(das poéticas alquímicas às poéticas da modernidade)
1.
Sempre que visitei o museu de Cluny, em Paris, com a bela colecção das tapeçarias da Dama e a Licorna, me intrigou a sexta, A Mon Seul Désir, que ora traduzo por “Ao Meu Único Desejo” ora por “Só Ao Meu Desejo”.
Ao meu único desejo: e qual é ele?
Satisfeitos os cinco sentidos, do gosto, do tacto, do olfacto, da visão, do ouvido, só talvez um desejo imaterial a que se faça um apelo mais secreto e mais fundo poderá ser esse que falta.
Só ao meu desejo: seduzida a licorna, que simboliza a pureza que se conservou ou a que se aspira, é então esse o desejo, o único, e assim é celebrado, nesse lema que é de brasão de armas, tanto como de coração.Há algo de oriental, nestas tapeçarias: uma tenda aberta num deserto ou num oásis, numa ilha florida, num jardim de alma, e cá fora, exposta mas com reserva natural, a Dama com a sua aia.
Rodeiam-na alguns animais também eles emblemáticos, o cão, companheiro fiel dos alquimistas, em tantas gravuras conhecidas; o macaco, figuração de Hermes, o deus Thoth dos egípcios (mítico pai da alquimia), para não falar do leão e do unicórnio, os animais que ladeiam a Dama, como que em protecção.
É na sexta tapeçaria que ela tem diante de si um cofre, que a aia segura, e de mão estendida parece estar a guardar a jóia que usou nas outras; ou estará antes a retirar alguma mais bela, diferente e única?
Não poderemos saber ao certo, as opiniões dividem-se, entre os estudiosos.
Mas a legenda inscrita ao alto da tenda está ali bem à vista para que seja lida e entendidada. De que modo? Aconselhamento? Aceitação? Pura referência de identificação, como num Brasão de Armas? Ou numa gravura alquímica?
A Dama que ali se encontra, em tenda tão ornamentada, não poderá simbolizar a Pedra Filosofal, a perfeição da Pedra? Há um saco de moedas de ouro ali ao lado no chão… como as moedas que se encontram numa gravura posterior, de Michael Maier, na sua Atalanta Fugiens, de 1617.
Teríamos de permanecer na língua original, sem traduzir, e ver o leão como emblema masculino, solar – que assim é na simbólica alquímica – e no unicórnio, ou como prefiro dizer, na licorna, mantendo o feminino do francês, la licorne, o emblema lunar e feminino, ambos compondo o par primordial da Obra, em Conjunção, como se pode descobrir em muitas das imagens alquímicas dos séculos XV e XVI, e na grande súmula da Atalanta Fugiens de Michael Maier do século XVII, a mais estudada e reproduzida ao longo dos tempos, junto com outra, igualmente emblemática, de Lambsprinck, La Pierre Philosophale,(s.d. supondo-se que seja do século XIV) cujas gravuras são de novo reproduzidas no Museum Hermeticum, de 1678, e actualmente disponível na edição fac-similada de 1970.
A narrativa expressa nas peças seria então o caminho do material (os sentidos) para o espiritual (a pomba que voa sobre a tenda) e esse seria o desejo, o único, o perfeito.
Carl Gustav Jung, em Psicologia e Alquimia (Psychologie und Alchemie, 1952, no capítulo “das Einhornmotiv als Paradigma“, o motivo da licorna como paradigma pp.585-634) estudou com cuidado as origens do mito, ou da lenda, da licorna, que terá chegado ao ocidente por via da Índia, ou do Egipto antigo em que se encontram referências a esses animais estranhos, munidos de um único chifre e aos quais se atribuíam poderes mágicos, de cura ou de veneno mortal, conforme os casos.
Aponta também a licorna, ou se se preferir o unicórnio – aqui seria interessante ver se o alquimista, em cada caso, trata a imagem como emblema do enxofre, ardente, solar e masculino, ou como elemento mercurial, lunar, mutável e feminino – sendo em ambos os casos um dos motivos fulcrais da produção do imaginário alquímico, transitando desde os gregos, como Zosimo, no século III da nossa era, até aos adeptos que na Idade-Média já o cristianizam como emblema de pureza, seja como figura de Cristo, seja como figura da Virgem, nos vários tratados conhecidos.Caso exemplar é uma das figuras com se conclui o Rosarium Philosophorum, datável da primeira metade do século XIV, na opinião de E. Perrot, embora apenas editado em 1550, edição de que ele parte para a sua tradução em francês como Le Rosaire des Philosophes (1973):
vemos aqui ” a perfeição da Pedra ou a coroação da matéria através da imagem da coroação da Virgem”. As legendas que a rodeiam dizem:” Ela, cujo pai é o sol e a mãe a lua…e adiante tria unum, três em um, sendo que o terceiro é o elemento que a pomba do Espírito Santo , voando sobre a sua coroa, é o terceiro princípio a que se alude” (p.227).
