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Sábado, Novembro 2, 2024

A crise do coronavírus é, sim, política

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

Em 2008 nos disseram para não “politizar” a crise. E tivemos uma década de austeridade.

por Grace Blakeley, na Jacobin | Tradução de José Carlos Ruy

A última vez que enfrentamos uma crise econômica tão grave como esta foi em 2008, quando o sistema bancário global começou a entrar em colapso sob o peso de seus próprios desatinos. Quando a decisão do governo dos EUA de permitir a falência do Lehman Brothers levou os mercados financeiros à queda livre, os líderes mundiais perceberam que era hora de agir.

A princípio, eles forneceram trilhões de dólares em liquidez a curto prazo (efetivamente empréstimos de curto prazo) aos maiores bancos do mundo, mas logo perceberam que o problema dos bancos não era apenas a falta de liquidez (falta de dinheiro), mas a insolvência (incapacidade de pagar suas dívidas). Nesse ponto, puseram o peso de seus governos atrás dos sistemas financeiros, com resgates que viram os estados se tornarem acionistas significativos em muitas das maiores instituições financeiras.

Nos anos seguintes, muitos países adotaram medidas de estímulo fiscal para limitar o impacto da crise financeira na economia real. Inicialmente, EUA e Reino Unido implantaram grandes programas de estímulo para absorver a perda de empregos e impedir o tipo de espiral descendente keynesiana na demanda que causou a Grande Depressão décadas atrás.

Mas, em 2008, foi a China que salvou a economia global da depressão, com um pacote de estímulos no valor de quase 20% do PIB. Um enorme investimento estatal protegeu a economia chinesa e as economias de seus principais parceiros comerciais.

Logo, porém, governos de todo o mundo mudaram de posição. Na Europa, a crise da dívida soberana – que foi uma resposta tardia ao colapso financeiro de 2008 entre países cuja política monetária era restrita pela adesão ao euro – atingiu o PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha). A Troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional – impôs duras medidas de austeridade a países como a Grécia. O Reino Unido seguiu o exemplo e impôs um programa de austeridade profundo, apesar de não haver absolutamente nenhum sinal de crise da dívida soberana para o governo britânico.

Por que a reviravolta repentina? Desde o início, direita e esquerda se envolveram numa luta pela interpretação de 2008. Muitos da esquerda acreditavam complacentemente que a crise financeira justificaria suas advertências sobre a insustentabilidade inerente ao capitalismo financeiro. A direita, inicialmente intimidada pela natureza da crise financeira global, rapidamente apresentou sua própria história: o que aconteceu em 2008 não foi simplesmente uma crise do sistema financeiro internacional – mas resultou de governos desonestos que gastaram muito dinheiro em serviços públicos.

No Reino Unido, acostumado ao senso comum thatcheriano de que um governo só pode gastar o que arrecada em impostos, a narrativa de austeridade deu a vitória aos conservadores na eleição de 2010. Desde então, 120 mil pessoas morreram como resultado direto ou indireto das políticas de austeridade implantadas por esse governo. A economia estagnou por quase uma década, da mesma forma que os salários e a produtividade. Como resultado, a austeridade fracassou em seus próprios termos – no Reino Unido, a dívida nacional é maior como porcentagem do PIB do que em 2010.

Após a crise financeira, os conservadores espalharam uma narrativa deliberadamente falsa, para lucrar eleitoralmente com uma das piores crises já vistas na economia global. O Partido Trabalhista não foi muito melhor, prometendo uma vida de austeridade e controles sobre a migração em resposta ao sucesso da mensagem conservadora. A resposta hegemônica à crise havia sido estabelecida.

À medida que a crise do coronavírus se desenrola, a direita está no poder exigindo que jornalistas, cidadãos e até funcionários da saúde fiquem alinhados com a narrativa do governo. Questionar sua política – seja em política monetária, auxílio estatutário ou auxílio social – é visto como “politizar” uma crise de saúde pública.

