Os custos de contenção da crise são inferiores aos custos de reconstrução. Os custos de nada fazer não são apenas económicos, mas sociais e políticos.
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Como sempre, na aflição, o mercado foge em debandada e só o Estado fica. A utopia neo-liberal de estender a racionalidade do mercado a todas as áreas sociais parece agora sem ponta por onde se lhe pegue. Desapareceram de cena aqueles que durante anos defenderam que deveríamos colocar o limite de três por cento do deficit orçamental na Constituição. Fazer dela um pacto suicida. Só resta o Estado – não há mais ninguém no campo da batalha. E, no entanto, é impossível evitar uma certa sensação de dejá vu.
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A Europa está agora no centro da pandemia. Pese embora a tragédia dos números nalguns países e as compreensíveis hesitações iniciais, os governos europeus parecem estar a agir com cabeça fria. Primeiro, prioridade à questão sanitária, custe o que custar à economia. A ideia da imunização de grupo que levaria a escolhas utilitárias sobre quem morre e quem vive parece finalmente afastada. Não é mesma coisa, do ponto de vista moral, morrer depois de assistido ou morrer por impossibilidade de ser assistido. Segundo, nesta crise todos os governos (com pequenas diferenças) têm seguido os melhores conselhos da ciência médica. Terceiro e muito importante, tudo isso tem sido feito num clima político de grande responsabilidade, com as oposições a juntarem-se aos governos e suspendendo o conflito partidário. Ele virá, mas não agora, na emergência de saúde. Muito bem.
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Enquanto isto, na frente da emergência económica, a União Europeia hesita. Sim, o banco central garantiu a indispensável liquidez. No entanto, as indispensáveis medidas de proteção social e de defesa da sobrevivência empresarial são deixadas a cada um dos países que não esqueceram a lição de 2008 e temem ser deixados sós a meio caminho. Sabem que mais tarde serão entregues a um mercado de dívida pública que os visará um a um. Com o relógio a contar, toda a Europa percebe bem que precisará de se endividar para fazer imediatamente chegar dinheiro às pessoas que, por razões sanitárias, estão impedidas de trabalhar. Isso será importante por razões sociais, por razões de confiança institucional e também para preservação da organização económica empresarial essencial à futura recuperação. Todavia, o trauma e a desconfiança resultantes da última crise financeira está bem presente.
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A primeira lição da crise anterior tem a ver com a liderança. Um pouco de enquadramento histórico é necessário para explicar o que quero dizer. A construção europeia teve dois ciclos distintos – um, antes da queda do muro de Berlim e do desaparecimento do ameaça soviética; um outro depois, com a reunificação alemã e com a mudança do centro de gravidade europeu para leste. A Europa mudou com o alargamento e mudou numa questão central – a liderança.
O primeiro grande teste da Alemanha à frente do projeto europeu veio com a crise financeira de 2008 e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço. A desgraça ficou evidente desde o início – nem proteção, nem preocupação com a unidade, nem diálogo. O que se viu foi apontar culpas, frieza institucional e indiferença ao sentimento nacional nos países em maiores dificuldades. De um momento para o outro, sob orientação alemã (ou, talvez melhor dito, sob orientação da direita alemã), a política europeia deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico da direita contra os seus demónios preferidos – as políticas sociais. A austeridade económica constituiu-se então como única resposta redentora. Primeiro ponto, ela é indiscutível e não tem alternativa – é ditada pela ciência económica. Segundo ponto, ela tem também a sua dimensão moral: é preciso redenção – e redenção reclama castigo e sofrimento. Não deixa de impressionar a maneira como se conseguiu transformar uma típica crise de abuso de liberdade mercantil pelos mercados financeiros (os famosos sub prime) numa crise que aponta como culpados os Estados e o excesso de gasto público. Na verdade, a resposta europeia à crise financeira nunca foi uma política económica, mas um programa ideológico.
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Todo este desastre só acabou quando, depois de várias catástrofes, o banco central europeu decidiu finalmente fazer o que os alemães não tinham, até aí, deixado fazer – o “quantitative easing”, copiado da política americana, que conteve a desgraça de muitos países expostos (Portugal incluído) e que afastou os riscos contra a moeda única europeia. Aliás, a comparação com a estratégia americana é talvez a melhor fonte de evidência da irracionalidade económica seguida na Europa. Os Estados Unidos estancaram mais rapidamente a crise financeira e recuperaram mais rapidamente o emprego e o crescimento, enquanto a economia europeia, metida num buraco, continuava a usar a austeridade para escavar e enterrando-se cada vez mais. O resultado desses anos no projeto europeu está ainda bem presente – a periferia ressentida com o centro, o sul desconfiado do norte, os pequenos desiludidos com os grandes. A cizânia não veio de fora, não veio da ameaçadora Rússia, como tantos apregoavam, mas de dentro e motivada por um grave erro de liderança. O desolador balanço desta política económica está ainda por fazer dada a cumplicidade da burocracia europeia (e da esquerda europeia, para ser justo) com a narrativa da austeridade. Mas os estudos sobre o que aconteceu são hoje em dia mais fáceis e a história anda agora mais rápido – não, a crise não veio dos Estados, mas dos mercados; não, não foi o deficit que criou a crise, mas a crise que criou o deficit; e não, não foi a austeridade que acabou com a crise mas o fim da austeridade que acabou com a crise.