O estudo de Jung é até à data a melhor fonte, o mais completo levantamento das imagens e símbolos referentes a este paradigma da Obra, como ele lhe chama, minucioso ao ponto de todos os estudiosos posteriores partirem sempre que possível das suas referências.
Neste seu caso teremos de regressar ao significado do mercúrio simbólico, no processo de elaboração da Obra conducente à Pedra Filosofal – emblema da absoluta perfeição, e também ela, posteriormente, identificada ora a Cristo ora à Virgem Maria, como já se disse. O que não é despiciente, pois se há de facto alguma memória pagã que permanece nos tratados medievais, houve, sobretudo nos séculos XIV-XV e XVI uma grande preocupação em detectar nos chamados “processos” de sublimação elementos comuns às práticas espirituais dos místicos cristãos, como Santo Alberto Magno, Hildegarda de Bingen, São Tomás de Aquino, sendo que a este até foi atribuído um dos mais célebres Tratados, a Aurora Consurgens, que influenciará filósofos e teósofos posteriores, como um Jacob Boehme, e muitos outros até aos mais notáveis do Romantismo europeu, como Novalis. Na Idade Média cristã teve início, com grande influência em normas e procedimentos cortesãos e poéticos, sobretudo nas novelas de Cavalaria, a Marianização do culto, com ênfase em Maria, mãe de Jesus, tornado-se a Virgem o modelo para a virtude celebrada na pintura que representa jovens ou mulheres de orto pousado e por vezes ambíguo de mistério.Como se no “feminino” se guardasse um segredo que só alguns poderiam descobrir – é o caso da Dama e da Licorna, sem dúvida, com essa narrativa exposta, mas cifrada.
Uma Licorna-Mercúrio, neste contexto, é o elemento da mutação, da metamorfose, que surge durante o trabalho sobre os outros princípios, que são o enxofre e o sal. Assim é desde a tradição gnóstico-pagã e cristã já referida e são estas as qualidades de que se reveste a licorna, descrita como animal de fábula, podendo surgir como cavalo, burro, peixe, dragão, escaravelho, etc. (Jung, op. cit. p.587). Essa capacidade de mutação é o que distingue o unicórnio, e deste modo já o veremos, nas Bodas Químicas de Christian Rosencreutz, 1459, narradas por J.V.Andreae.
Sabe-se que o autor verdadeiro é de facto Valentin Andreae, teósofo rosa-cruz alemão do século XVII, e é deste século, de 1616 e não do século XV, que é datada a obra.
Para todos os efeitos o que se nota é que é conhecido na tradição o motivo emblemático da licorna.
No “terceiro dia” das Bodas Químicas surge ao herói em visão/revelação uma licorna, branca como a neve, que faz uma reverência perante um leão. Rudolf Steiner, que traduz para francês a obra e a faz seguir de comentários segundo a doutrina hermética, nota que se descreve daquele modo uma evolução psíquica do herói em que este, liberto dos limites do corpo, acede à experiência e à consciência do poder da imaginação como forma de ultrapassar limitações e limites, intelectuais ou outros (R.Steiner, Les Noces Chymiques de Christian Rose-Croix 1459, 1980).
Segundo Jung, “licorna e leão são ambos símbolos do mercúrio”. Contudo, mais adiante na narrativa, a licorna transforma-se em “pomba branca”, outra figuração do mercúrio, volátil, devido ao seu vôo que também permite que se identifique ao Espírito Santo, nas tradição cristã.
O mercúrio volátil é comparado, em alguns tratados, como por exemplo o de Lambsprinck, a pelo menos uma dezena de animais, ilustrando a obra com essas gravuras belíssimas. Do autor pouco se conhece, e os estudiosos, como Albert Poisson, entendem que ele deve ter vivido e escrito a obra em meados do séculoXIV, pois o seu nome é referido em obras anteriores como a de Flamel, no Livre des Figures Hieroglyphiques.Nós daremos os exemplos a partir da edição francesa:
Lambsprinck, La Pierre Philosophale ( ed. bilingue, latim -francês, Archè Milano, 1971). Numa das suas belas gravuras, a terceira, podemos ver o encontro de um veado com uma licorna, de pose em verdade masculina e forte, enquanto a legenda reza que “no corpo estão a alma e o espírito” – sendo a floresta, que é terrena, o corpo (ou a matéria) a alma o veado, e a licorna o espírito (p.10-11).
