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Terça-feira, Julho 16, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

XX. Amanhã levo-te a viver comigo.

Minha memória,

Amanhã levo-te a viver comigo e sou eu que te vou construir.

Percebi isso muito recentemente, que era possível construir-te, quando me trouxeste de novo o mar encapelado sem nenhum sabor. Não faço ideia onde o foste buscar, esse mar sem nenhum sabor. Não me lembro em absoluto de o ter vivido alguma vez, esse mar estranho e cinzento com um vago cheiro a enxofre e absolutamente nenhum sabor. Apesar disso ele esta lá recorrentemente e sou eu que caminho desolada nessa praia, sem ânimo, sem força, sem nenhuma vontade de continuar.

O teu mar, doravante, será apenas o que eu te vou mostrar. Um mar azul de olhos profundos e peixes libertos. Um mar de espuma dançante que nos faz lembrar os caminhos perfeitos, os sonhos continuados, o futuro ambicionado. Amanhã, nessa praia de amanheceres brandos que eu sei que existe, vou-te construir minha memória, de azul feliz, passos perfeitos e gargalhadas. Depois, é só lembrares-me. Será apenas essa a tua função: guardares para sempre esse momento e lembrares-me.

Não sei porque não fiz isto antes, viver contigo assim, de mãos dadas, apenas os momentos felizes que eu quero recordar. De te ter ao meu lado para que os retenhas, todos os momentos felizes. E, se porventura chegar algum sabor amargo, algum desnorte, uma onda encapelada ou um sol menos translúcido, cuidarei de não te avisar. De te ter longe, minha memória.

Não recordamos todos os momentos. A maior parte das nossas vivências ficam presas no fundo do tempo sem possibilidade nenhuma de serem lembradas. Porque tu não queres, minha memória ou, muito simplesmente, porque tu não podes.

Sei que não me lembro de muitos momentos felizes e não obstante, o mar revolto e encapelado que regressa sempre…

Amanhã vens comigo minha memória, para que te construa e assim garanta o meu passado risonho, esperançoso e positivo.

Sei que já vivi momentos intensos e momentos particularmente coloridos.

Instantes de riso absoluto mesmo. Tempos em que tudo me pareceu possível e alcançável. No entanto, vivi-os sem ter esse cuidado de te ter ali e de te construir minha memória.

Amanhã estarás ao meu lado. De cada vez que o sol se pousar no meu rosto vou confirmar que estás ali e pedir-te minha memória que o retenhas, a esse instante, e que me lembres, por muito tempo, por todo o meu tempo.

Houve um instante em que te construí… Foi há muito tempo, o sol punha-se devagar, o frio chegava. Corri de braços abertos e agarrei com força o espaço e o ar. Sorvi o tempo todo em que corri e desejei que esse tempo todo me pudesse acompanhar para sempre.

Há muitos anos que por causa disso, repito esse instante e redesenho a curva do horizonte numa golfada e em galope…

 


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