da lusofonia e, que além disso, com os livros concorrem as novas tecnologias e os audiovisuais. Têm estado, por isso, a diminuir os leitores, mas será que são essas barreiras as únicas responsáveis pela fraca circulação do livro no espaço lusófono?

No que diz respeito à língua, e porque em português nos entendemos, à partida não haveria grandes entraves. E, digo à partida porque eles existem. Em Portugal, por exemplo, somam-se nos leitores anticorpos em relação aos livros em Português de origem brasileira ou africana. Anticorpos esses alimentados pelas editoras e, por vezes, pelos próprios autores. Que o diga Laurentino Gomes que optou por uma edição vertida para português de Portugal no seu livro “1808”. É verdade, escapou na altura à maioria mas saíram duas versões do mesmo livro numa única língua com adaptação para o público português. Tendo sido esse, apenas um caso, talvez dos primeiros.

Nem sequer imagino o que seria Jorge Amado vertido para português de Portugal…

Quando se fala na não circulação do livro, obviamente há excepções. Circulam os autores cabeça de cartaz das grandes editoras que acumulam prémios e participações em festivais literários nos países lusófonos e ao longo de décadas. Sem desprimor para a carreira de ninguém, será que nos últimos vinte anos a literatura Africana se resume a esta mesmíssima meia dúzia de nomes?!

Se falarmos de literatura brasileira o panorama é ainda mais difícil. Jorge Amado continua como figura de proa secundado por muito poucos. Como se um deserto editorial tivesse tomado conta da literatura brasileira das últimas décadas, quando na realidade, o que se passa é exactamente o oposto. A literatura brasileira dos nossos dias pauta-se por uma panóplia de novos autores de grande qualidade, a grande maioria dos quais totalmente desconhecidos em Portugal.

Há uns bons anos e tendo ainda muito pouca consciência das causas desta não circulação do livro, nomeadamente entre Portugal e o Brasil, tentei dar a conhecer alguns escritores portugueses no Brasil e fiz o caminho inverso, trazendo muitos livros e muitos autores que não eram e, continuam a não ser, conhecidos em Portugal.

As atitudes foram diferentes sendo os resultados práticos exactamente os mesmos.

Lá, a curiosidade e a abertura para tudo e todos que culminou em convites, em edições e participações para alguns nomes portugueses. Só não foi mais longe porque daqui, o desinteresse pesou mais.

Posso vos dar um exemplo concreto: As jornadas de Literatura de Passo Fundo. Passo Fundo é um espaço geográfico privilegiado, no sul do Brasil, fronteira com o Uruguai. Um espaço onde a escrita e a leitura têm um papel de relevo e os livros em Português e em Castelhano convivem. Trata-se da maior feira de literatura do continente americano a céu aberto.

A única abertura que eu tive para falar das Jornadas de Literatura de Passo Fundo em Portugal, foi com a editora de António Lobo Antunes, a Drª Piedade Ferreira.

Fui percebendo efectivamente e, a pouco e pouco que os nossos editores quase nada percebiam da nova literatura brasileira e, que na maioria dos casos os nomes de que eu lhes falava eram totalmente estranhos.

Foi no entanto muito frutificante todo esse esforço, pelos amigos que fiz e porque percebi que um pequeno circuito paralelo à margem das grandes editoras se esforçava como eu, para romper essa barreira. Conheci assim, a editora Tágide e a Celina Veiga Oliveira, editora essa já desaparecida que fez um trabalho notável no que diz respeito à divulgação da nova literatura brasileira em Portugal.

No Brasil nomes como Tania Rosing a mentora das Jornadas de Literatura de Passo Fundo, e Miguel Rettenmaier, editor, professor universitário e um eterno curioso de tudo o que por cá se fazia, abriram-me as portas a um mundo novo.

Conheci Ferreira Gullart, Mariana Ianelli, Maria carpi, Carlos Nejar, Aldyr Garcia Schlee e tantos outros.

Com a continuação dos meus esforços, percebi que era mais fácil a um autor brasileiro ser editado em Paris ou na Alemanha do que em Lisboa.

Efectivamente, nomes de que eu falava e ninguém conhecia em Portugal nem parecia ter interesse em conhecer, eram já acompanhados por exemplo, pela Petra Masky da Mertin e editados com sucesso na Alemanha.

Passaram alguns anos destes meus esforços mas não creio que o panorama tenha mudado muito.

Recentemente e talvez porque assim o exigem os leitores, sobretudo novos leitores brasileiros radicados à pouco em Portugal, uma livraria brasileira abriu as portas em Lisboa. Chama-se Livraria da Travessa e propõe-se trazer directamente do Brasil os novos nomes da literatura brasileira em edições brasileiras que importa directamente. Consegue assim, contornar em parte, o empedernido sector editorial. Tal como me explicaram, não é sempre um processo simples e esbarra com várias questões, como por exemplo o facto de alguns autores terem os direitos de autor barrados para Portugal na esperança de virem um dia a ser editados por uma grande editora portuguesa.

Foi com surpresa que a par da nova literatura brasileira vi igualmente nas estantes da Livraria da Travessa alguma literatura Africana. É mais fácil, explicaram-me, para os autores africanos, serem levados primeiro para o Brasil e depois chegarem a Portugal através da Livraria da Travessa.

É uma pequena livraria em Lisboa e simultaneamente uma luz num panorama editorial sufocado e sufocante.

Efectivamente, os livros não circulam no espaço da Lusofonia. Por detrás deste aparente desinteresse, ignorância ou inércia estarão certamente directivas muito concretas que atravessam décadas e se se impõe como absolutamente necessárias. Por quem e porquê são as perguntas que vos deixo.

O livro, quer-se efectivamente estanque, parado e sobretudo, desconhecido no espaço lusófono.


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