Nas antologias, ou recolhas, como o Theatrum Chemicum, de 1602, a natureza mutável de mercúrio é apontada ( juntamente com a do leão, a águia e o dragão) como sendo submetida ao ouro superior.Aqui seria interessante referir o tratado da Flôr de Ouro, que Jung também estudou, depois de o ter descoberto pela tradução alemã do seu amigo Richard Wilhelm (cito de Lu Tsou, Le Secret de la Fleur d’Or, trad. francesa de Liou Tse Houa, 1969). A flôr de ouro é aqui a Pedra Filosofal, ou o Elixir de Longa Vida, outro dos seus múltiplos nomes.
São muitos os exemplos que se poderiam buscar.
Mas o importante é o sinal dado: mudança e submissão a uma Ordem perfeita, seja natural seja divina. Recordando que na célebre Tábua de Esmeralda, que tantos alquimistas citam, o inferior é como o superior e o superior como o inferior, para obtenção do Todo, Uno e Perfeito. Por outras palavras, são muitos os caminhos, mas um só o destino (o desejo) final.
No tratado apócrifo atribuído a São Tomás de Aquino, igualmente citado por Jung (p.590), Tractatus qui dicitur Thomae Aquinatis de Alchimia (ms. de 1520) podemos ver a licorna a ser amansada, que é como quem diz, recebida, por uma virgem vestida de negro.
Poder-se-ia jogar com os opostos negro e branco, a nigredo e a albedo, no decurso da Obra, mas basta que se tenha em mente que estamos perante uma transformação, que tocará tanto a quem a permite, ou a concede, ( a Dama) como a quem a sofre, ou precipita, aceitando (a licorna).
Nesta gravura o negro das roupagens aponta para a primeira fase que se descreve no processo alquímico: o do caos confuso, o da matéria informe, o da descida ao “interior da terra” como é descrito por Basílio Valentino, no seu Paradigma da Grande Obra:
Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem (Basile Valentin, Les Douze Clefs De La Philosophie, trad., introd. explicação das imagens, por Eugène Canseliet, 1956). Neste paradigma apresentado a gravura expõe, ao alto, uma taça (outro símbolo aqui seria o do Graal) de onde saem, em mergulho comum, um sol e uma lua; os pares de opostos reunidos, após sublimação.
Na sexta figura – sexta chave – deste tratado surge representada a ” União Real do Enxofre e do Mercúrio: Aliança do Céu e da Terra” (p.150). Como sublinha E. Canseliet, no comentário, curiosamente aqui é um cisne o animal emblemático escolhido para designar o processo de sublimação (do mercúrio).
Basilio Valentino, de quem temos, na Bilioteca da Ajuda alguns textos latinos, foi um monge beneditino de Erfurt, e diz-se que o seu tratado surgiu de forma misteriosa, depois da sua morte, quando um relâmpago rachou uma coluna onde estaria escondido. Canseliet refere, para a datação, 1624, ano em que é conhecida a tradução do alemão para latim e de latim para francês. Mas são pormenores que ainda precisam de maior esclarecimento, dado a lenda a que está ligada a obra e na qual se alega que o monge viveu bastante tempo antes da sua descoberta.
Contudo, é relevante para o nosso estudo uma divisa latina que se encontra num pequeno quadro que ornamenta um dos corredores de um mosteiro, o de Cimiez, que E.Canseliet aprecia pelo seu significado alquímico.. O quadro representa um belo cisne branco, sobrevoando um lago e a legenda reza assim:
Divina Sibi Canit et Orbi: canta divinamente para si e para o mundo.
E a partir daqui podemos mais à vontade locubrar sobre o negro, das vestes, da matéria – que é materia prima – e que pela Obra alquímica terminará sublimada, na conjunção de um Eu liberto, juntamente com o mundo que ajudou a libertar.
Da cristianização do motivo os exemplos são tantos que não será preciso continuar.
