A Utopia é o arquétipo de uma civilização ideal, que tem por base a esperança e o desejo de transformação de uma sociedade em declínio.
Para Delmar é um lugar onde:
“O sol voltará a brilhar,
Sereno sobre o vesúvio humano
Gaivotas pairarão, brancas,
doidas de azul
e os marinheiros regressarão
cantando alegres melodias do futuro
navegando sobre o verde oceano da vida”.
A sua crença numa Utopia é, contudo, constantemente posta em causa. Há um poema, por exemplo, em que ele afirma “gosto muito de ser (…) livre como os pássaros/ mas não muito/ Utopista/ mas não muito”. Dá a ideia de que ele tenta direccionar o leitor para ideais de liberdade e utopia, mas, logo a seguir, deflaciona-os ao dizer “mas não muito”, ou seja, quando parece que vai afirmar uma crença em algo, esta é logo refreada, com a introdução de uma oração adversativa. Creio que isto poderá estar relacionado com uma descrença generalizada num mundo que parece autoconsumir-se, num mundo em que as pessoas parecem caminhar passivamente para a morte e os predadores, quando caem, são substituídos por outros predadores ainda mais cruéis. O poema “Hipocrisia da inacção”, por exemplo, dá-nos um quadro muito representativo deste mundo em decadência, onde “engolimos o veneno/ do nosso silêncio” e “tranquilamente/ avançamos para a morte!”. E será por causa dessa inacção que ele parece já não acreditar que haja lugar para a esperança: o mundo não só não quer ser curado dos seus problemas, como também se autoaniquila continuamente.
Já no poema “A esperança é uma bússola sem dono” verificamos, no entanto, que a esperança ainda arqueja na alma do poeta; é no “sentimento sempre grato” da “fraternidade” que lhe “ensinaram os ventos sul” que ela sobrevive e faz sobreviver a expectativa de um dia em que:
“o sol inundará novamente
as ondas bravas da escuridão da vida
e terá como novas auroras
e infâncias raiando para todos”.
Existe também uma distinção mais ou menos clara entre aquilo que ele entende por um mundo em que tudo é possível e um mundo em que há limites, sendo que no primeiro consegue “saltar todos/ os degraus do tempo, abraçá-los” e no segundo:
“as chuvas
são lágrimas de dor
que no limite
o mundo liberta”.
Mais uma vez, o aparente entusiasmo é contido, mas, desta vez, por algo que está relacionado com o mundo real, ou seja, enquanto descreve um mundo em que é possível “saltar (…) os degraus do tempo”, no final do poema recorda-nos que “as chuvas do mundo”, afinal, são “lágrimas de dor”. A sua versão de um mundo perfeito terá sido, aparentemente, substituída por uma mais degradada no mundo real. Esta distinção está, em primeiro lugar, assente numa dicotomia entre um lugar em que tudo é ilimitado e um lugar em que tudo é limitado. Esses limites são impostos, neste poema, pelas “Nuvens” que são o “grande e seguro tecto do mundo” e são estes limites que impedem a Utopia de se manifestar na sua totalidade, dentro e fora da mente do poeta. Por esse motivo, o seu arquétipo de uma sociedade ideal terá entrado em vertiginoso declínio ao consciencializar-se da impossibilidade da sua manifestação no real.
A estrutura formal da sua poesia está também em consonância com o seu pensamento, rompendo com os padrões esteticamente normativos, não respeitando métrica ou rima, notando-se em alguns poemas resquícios de batuques africanos alinhados com uma semântica agressiva, crua e profundamente irónica – que aborda quase invariavelmente temas relacionados com morte, guerra e exploração -, consistente também com uma grande revolta relativamente ao estado de coisas no mundo; revolta essa que “fuzila” a esperança e, consequentemente, a utopia.
Como já dizia Thomas More “A prosperidade ou a ruína de um estado depende da moralidade de seus governantes.” Uma utopia só se realizar na sua máxima expressão se todas as pessoas envolvidas estiverem de acordo com ela. Aquilo que alguns entendem ser uma utopia poderá ser o seu oposto para outros. Há apenas um ténue véu que separa a utopia da distopia e é tecido em fio de seda frágil, fácil de romper (ou corromper). E é precisamente nesse véu que se dá o ponto de ruptura em que a civilização idealizada por uns se torna o cárcere de outros. Enquanto “tranquilamente” avançarmos “para a morte” não será possível realizar a utopia civilizacional deste autor – e ele demonstra ter plena consciência disso. “Fuzilaram a Utopia” será então a denúncia desse ponto de ruptura em que a Utopia deixa de o ser. Desta forma, nada mais parece restar além da possibilidade de invocar continuamente os seus padrões de ideal através da poesia, ainda que sem esperança, a partir de imagens dispersas em fragmentos, que se alinham como uma constelação de estrelas, num imaginário que a assimetria dos versos concretiza.
por Vera Novo Fornelos, Escritora portuguesa | Texto de apresentação do livro Fuzilaram a Utopia na Associação 25 de Abril
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