Parte II
Uma escola de pensamento diferente, debatida na Conferência Islâmica de 2016, vê o grupo islâmico como apenas mais uma forma de um regime dominante poder “fazer de conta” que compartilha o poder, ou seja, desde que tal grupo islâmico esteja ligado ao regime dominante. Assim, sem fazer esforços para a reabilitação política, o poder mantém-se. Foi assim que alguns grupos islâmicos com o “pragmatismo da necessidade de sobrevivência” optaram por trabalhar dentro de estruturas locais, regionais, internacionais e até sectárias. Alguns outros grupos adotam a Dawah religiosa radical, enquanto outros baseiam sua ideologia em profecias mais ou menos mítico-fantáticas.
Uma das transformações mencionadas pelos participantes na Conferencia Islamica de 2016, a que me tenho vindo a referir, utiliza o sectarismo como ferramenta para alcançar o poder. A esse respeito, o partido libanês do Hezbollah representa um modelo de “xiismo político”, os houthis no Iemen representam o “zaiidismo político” na defesa dos interesses da comunidade zaidy, onde a minoria sectária se transformou num tribalismo colaborativo para alcançar poder ou defender seus interesses e privilégios.
Em geral, o movimento houthi centrou seu sistema de crenças no ramo islâmico de Zaydi, uma seita islâmica quase exclusivamente presente no Iemen. Os zaydis representam cerca de 25% da população, os sunitas representam 75%.
Na Conferência Islâmica foi apreciada a atitude ocidental em relação às tentativas ou sonhos da Primavera Árabe. Muitos pensam que a atitude ocidental que prevaleceu no início dessas revoluções estava propensa a ceder a uma nova realidade que eventualmente levaria os movimentos islâmicos ao poder.
Essa perspetiva mudou: parece que atualmente os países ocidentais estão felizes em ver que essa estratégia islâmica falhou. Os dois pontos de vista diferentes representam as duas tendências de pensamento no Ocidente, embora ambas pareçam sejam obviamente guiadas por interesses nacionais. Uma tendência não-conformista é capaz de ser entendida como podendo ser uma ponte para o diálogo com o Ocidente e trazer uma reconciliação. Outro ponto de vista bastante difundido entende que a maioria dos movimentos islâmicos representam uma linha de pensamento que contradiz o esquema cultural ocidental. Os defensores desse pensamento foram rotulados pelos islâmicos como inimigos.
Resistência palestina e transformações da primavera árabe
Na sessão final da conferência do primeiro dia, Khalid Mishaal proferiu uma palestra em que analisou a atitude do Movimento de Resistência Islâmico (Hamas) durante as várias etapas da Primavera Árabe. Ele era o líder político palestiniano chefe da organização islâmica palestiniana Hamas após o assassinato pelos israelitas de Abdel Aziz al-Rantisi em 2004. Ele deixou o cargo de chefe do Politburo do Hamas no final de seu mandato em 2017.
O que é facto é que inicialmente o Hamas acolheu bem as revoluções árabes e ganhou vantagem política quando a opção de resistência foi fortemente apoiada. Nesse ponto, o Hamas aconselhou os movimentos islâmicos nos países da Primavera Árabe a serem racionais ao lidar com as realidades no terreno e a analisar e avaliar minuciosamente a situação.
Durante a segunda fase da Primavera Árabe, quando os grupos contra-revolucionários recuperaram o poder, o Hamas enfrentou grandes desafios. O movimento voltou-se para reformas internas, a fim de fortalecer sua capacidade de sobrevivência, além de buscar alternativas de resistência e buscar a reconciliação entre todos os palestinianos. O movimento aprendeu as lições da Primavera Árabe, mantendo uma política de não interferência e gerindo as relações políticas explícitas com o objetivo de atender primeiro aos interesses nacionais.
O Hamas deu a sua opinião sobre como os movimentos islâmicos lidam com as revoluções da Primavera Árabe. O Hamas fez notar dois erros cometidos pelas potências islâmicas. A primeira foi uma avaliação exagerada da maturidade política no mundo árabe e a maneira como as vítimas da primavera árabe reagiram a nível local e regional. Em segundo lugar, as negociações com parceiros nesses mesmos países falharam. Embora a maioria obtida através das urnas tenha sido importante, não foi suficiente para os movimentos islâmicos renunciarem ao exclusivo do poder e quererem o monopólio do poder e da tomada de decisões. O Hamas também observou que a opinião de “substituir o outro” era um conceito falho.
Lição aprendida com o domínio islâmico
Na primeira sessão do segundo dia da conferência, alguns líderes de movimentos islâmicos descreveram as experiências de seus movimentos. Um dos líderes da Aliança para Reforma do Iemen disse que seu movimento buscava o compartilhar o poder para alcançar os interesses nacionais do Iemen. A declaração foi dada após a primeira experiência eleitoral do movimento em 1993. O principal objetivo do partido durante sua participação em todas as eleições locais, legislativas e presidenciais foi aumentar a parceria política e adotar a democracia como um meio único de estabilidade e desenvolvimento sustentável.