Jung percorre abundantemente a memória mítica do mundo, com os textos antigos dos hindús, dos chineses, dos judeus, dos persas, dos primitivos cristãos em todos eles anotando que a energia animal está bem presente, e propicia o nascimento de deuses e heróis – os que operam as mudanças, como em mágicos ritos de passagem, em cada lenda, em cada civilização nascente.
Mas o que eu suponho sentir, nas tapeçarias da Dame à la Licorne é algo de mais antigo (dir-se-á, é próprio das imagens arquetípicas, guardadas no inconsciente), a saber, que há ali marcas oriundas de um oriente longínquo, talvez da alma, sim mas talvez igualmente de um imaginário que na Idade-Média circulava por força das guerras contra o Islão, dos tesouros do Templo, da sabedoria que os Cavaleiros Templários traziam consigo de Jerusalém, a Cidade Sagrada.
Na haveria ali, na figura tranquila de uma mulher na sua tenda, sentada com a sua aia, algo do eco profundo dos Cânticos de Salomão à Amada perfeita, à Sulamita, uma alusão a novo paradigma, o da reconciliação de opostos, Leão e Licorna, ambos triunfantes, porque submetidos a uma Ordem maior, erguendo bem alto os seus belos estandartes? E sendo assim, tanto faz, para a nossa relação com este mito, que este mercúrio alquímico mutável seja licorna ou unicórnio, ou cisne de bico agudo e asas triunfantes, pois que em ambos os casos o que se figura ali é uma das nossas energias (pulsões) do inconsciente, no desejo de uma individuação completa e completada, como diria Jung.
Deixo só a pergunta.
2.
Voltando às Tapeçarias do Museu de Cluny
Encontro em Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, quando a dado momento evoca Abelone, uma das suas muito amadas, a primeira grande referência de que me lembro às tapeçarias do Museu de Cluny. Deve ter sido depois de ler Rilke que me interessei também por essa visita e por essas obras de arte da Dama da Licorna. Eu tinha na mão a tradução francesa de Maurice Betz, que ainda hoje (livro tão velhinho de tão lido outrora, páginas amarelas a desfazer-se) gosto de ler.
Como sempre, Rilke, ou o seu alter-ego Malte, dirigindo-se a Abelone, exclama:
“Há aqui tapeçarias, Abelone, tapeçarias. Imagino que estás aqui; há seis tapeçarias; vem, passemos devagar diante delas. Mas primeiro dá um passo atrás e olha para todas elas ao mesmo tempo. Como são tranquilas, não é verdade? Não têm muita variedade. Está sempre aquela ilha azul e oval, flutuando sobre o fundo discretamente vermelho, florido e habitado por pequenos animais centrados em si mesmos. Só no último tapete a ilha sobe um pouco, como se se tivesse tornado mais leve. Tem sempre lá uma forma, uma mulher, de roupagens diferentes, mas que é sempre a mesma. Às vezes tem ao lado uma figura mais pequena, uma aia, e sempre com animais heráldicos: são grandes, estão na ilha, fazem parte da acção. À esquerda um leão, e à direita, mais clara, a licorna; têm os mesmos estandartes erguidos ao alto: barra azul com três luas de prata” (Betz, p.125.126).
Segue-se a descrição detalhada de cada uma das tapeçarias e da acção que se desenrola, com a Dama, na primeira, “o gosto”, tirando de uma pequena travessa algum alimento que a aia está a oferecer; Rilke sugere que seja para dar ao pássaro (um falcão?), mas pode simplesmente ser apenas a indicação de que é alimento, como acontece com a travessa do Graal, no Parzival de Wolfram von Eschenbach, onde o alimento distribuído é Vida; na parte inferior da tapeçaria pode ver-se um cão pequeno; uma roseira fecha a ilha, rodeando-a por trás. Todos estes elementos têm carga simbólica (fazendo parte do tradicional bestiário alquímico conhecido).
Continuando a sua descrição, feita para uma Abelone ausente, Malte, o narrador, chama a atenção para a coroa de flores que a Dama está a tecer; é de novo a aia que lhe estende a travessa de onde ela escolhe a côr que vai usar para um cravo. Atrás delas, num banco, está um cesto de rosas que um macaco descobriu (sendo que o macaco é emblema da Obra alquímica, e as rosas, como no Rosarium Philosophorum, de 1550, a marca da suprema pefeição). Leão e licorna estão presentes, sem intervir, mas diz Malte “a licorna compreende”. Compreende que não chegou ainda esse momento das rosas, que por enquanto são cravos (p.126).