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É preciso falar da crise anterior também para que fique clara a lição número dois: os custos de contenção da crise são inferiores aos custos de reconstrução. Os custos de nada fazer não são apenas económicos, mas sociais e políticos. E desta vez é pior. A crise tem estas duas frentes, a sanitária e a económica, devendo a primeira prevalecer como prioridade. A crise vem agora da economia real e em breve se estenderá ao sistema financeiro. O tempo urge. O que virá a seguir é uma tragédia como penso que ainda não tínhamos visto. Quando se fala de plano Marshall para a recuperação económica futura é preciso que fique claro que nada disso deve desvalorizar a tarefa imediata. Não é possível passar ao lado do que é necessário fazer já – já – para evitar o colapso e o desemprego em massa que se avizinha. Esta semana, por exemplo, o governo dinamarquês comunicou às empresas privadas que vai pagar 75% dos salários dos seus empregados para evitar os despedimentos. Durante três meses o governo paga para os trabalhadores ficarem em casa: 13% do produto anual bruto do País. A ideia é congelar a economia e evitar as rotação de despedimentos e de novas contratações que atrasariam a recuperação futura. A filosofia é simples e resulta da experiência com a crise anterior – se nada for feito agora será mais caro reconstruir depois.
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Outro exemplo curioso. Costumo passar pelo blog de um economista americano que escreve pouco, mas que, quando o faz, tem sempre alguma coisa a dizer. Escreveu ele a 14 de março: “considerando a dificuldade de identificar os verdadeiramente necessitados e os problemas inerentes a tentar fazê-lo, enviar um cheque de 1000 dólares a cada americano o mais rápido possível será um bom começo… Há tempos para nos preocuparmos com a subida da divida estatal. Este não é um deles”. Peço atenção para este pormenor– dificuldade de identificar os verdadeiramente necessitados e os problemas inerentes a tentar fazê-lo. Isto é, as medidas devem ser simples por forma a evitar a burocracia e a canga regulamentadora que tantas vezes compromete a sua eficácia. Rapidez, rapidez.
No último ponto do seu pequeno artigo escreveu também que o Presidente Trump deveria calar a boca e deixar quem soubesse alguma coisa do assunto falar em seu nome. Infelizmente, dizia ele, isso não parece que irá acontecer. Na verdade, o governo americano não só ouviu como decidiu fazer exatamente o que foi sugerido. Três dias depois, a 17 de março o Secretário de Estado do Tesouro americano anunciava a decisão de enviar o cheque nas próximas duas semanas. A medida (ou coisa muito parecida) acaba de ser aprovada no Congresso. Julgo que nada haverá de mais parecido com o “helicopter money” de que falava Milton Friedman. Quem diria? Nos estados Unidos.
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Regresso ao ponto crítico: a Europa e a liderança. O esforço financeiro que é agora pedido aos Estados europeus não pode ser realizado sem recorrer à dívida pública – a “public blessing” de que falava Alexander Hamilton. Mas os montantes assustam e ninguém quer ser apanhado na emboscada que se começa a montar nos mercados financeiros, esperando as vítimas estatais, que chegarão ao próximo ano com deficits e dívida muito superiores aos que têm agora. O fantasma da última crise está ainda bem presente. A única forma de evitar essa armadilha é assumir essa divida à escala europeia, havendo várias formas de o fazer. Não consigo aceitar o que para aí ouço todos os dias nas televisões – convencer Merkel, pressionar Merkel, pedir a Merkel. Toda esta conversa lembra mais a de elites subordinadas do que a de parceiros na construção de um projeto comum. Não se apela à liderança, ela resulta de um sentido interior da responsabilidade. Ninguém pode ser obrigado a liderar se não sentir que tem essa obrigação ou essa responsabilidade. Liderar é convencer, unir – mostrar o caminho. Levantar-se e agir. Eis o que significa liderança. A questão política central e urgente é se enfrentamos esta tempestade juntos ou cada um por si. No final, a pergunta é simples: se a Europa não serve para uma crise destas, para que servirá? O risco que enfrentamos, se bem vejo as coisas, vai um pouco além da questão económica. Ninguém deseja uma Europa de volta à geopolítica das esferas de influência, das Mitteleuropas e das balanças de poder. A liderança alemã – e a Europa em consequência – tem aqui a sua segunda oportunidade. Francamente, não sei se terá outra. E estou a medir as palavras.
Ericeira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
Artigo publicado também no Expresso
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