A ideia de que a crise do coronavírus pode ser “politizada” é sugerir que não é um evento inerentemente político. Obviamente, o surto do vírus foi um evento natural – e, a julgar pelas pesquisas da Fundação Gates, previsível. Mas seu impacto econômico – em particular, a distribuição de custos – não pode ser mais político. Se quisermos evitar outra lição sobre o capitalismo de desastre da direita, é preciso entender o provável impacto que essa crise terá na economia e nos prepararmos adequadamente.

O pânico com o coronavírus já começou a impactar os mercados financeiros: o S&P, o Dow Jones, o FTSE e muitos outros índices tiveram quedas maiores do que as de 2008. Os preços das ações em queda refletem a percepção dos investidores de que, com os trabalhadores forçados a ficar em casa, com as fronteiras fechadas, o consumo e o investimento em colapso, a economia global está entrando em profunda recessão.

Após uma década de aumento do endividamento das empresas, a grande preocupação é que a queda da renda empresarial cause uma cascata de falências que podem ameaçar algumas das principais instituições financeiras.

Até agora, parece uma recessão genérica. Mas há grandes diferenças entre a crise atual e a que se seguiu à crise financeira de 2008, quando muitas pessoas perderam casas e empregos. O sofrimento foi enorme e não se limitou aos menos favorecidos. Mas, com a recessão do coronavírus, os riscos econômicos são muito mais individualizados e muito mais graves, especialmente no Reino Unido.

Muitas pessoas, sobretudo em Londres – onde a situação é mais grave –, não poderão pagar o aluguer ou as contas com apenas as 94,25 libras esterlinas (cerca de R$ 556) por semana, que o Estatuto Social do Doente dispõe para quem é forçado a se autoisolar. Os trabalhadores por conta própria, com “contrato de zero hora” e os que estão na economia informal podem não receber nem esse pagamento por doença.

Além disso, o número crescente de pessoas sem emprego estável enfrenta uma perda dramática de trabalho, pois as empresas param de contratar, as pessoas param de consumir e os espaços públicos são fechados lentamente. Mesmo que não sejam forçados ao autoisolamento, aqueles sem renda estável – todas as categorias acima, além de trabalhadores avulsos, pequenos empresários e aqueles recebem comissão – enfrentam uma perda imediata e duradoura de renda.

Após uma década de austeridade, as economias das famílias são perigosamente frágeis. O ano de 2017 foi o primeiro desde 1987 em que as famílias gastaram mais do que ganharam, cobrindo a diferença com novas dívidas e gastando suas economias. Existem mais de 8 milhões de famílias no Reino Unido que já enfrentam algum tipo de dívida problemática.

Com aluguéis e custos de transporte altos, além de salários estagnados, o Reino Unido já enfrentava uma crise de custo de vida antes do coronavírus. Como as famílias lidarão com uma perda adicional de salários, quando os bancos continuarem a exigir o pagamento de dívidas, os proprietários, a exigir aluguer, e as empresas de serviços públicos continuarem suas cobranças?

Os bancos centrais também estão muito mais restritos do que no início de 2008. A política monetária já está extremamente frouxa – as taxas de juros foram reduzidas para o nível mais baixo possível sem entrar no perigoso território dos juros negativas. A flexibilização quantitativa poderia ser continuada, mas há evidências de que, mesmo antes da crise, mais criação de dinheiro mostrava retornos decrescentes. O Federal Reserve (EUA) já ofereceu US$ 1,5 trilhão em empréstimos de curto prazo para o setor financeiro – e mesmo isso não impediu o pânico.

Cada um desses problemas é político. Cada uma dessas questões – baixos salários, altas dívidas e ausência de poder de fogo monetário – resulta das ações de governos anteriores, e só podem ser tratadas por este governo. Um estímulo fiscal generalizado combinado com uma flexibilização quantitativa adicional, não será suficiente.

O governo precisa do apoio direcionado às famílias que enfrentam perda de renda como resultado da crise do coronavírus. A alternativa é observar como as pessoas ignoram os conselhos do governo para se autoisolarem, espalham o vírus ainda mais – ou são contaminados – e se veem forçados a sair de suas casas ou ir à falência em poucos meses. Não é por acaso que aqueles que lamentam a “política” não enfrentam essa escolha.


por Grace Blakeley, Pesquisadora do Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas (IPPR)  |   Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin)/ Tornado


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