Na terceira tapeçaria a Dama toca um órgão, e Malte observa que fazia falta, em tão grande silêncio, uma tal música. Demora-se a descrever o penteado, os cabelos enrolados em trança ao alto da cabeça. “A licorna é bela, como que agitada por vagas” , enquanto o leão parece incomodado.
A ilha alarga-se, foi erguida uma tenda. Damasco azul flamejado a ouro.
Magnífico, segundo Rilke, será o momento em que a aia estende à Dama o colar com uma jóia que estava fechada num estojo. E é nesse momento da sua descrição/contemplação que Malte se refere à misteriosa legenda: A mon seul désir. (p.127). Há um pequeno coelho que saltita, o leão parece não ter ali mais nada que fazer, é a Dama que segura o estandarte (ou, diz Malte, estará antes a agarrar-se a ele?); com a outra mão toca no chifre da licorna, diz ainda Malte, e reflecte sobre as cores do vestido: verde-negro, por vezes desbotado.
Será um momento de luto, na vida daquela Dama?
Será de despojamento, se seguirmos os investigadores que sugerem, ao contrário de Rilke, que ela não recebe mas entrega a jóia à sua aia.
Segue-se nova acção, com a licorna ao colo da Dama, que lhe mostra num espelho a sua imagem reflectida. Este fascínio, descrito por um poeta como Rilke, passeando a sua solidão numa Paris hostil, devolve-nos, sem soluções, ao silêncio e ao mistério das seis tapeçarias.
Mas na verdade é diferente a ordem pela qual devem ser contempladas: primeiro os cinco sentidos – representando o corpo, a matéria , a terra (o elemento a espiritualizar) e no fim , ao entregar o colar com a jóia para que seja guardado no cofre que a aia lhe estende, a lição suprema: o depojamento absoluto, a entrega de corpo e alma a uma Ordem perfeita e superior, que se deseja. Será este o único desejo.
Não surpreende que nas Elegias de Duíno, que escreveu mais tarde, noutro ambiente de mística solidão, exclame:
Erde, du liebe, ich will…
Namenlos bin ich zu dir entschlossen, von weit hier.(Elegia IX)
É à Terra que afinal se erguerá o seu canto, só a partir da matéria mais inteira e mais amada o Anjo se deixará seduzir.
Passemos então aos nobres De Le Viste de cuja linhagem alguma informação nos chegou, mas não muita, sobre Antoine de le Viste, um dos nobres que poderá ter sido quem encomendou as tapeçarias.
Mas segundo outros, terá sido Pierre d’Aubusson (1423-1503) quem encomendou as tapeçarias, tecidas na Flandres do século XV, e hoje restauradas e guardadas no Museu de Cluny, em Paris.
d’Aubusson foi Grão-Mestre da Ordem de Jerusalém, dos Hospitalários, e é natural que este ambiente orientalizante a que me referi no início possa ter algo a ver com a sua experiência do Oriente, uma certa mística ligada precisamente ao Templo, e a uma Jerusalém Celeste, que guardasse no coração.
Mas maior importância tem, como é óbvio, não o dono que fez a encomenda mas sim o artista que terá pintados os cartões sobre os quais se trabalhou…
Julga-se que pode ter sido o pintor Jehan Pérreal também conhecido como Jehan ou Jean de Paris, nascido em Lyon (em 1450 e falecido em Melun, em 1530, datas não confirmadas ou ainda, segundo outros, nascido c. 1460-1463) e ocupando o século com a sua obra de pintura, gravura, iluminura e até arquitectura. como consta. Mas faltam as fontes para encontrar ou situar as obras na sua totalidade.
Foi celebrado como pintor e Valet de Chambre de Carlos VIII, Luis XII e Francisco I, o que nos é contado por E.M. Bancel, em Jehan Perreal, dit Jehan de Paris, Peintre et Valet de Chambre des Rois Charles VIII, Louis XII et François I, Recherches Sur Sa Vie et Son Oeuvre par E.M.Bancel,… Paris 1885. (Em consulta on-line já aberta e livre da Harvard University Library). Entre as obras que são atribuídas a Perreal, está uma miniatura “complainte de nature à l’alchimiste errant” (c. 1516), depositada no Museu Marmottan em Paris. É um título como este que nos alerta para a possível dimensão alquímica de outras obras, como as Tapeçarias da Dama e da Licorna.
