Com quase todas as atenções viradas para a conclusão do processo do Brexit, outras questões (e problemas) por essa Europa fora estarão a passar ao nosso lado. Entre estes, os ligados à situação económico-social serão dos mais importantes quando as injustiças continuam em crescendo e o número de trabalhadores europeus em situação de precariedade laborar atinge novos recordes.
Segundo dados oficiais do Reino Unido, o número de activos presos em contratos de ‘zero horas’ (uma espécie de trabalho a tempo parcial onde os empregadores não são obrigados a oferecer um número mínimo de horas de trabalho nem os trabalhadores obrigados a aceitar qualquer trabalho, praticado naquele país) atingiu um novo recorde, com quase um milhão de britânicos com idade igual ou superior a 16 anos sujeitos a um contrato daquele tipo como principal tarefa, a crer nos números recentemente publicados pelo Office for National Statistics (ONS), relativos ao último trimestre de 2019, que revelaram um recorde de 970.000 pessoas que têm nos contratos de ‘zero horas’ a sua principal fonte de receita, número que está bem acima dos 896.000 registados no 2º trimestre do ano.
A proporção de adultos em idade activa naquele regime de trabalho altamente precário aumentou significativamente desde 2012, ano em que cerca de 252.000 trabalhadores (o equivalente a apenas 0,8% da força de trabalho) estavam nessa situação de trabalho precário, para quase quadruplicar e atingir no final de 2019 cerca de 3% da força de trabalho.
Enquanto isto cresce um sentimento de injustiça social, quando milhões de adultos entre os mais vulneráveis do Reino Unido correm o risco de ser impedidos de aceder aos apoios sociais devido às complexidades desproporcionadas que rodeiam o novo sistema do Universal Credit (sistema de apoio social que agrega subsídios de várias naturezas, criado em 2010 e que tinha implementação prevista para 2017 mas cuja nova data é agora 2024), que foi fixado pelo governo em 317,82 libras mensais, por beneficiário individual maior de 25 anos, valor que é inferior ao subsídio diário de 323 libras atribuído aos membros da Câmara dos Lordes.
Outros dados, disponibilizados por um estudo da Joseph Rowntree Foundation (organização independente que trabalha para resolver a pobreza no Reino Unido), mostram que a proporção de pessoas que trabalham mas vivem numa situação de pobreza atingiu um novo recorde (eram 56% em 2018, contra 39% há vinte anos) e que apesar dos níveis crescentes de emprego, o país está a falhar estrondosamente na conversão dessa realidade em padrões de vida mais elevados.
E não é apenas no capítulo da redistribuição de rendimentos que as coisas não parecem famosas, pois também na área da saúde, outro campo socialmente importante, se ouvem críticas quando à degradação dos tempos de espera nas urgências hospitalares e se fala num sistema nacional de saúde em vias de implosão, como não se assistia há quinze anos. Confirmando que estes sinais são mais profundos, o relatório mais recente sobre saúde na Inglaterra mostra que a expectativa de vida estabilizou nos últimos dez anos e que, na área da saúde, o agravamento das desigualdades entre os mais e menos carenciadas do país resultou numa década perdida.
Se este é o cenário por terras de além-Mancha, por cá a situação não se apresenta significativamente melhor; a disparidade de rendimentos continua a ser um problema como se pode ver pela evolução do gráfico da desigualdade na distribuição entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, que depois da ligeira melhoria registada após a crise já começa a dar claros sinais de estagnação entre 2017 e 2018.
Isto mesmo é confirmado pela evolução da taxa de privação material severa (indicador que mede a percentagem da população considerada em situação de carência económica ou de bens duradouros) que após o pico atingido no auge da crise (2013), quando registou cerca de 11% da população nacional em semelhante situação, iniciou uma queda acentuada em 2014, mas já começou a desacelerar entre 2018 e 2019.
Tal como no Reino Unido, também entre nós a questão da precariedade continua na ordem do dia, com especial relevo para a situação das camadas mais jovens (com os estratos etários mais baixos a apresentarem valores superiores a 65% e a 30%) e no que isso significa na instabilidade e fragilização do tecido social.
Não se estranhará, por isso, que observadores e analistas que se têm debruçado sobre a evolução social e económica do espaço europeu refiram constantemente a necessidade de corrigir os erros das políticas sociais que agravaram a situação de injustiça generalizada, algo que na generalidade dos casos tarda em acontecer.
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