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Domingo, Dezembro 22, 2024

O Assassinato do Comendador

Haruki Murakami não faz nem surrealismo nem realismo mágico – mas, sim, uma espécie de realismo. E nesse mundo realista existem mundos “paralelos”.

Na edição em português do livro de Haruki Murakami, lançado em dois volumes, o primeiro se chama O Surgimento da IDÉA e o segundo, Metáforas que Vagam. A verdade é que os capítulos são continuados. No primeiro volume, de 1 a 32, e no segundo, de 33 a 64. Em inglês é um volume só. Não sei em japonês, mas esse foi o primeiro livro de Murakami que me deu vontade de ler na língua original. Li o primeiro volume há uns três meses e o segundo, nos três dias de carnaval.

Murakami tem uma enorme capacidade de atrair o leitor. Nesse O Assassinato do Comendador, ele acelera sua dimensão de narrador ágil. Parece que está escrevendo um roteiro de “filme de ação”. E sem dúvida não é um filme classe B, pois a história não é só “ação” – mas tem força, consistência. E é realista, embora a principal parte da narrativa ultrapasse o mundo real e se prenda ao contexto do mundo metafísico ou mesmo religioso. O leitor é obrigado a aceitar os vários caminhos, senão a história perderá o sentido dramático.

Se compararmos esse livro com o outro de Murakami, 1q84, ainda temos que reconhecer uma maior dimensão literária para 1q84. Mas O Assassinato do Comendador ganhará como obra da indústria cultural do século 21. Cada vez mais vivemos tempos em que a obra artística tem de ser obra industrial, como já mostrou, escrevendo no século passado, o filósofo Theodor Adorno. É o que aconteceu com romances como Essa Gente, de Chico Buarque, e filmes como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho.

O livro começa com a separação do casal. O narrador – e personagem principal – passa uns três meses rodando com o seu Peugeot 205 por uma região do Japão, sem rumo certo. No final, o casal se reencontra, apesar de a mulher ter tido uma filha de outro homem. A ideia é que se trata de uma simples novela televisiva. Mas não é. Poderia ser um filme de mais ou menos três horas de duração e com uma densidade enorme em pelo menos uma sequência. O fato de o narrador ser o personagem principal tem inconvenientes, mas Haruki Murakami sabe se desvencilhar muito bem, em todos os momentos. Inclusive no principal deles, quando está dentro de um famoso buraco.

A obra tem um arcabouço único. A pintura e seu mundo são certamente quem forma a temática principal. Murakami chega a pôr o pintor principal como Tomohiko Amada, que talvez tenha até existido mesmo no Japão – e é a partir desse artista e de sua obra misteriosa, O Assassinato do Comendador, que o livro em seu total se justifica e tem a sua sequência mais forte. O narrador não tem nome, é claro, embora “dirija” todos os demais personagens.

O japonês Haruki Murakami, autor de O Assassinato do Comendador, está cotado para o Nobel de Literatura

Há os personagens que vivem na vida real e os que estão na intermediação, como o pintor narrador, Menshiki e Mariê, e os personagens que são figuras de outro mundo, como o próprio comendador. Mas não se trata de um romance surrealista nem tampouco de algo parecido com a literatura latino-americana dos tempos de García Márquez. O comendador é uma IDÉA e seu formato de apresentação é apenas “uma apresentação”. Ele é um personagem do quadro misterioso de Tomohiko e, ao mesmo tempo, representa disfarçado um militar nazista. Assim, Haruki consegue politizar sequências do romance.

Às vezes dá uma certa insatisfação a presença da cultura ocidental, particularmente norte-americana, não só pelo comportamento de um personagem como Menshiki, mas também pela citação de músicas e seus intérpretes-compositores de filmes, de tal maneira que parece até que alguém está pagando para as citações, como é comum em filmes norte-americanos.

Mas temos de esquecer esses aspectos muito ligados à cultura norte-americana para lembrar que o contexto todo do romance se desenvolve no Japão. Há a criação de uma vida verdadeira nesse país, embora o público japonês deva considerar como fazia com o cineasta Akira Kurosawa em relação à presença da cultura ocidental em seu trabalho. Há um Japão bem presente, sentimos. E a criação de personagens como a menina Mariê e o cidadão Menshiki. O sumiço de Mariê e como ela é salva são os momentos, é a sequência de clímax do romance.

Como leio em e-book, somente agora tive a oportunidade dessa leitura pois o segundo volume só foi lançado pela Amazon em 19 de fevereiro. Em pleno carnaval. E continuo a refletir sobre os aspectos não tocados antes, depois que li algumas críticas em torno do autor japonês.

Em primeiro lugar, quero anotar como a literatura se entregou ao “mercado”, e Haruki é uma expressão e um produto disso. Seu livro 1q84, quando foi lançado, vendeu só no Japão nas primeiras semanas mais de 1 milhão de exemplares. E até hoje sempre falam que Murakami está na bica para receber o Nobel de Literatura – o que seria, no mínimo, mais um passo para o “mercado” dominar as premiações. É apenas uma constatação. Até porque esse “mercado” poderá trabalhar por um ‘mundo melhor’.

Obra de Haruki Murakami tem a crítica dividida – tanto no Japão quanto no estrangeiro

Li numa crítica que a literatura de Haruki Murakami é “uma espécie de realismo mágico”. Com o que não concordo. Ele não faz nem surrealismo nem realismo mágico – mas, sim, uma espécie de realismo. E nesse mundo realista existem mundos “paralelos”, e isso de acordo com o budismo, religião que deve ser a dele, pois seu pai era monge budista, embora o autor quase não faça referências à presença do budismo no Japão do seu tempo, na sua literatura.

É possível que Haruki Murakami lance um terceiro volume de O Assassinato do Comendador. Para isso, certamente ele deixou o final em aberto. O narrador continuou vivendo normalmente com sua mulher em Tóquio, e cuidando da filha Menshiki no seu castelo na montanha. Bem como Mariê e sua tia, que inclusive continua namorando com Menshiki, e ameaçando casamento. Só o quadro O Assassinato do Comendador e o outro do narrador foram destruídos pelo incêndio acontecido na casa que é sem dúvida onde se passa o cerne desse romance.

Mas os elementos para uma continuação estão dados. E isso aconteceu com o romance 1q84, que foi lançado em dois volumes e o terceiro foi lançado como “surpresa”. Claro que tudo depende do “mercado”.

Segundo o que pude apurar, Haruki Murakami tem a crítica dividida – tanto no Japão quanto no estrangeiro. Quem aceita a intromissão do “mercado” justifica certas “explicações” do próprio autor para “justificar” momentos de popularização em seu texto que ele adota. Temos que observar que o ocidentalismo, que se apresenta em seus romances e contos, é produto do que acontece com o próprio Japão dominado culturalmente pelos Estados Unidos.

 


por Celso Marconi, Crítico de cinema mais longevo em atividade no Brasil. Referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8  |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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