Refere-se Bancel, no prefácio do seu estudo, que o escreveu depois de ter podido ver o quadro em que é pintado o noivado de Carlos VIII com Anne de Bretagne. A beleza do quadro inspira-lhe a ideia de dar a conhecer melhor ao ao mundo este Jean de Paris, expoente da França do século XV, nascido e criado numa Lyon que à data borbulhava de actividade criadora, em todas as artes conhecidas, rivalizando com Paris.
Perreal, de família ilustre sem dúvida ou não teria tido uma tão grande proximidade com a corte, viajou: “para a Holanda, visitando Brugges, e aí aprendendo as técnicas de pintura a óleo segundo van Eyck, e Memling, então muito na moda” (p.3). Em 1483 está de regresso a Lyon, onde aceita algumas encomendas, e o facto de ser conhecido como Jehan de Paris será devido a que também de Paris muito trabalho lhe tenha sido pedido, forçando as suas deslocações. Em 1514 a mando do Rei Luís XII desloca-se a Londres para pintar o retrato de Maria Tudor, com quem o rei iria casar.
Esta obra, extremamente interessante pelas informações que nos dá do ambiente da época e sobretudo das viagens, que levam Jean de Paris ainda a Itália, onde terá conhecido Leonardo da Vinci – uma Itália que floresce, de todos os pontos de vista, também herméticos e alquímicos – é talvez a fonte mais rica para os estudiosos. Noutro autor, Charles-Jules Dufay, Essai biographique sur Jehan Perreal (1864, reed. 2013) vemos sublinhadas as qualidades de Jehan, como pintor, escultor, e arquitecto, muito apreciado na corte, muito próximo de todos os que serviu, reis e rainhas (entre elas Margarida da Áustria, com quem troca abundante correspondência), sendo de notar, segundo o autor, a importância do convento de Brou e da sua capela, em cujo levantamento e ornamentação Jehan Perreal teve um papel de relevo.
Na miniatura de La complainte de Nature à l’Alchimiste errant, que serve de capa à obra acima citada, podemos ver a Natureza alada, e de coroa, sentada entre terra e água, legendas laterais visíveis, numa cadeira que é um athanor sob o qual arde um lume, do elemento fogo; o ar estará simbolizado nas asas que já indicam parte do caminho da sublimação da Natureza.Sobre o lado direito abre-se um espaço que deixa entrever na soleira a palavra opus.mech. (de obra mecânica, obra metálica? aludindo aos metais?) e já no interior uma salamandra, com matéria lá dentro a ser “preparada”.
Outro factor interessante, segundo o autor, é que Cornelius Agrippa, médico de Margarida da Áustria, recomendou Jean Perreal como sendo “alguém com quem se tinha muito a aprender” (Dufay, p.19). Ora também Agrippa foi, além de médico, astrónomo, alquimista e de grande influência no seu tempo. Dir-se-á que as tapeçarias, ou melhor, os cartões, não estão assinados. Era normal, naquela época, que havendo mais do que um interveniente na execução de uma obra esta não fosse assinada.
Sabia-se de quem tinha sido a ideia primeira, a execução ou acompanhamento.
Só mais tarde a noção do valor individual se torna mesmo individualista e leva os artistas a assinarem as suas obras.
Certezas não há, mas há um interessante conjunto de factores que começam a ser aprofundados e talvez um dia permitam chegar a uma conclusão.
3
Estas tapeçarias ocuparam também, recentemente, o pensamento de uma das nossas grandes escritoras, Maria Teresa Horta, que em finais de 2013 publicou nas edições D. Quixote um longo ciclo de poemas que lhes é dedicado: A Dama e o Unicórneo, com o mistério que sobre elas paira, ainda hoje, desde o instante em que são concebidas (por que mão de artista?), em que há mulheres sentadas para as tecer, e até ao glorioso momento da entrega, da dádiva de amor, que na licorna (prefiro usar este termo) parece estar representada.
Amor do corpo, amor da alma, no Todo que é universal, transversal e eterno
Talvez não seja acaso, mas coincidência feliz, o facto de nesta mesma altura Teresa Horta ter lançado a reedição da sua bela narrativa poética Ambas As Mãos Sobre O Corpo (de 1970), obra em que o Feminino é cantado e exposto em toda a sua dimensão, fazendo do corpo da mulher o corpo da Terra-Mãe, o corpo da natureza terreal que esteve na Origem e no Primeiro Princípio do Verbo (que se fez carne) do Deus universal.