O Movimento de Paz da Argélia também tinha por base a decisão de partilha de poder e advogaram o retorno ao processo eleitoral que havia sido suspenso em 1992. Embora o movimento liderado pelo xeque Mahfouz não tenha conseguido nenhum ganho político, obteve ganhos estratégicos significativos. Ao contrário de seus pares no mundo árabe, o Movimento de Paz da Argélia foi vivenciando estabilidade sem enfrentar nenhuma pressão. O movimento notou o impacto negativo na política do imperativo religioso Dawah e no uso dos serviços sociais como rivalidades de poder. O movimento efetuou, assim, uma séria separação entre funções religiosas e políticas. Ao sair do governo, o movimento escolheu uma nova estratégia de oposição que evitava o confronto explícito com o regime, sem apoiar ou buscar conciliação com ele. Como partido de oposição baseou-se em sentimentos inteiramente nacionais.
Ao contrário das experiências da Argélia e do Iemen, o envolvimento da Frente Islâmica no Sudão levantou muita controvérsia. As circunstâncias que cercaram o golpe militar que levou o movimento islâmico ao poder também foram examinadas. Inicialmente o movimento substituiu o estado e suas instituições. Como a experiência islâmica sudanesa surgiu sem um modelo anterior, tornou-se o foco de uma análise mais profunda. A palestra concluiu que, se algum movimento assume o poder por meio de eleições, deveria compartilhar o poder com outros parceiros. Se assume o poder por meio de um golpe militar, deveria alterar a realidade política imediatamente, procurando alcançar uma base de apoio popular e político o mais ampla possível, algo que nunca ocorreu no Sudão sob seus governantes islâmicos até à data da Conferência.
Os problemas no Sudão do Sul continuaram a representar um sério desafio, levando à ampliação do papel das forças armadas e, finalmente, à militarização do movimento. Isto permitiu que as forças de segurança controlassem totalmente o movimento. Nessas circunstâncias anormais, o movimento cindiu-se em dois partidos rivais e perdeu sua posição política e intelectual, além da perda de valores morais. A luta pelo poder acabou dividindo o Sudão em dois países, o que representou um perigo potencial ainda maior.
A experiência síria é totalmente diferente. A situação na Síria é particularmente complicada porque os islamitas nunca anteriormente foram poder no país. Houve modelos e experiências de domínio local, como os das faixas da periferia de Damasco ou no leste de Ghouta. Enquanto isso, Jaish al-Islam tem sido o operador único dessa experiência que começou a se desintegrar depois que Jaish al-Rahman e Jaish al-Islam se envolveram em confrontos violentos.
Jaysh al-Islam, anteriormente conhecido como Liwa al-Islam, é uma coligação criada em 2013 de unidades rebeldes islâmicas envolvidas na Guerra Civil Síria.
A oposição síria está envolvida na violência em Aleppo desde meados de 2012. A situação foi agravada pelo regime de Assad, que teve como alvo implacável a cidade, além do caos resultante dos múltiplos esquemas liderados pelas brigadas de Tawheed, Ahrar al-Sham, Jabhat al-Nusra e Exército Livre da Síria.
Em 2013, a Frente al-Nusra e Ahrar al-Sham uniram forças com outras facções islâmicas e assumiram o controle da cidade de Aleppo. A oposição síria ficou presa dentro de instalações estatais que deveriam trabalhar para bem dos moradores. A operação falhou porque os dois movimentos não possuíam quadros civis qualificados para administrar essas instalações. O resultado final foi um confronto com os moradores da cidade, levando o Estado Islâmico a obter uma desastrosa vantagem controlando a cidade. Finalmente, os eventos que ocorreram e ocorrem em Idlib demonstram o fato de que os islâmicos não aprenderam com seus erros anteriores.
Futuro possível para movimentos islâmicos
O desempenho dos movimentos islâmicos, sua resposta à onda de “movimentos contra-revolução” e as principais questões levantadas pela e para a sua transformação nos últimos anos provocaram um novo debate sobre seu futuro. Existem três fatores externos que podem afetar o futuro desses movimentos: primeiro, se o processo excluir ou ignorar os islamitas falhará. Em segundo lugar, o que acontece se esta corrente islâmica perder totalmente capacidade política e, em terceiro lugar, se os movimentos islâmicos não forem capazes de tentarem integrar-se nas corrente sócio-política gerais.
Com relação aos fatores internos que podem determinar o futuro dos movimentos islâmicos, será importante observar se os movimentos são capazes de se reposicionar dentro do plano árabe de mudança e se são capazes de evitar voltar à mentalidade de exclusão e evitar no futuro os sentimentos de vingança contra seus parceiros no processo de mudança. Além disso, os movimentos islâmicos tenderiam a manter a sua coesão ao enfrentar a tendência de exclusão. Também será vital para o sucesso dos movimentos garantir que eles reconsiderem questões pendentes e se afastem de suas políticas estrategicamente evasivas.
E eu diria que o mais difícil desafio para os Movimentos Islâmicos será a capacidade de não tentarem impor pela violência os seus preconceitos religiosos.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90