Teresa Horta intitula a sua obra A Dama e o Unicórnio optando pelo lado masculino da figura, e fazendo da Dama o centro fulcral da sua meditação, que jogará com os conceitos de submissão ou sedução, como se de uma relação de amor e de desejo se tratasse, quem sabe se na origem da encomenda da obra..
Teresa Horta, como tantos de nós, ao visitar em Paris o Museu de Cluny, nos anos 50 do século passado, guardou na memória a beleza daquelas antigas tapeçarias de autoria ainda hoje não esclarecida. Uma pléiade de escritores e poetas se deslumbraram com a intriga, ou o sentido mágico, simbólico, que ali, no conjunto das seis peças, se deixava adivinhar ao mesmo tempo que se fechava a qualquer interpretação mais explícita ou directa. Como é sabido, foi Prosper de Mérimée quem em 1841 encontrou as tapeçarias, ao abandono, carecendo de muito cuidado e restauro, no castelo de Boussac.
O interesse despertado leva George Sand, Balzac, Jean Cocteau, Rilke e outros a seguirem também com interesse o seu destino.
O caso de Rilke, como vimos, é talvez o mais significativo, e o mais inspirador. Também ele terá guiado a mão e a mente de Teresa, na sua escrita e na sua contemplação.
Como poeta que é, e numa relação intuitiva com todo o potencial simbólico que o unicórnio, como se viu, transporta consigo, Teresa fecha o seu ciclo com uma interrogação, que interpela a Dama e o seu unicórnio, mas nos interpela sobretudo a nós todos.
Ainda antes de chegar à interrogação de fecho do ciclo, “O que faço da minha eternidade? “, desenha o seu próprio caminho, de mulher que vive a vida de tantas outras mulheres ao viver a sua própria. Para Teresa a vida é corpo, corpo subtil porque poético, mas corpo. Vejamos desde logo o modo como abre o livro:
“A Dama seduz
ou o Unicórnio entrega-se?No jogo da sedução
Quem usa a taça e a seta?”
Como boa tecelã, a autora começa com o trabalho discreto, mas não menos nobre, das tecelãs. São elas que, ao fim e ao cabo, respeitando o desenho inspirado que lhes foi depositado nas mãos, farão dele a obra-prima que chegou até nós.
Uma obra cheia de nós, em cada fio puxado, em cada novelo escolhido ou afastado:
“Entre as cores
entre os nós
entre os rematesOs pontos
o bordado
a tessituraEntre o corte
entre a lã
entre o desenhoA trama
a Dama
e a costuraO sonho
o fio
a descosura”
Abriu a ferida, não poderá fechá-la, a não ser com a reflexão, feita mais adiante, sobre a eternidade. A ferida do simplesmente estar vivo e existir.
“desde quando a imagem
é jogo de sedução?E a sedução
é sequestro?E a poesia de mão
se confunde
com a rosaespinhosa
no coração?”
Sensível à dor, ou às dores dos sentidos e das paixões, Teresa abordará o mito do unicórnio no seu sentido mais tradicional:
” ele tem o poder
da saúde eterna
oculto nas rosas do seu sangue”.
Mas o unicórnio é mais do que isso. Não se limita, nem no espaço do mito a ser apenas o animal selvagem que é preciso ferir, para o domar, arrancar-lhe o chifre para obter a mistura eterna do Elixir.
É uma metáfora da vida, uma energia funda que o torna mutável, arquetípico, daí tanta lenda e tanto mito, desde os tempos mais antigos. Daí que se é, para alguns, princípio masculino, quando enfrenta um veado (em Lambsprinck) é princípio feminino quando enfrenta um leão. Face ao enxofre solar, a licorna é mercúrio lunar, bem próximo da sua Dama, com quem podemos identificá-lo.
Chegados ao momento mais misterioso e desafiante, da sexta tapeçaria com a legenda À Mon Seul Désir, não vemos em Rilke e Maria Teresa Horta a mesma reacção. Como nem eu, de resto, terei reacção igual à deles.
Para Rilke, todo o desejo se resumiria à entrega pura a uma pura existência, em que a abdicação de si mesmo (ultrapassando ou sublimando os cinco sentidos descritos nas outras tapeçarias) seria o único, o último desejo.
Recordo os versos finais da nona Elegia de Duíno, em que o poeta se rende finalmente à Terra, porque ela aspira a renascer, invisível, no homem:
“Erde, ist es nicht dies, was du willst: unsichtbar
in uns erstehen? – Ist es dein Traum nicht,
einmal unsichtbar zu sein? – Erde! Unsichtbar!”(Terra, não é isto que queres: invisível
renascer em nós?- Não é esse o teu sonho,
ser, por uma vez, invisível? -Terra! Invisível! )….
Namenlos bin ich zu dir entschlossen, von weit her.
(Destituído de nome, decidi-me por ti, há muito tempo.)
….
Siehe, ich lebe.Woraus? Weder Kindheit noch Zukunft
werden weniger..Ueberzaehliges Dasein
entspringt mir im Herzen”.(Vê, estou vivo. De quê? Nem infância nem futuro
se tornaram menores…Uma existência infinita
me nasceu no coração.)
Para Teresa Horta a questão é ao mesmo tempo mais simples e mais complexa. A nossa poeta sempre cantou a alegria do Corpo, a entrega naturalmente sublimada da Existência. Quando enfrentou o Anjo não temeu a sua presença enorme, limitou-se, com voz clara, a dizer sou eu e estou aqui.
E é com a mesma voz clara que a vemos dialogar com a Dama da Licorna, interpelando no fim a sua eternidade. Porque só a existência transformada, como reconheceu Rilke, confere eternidade à nossa vida, sejam quais forem os fios com que tenha sido entretecida…
“À mon seul désir
diz a Dama tomando
nas mãos o direito
à sua fantasia
O gosto do corpo
em si mesmo provado
a dar conta do gozo
quando nele porfia….
À mon seul désir
desafiando o amado
dedos esvoaçados
onde a pele adivinha
ardilosa seduzindo
entre o jogo e o jogado
tomando o que pode
de si mesma rainha”
Encontro em De Alchimia, tratado do século XVI, de que podemos ver uma reprodução em Alchimie, de Stanislav Klossowski de Rola (ed. Seuil, 1974, pfig. 36), a melhor imagem para o imaginário ao mesmo tempo sensual e poeticamente sublimado de Teresa Horta.
Uma figura feminina, Notre Dame de tous Honneurs ergue-se nua com os pés em cima de dois fornos alquímicos (athanors), pousados no chão firme da vida que é a terra.
Ladeada pelo sol à direita e pela lua à esquerda (como o leão e a licorna da tapeçaria) tem na cabeça uma coroa que serve de pouso a um pássaro, figurando a fase adiantada de sublimação da Pedra Filosofal. Esta Dama é a imagem da Pedra Filosofal, da Obra consumada, que é ela mesma representada pela Árvore (da Vida) que verdadeiramente sublima a cabeça coroada.
Das suas mãos pendem duas taças de que saem chamas, e que no tratado são explicadas como o “duplo fogo” que permite a sublimação a que o vôo dos pássaros dá forma mais visível.
Que não nos choque nem surpreenda o realismo da figura.
Pois aquela é o Feminino por excelência, pés bem assentes na Terra, Terra-Mãe, aquela Mãe suprema que concede e abençoa a Vida ( a Árvore da Vida) e que também noutros tratados é descrita como Virgem, e assimilada à Virgem Maria, emblema de Perfeição.
É pois natural que nos poemas de Teresa, sua Dama, seu mistério, também venha a ser exigido mais um aprofundamento, num último capítulo “Uma Fala Sem Medo”. Do corpo livre à liberdade da fala, do dizer do poema, um espaço entreaberto: o da interrogação que permanece, sobre o sentido, o último (o sexto, o da legenda) e que escapa à Razão:
“O que faço da minha eternidade?”
Será esta a pergunta, repetida vezes sem conta, abrindo cada nova estrofe deste último capítulo, onde não se encontrará resposta, mas uma pura e sentida pulsão, o anseio de algo mais, que esse desejo, o sexto, em si esconde e contém.
Porque tudo é mudança, o Mercúrio está ali, sob uma forma que podia ser outra, mas não, é mesmo aquela e só aquela:
“O que faço da minha eternidade?
Pergunta de novo a si mesma.Enquanto impassível nos fita, imobilizada
na trama armadilhada das tapeçarias
com aquele travo mudo, com aquele
brado surdo, com aquele olhar sem fundoNuma fala sem mundo”.
Nós somos aquele espelho que a Dama estendeu à licorna, o nosso olhar é cego, mas na nossa mudez (e na nossa nudez, já despidos do mundo, destituídos do nome) iremos depois mais longe, iremos depois mais fundo – numa fala sem mundo – quando, como se diz no célebre Mutus Liber nos forem dados “olhos para partir”.
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