A insensatez de Bolsonaro frente à epidemia embaralhou o jogo.
Para quem não entendeu o “infelizmente” do título, eu explico.
Desde a eleição do Bolsonaro eu – e toda uma multidão – sabia que o povo iria pagar um preço bem alto por esta escolha infeliz, fruto, entre outras coisas, de um cálculo terrivelmente errado da nossa burguesia.
O cálculo errado
O cálculo da burguesia brasileira era simples: martelar através da mídia corporativa, ao longo de anos, sobre a “incompetência” e a “corrupção” da esquerda no governo central, ignorando números e fatos, tudo para pavimentar a volta ao poder dos queridinhos do PSDB/DEM, neoliberais e, esses sim, corruptos até dizer chega.
Aliás, a elite brasileira, formada pela mentalidade escravocrata-colonial, foi, durante gerações, cevada no trânsito corrupto do poder público com o privado. Ela sempre viveu desta relação promíscua, que apenas em tese condena. Isso incluí, diga-se de passagem, os meios de comunicação da mídia corporativa.
Acontece que, atualmente, o mais cosmopolita, para a elite brasileira do século XXI, é que o Brasil caminhe para uma democracia burguesa tão corrupta quanto qualquer outra, mas que seja parecida com a “democracia” de tipo estadunidense existente desde o século 18 (nossa elite, como sempre, atrasada em tudo): bipartidária, o que significaria, em termos atuais do Brasil, termos, de um lado, o PSDB (a direita com bons modos) e do outro o DEM (a direita escancarada).
Já imaginou, amigo leitor, um segundo turno presidencial entre o PSDB e o DEM? Os colunistas e editorialistas da mídia hegemônica iriam ensurdecer o país com seus gemidos de orgasmos múltiplos ante este cenário paradisíaco. Era tudo que buscavam com a incessante campanha pela destruição do PT e da esquerda.
Mas… eles erraram a mão. Ao tentar transformar o PT e a esquerda em bodes expiatórios de um sistema – que, no fundamental, foi criado e mantido por eles mesmos – abriram caminho para a negação da política como um todo e pavimentaram a estrada para um aventureiro neofascista, talvez o líder político mais raso e despreparado da história desde que as monarquias hereditárias, com poder de fato, saíram de moda: Jair Bolsonaro.
As constantes declarações abertamente elitistas, racistas e autoritárias do clã Bolsonaro foram devidamente minimizadas por uma mídia cega por ódio e pelo desejo de vingança por quatro derrotas consecutivas para o campo popular (duas vezes com Lula, duas vezes com Dilma).
As assertivas bolsonarianas eram límpidas para quem quisesse as enxergar. Nelas não havia qualquer verniz de falsa erudição ou fingido humanismo, com o qual nossa burguesia de mentalidade colonial sempre tentou dourar a pílula da exploração e da injustiça.
Em qualquer país do mundo um político que atacasse abertamente os direitos humanos e fizesse a defesa da tortura, não só enterraria sua carreira como seria levado aos tribunais. No Brasil, com o decisivo apoio da mídia hegemônica, os discursos neofascistas passaram a ser normalizados, como “parte do jogo”.
E veio a vitória de Bolsonaro e com ela a vitória da velha nostalgia escravocrata, de volta ao centro do poder em pleno apogeu e, desta vez, sem disfarces, pior, com certo respaldo popular e embalada em uma ideologia autoritária.
Para o proletariado, a consequência da eleição de Bolsonaro era pedra cantada e, em relação a isso, não recaí sobre ele nenhuma acusação de falsidade: “quem sofre no Brasil é o empresário”, “trabalhador tem que escolher entre direitos e emprego”. Essas frases, entre outras com o mesmo teor, foram ditas pelo então candidato Bolsonaro em alto e bom som.
Com a esquerda enfraquecida e paralisada diante de uma contundente derrota política, ideológica e cultural, ao povo só restava, durante um bom tempo, continuar a sofrer com o aumento desenfreado da exploração, da miséria e da fome, caminho que começou a ser trilhado com o golpe contra Dilma e a ascensão à presidência de Michel Temer.
Porém, com a eleição de Bolsonaro, tudo isso é intensificado e elevado a um patamar superior com dois novos elementos: a renúncia, como nação, a qualquer projeto de desenvolvimento soberano (alinhamento incondicional com os EUA), e os ataques à limitadíssima democracia burguesa brasileira, no rumo da entronização de um regime autoritário.
A insensatez frente à epidemia embaralhou o jogo
Pensando em perspectiva, sabíamos que, cedo ou tarde, a vida daria uma resposta. Os trabalhadores, desnorteados, confusos e divididos na atualidade, iriam encetar uma reação de classe, fortalecendo suas expressões orgânicas (partidos, sindicatos, etc.), elas também mais eficazes e renovadas por um processo de autocrítica consequente, aprendendo com as lições da derrota sofrida. Isso seria inevitável em termos históricos, e sobre este aspecto não tínhamos qualquer dúvida.
Porém, o que nos deixava entristecidos é que, até este tempo chegar, e temíamos que demorasse, talvez toda uma geração dos melhores filhos do proletariado estaria condenada à pobreza irremediável.
No entanto, para embaralhar tudo, surgiu, não a pandemia, mas a forma como o clã Bolsonaro lida com a pandemia, desnudando, para amplas massas, bem antes do esperado, o caráter insano e criminoso das teses obscurantistas que lhe servem de amparo.
Dados divulgados nesta sexta-feira (10), pelo historiador Raul Carrion, com base no “Covid-19 Visualizer”, mostram que o Brasil, do dia 02/04 até o dia 10/04, já é o primeiro no mundo em evolução tanto no número de infectados (aumento de 179%) quanto no número de mortes (aumento de 324%).
No entanto, Bolsonaro segue, dia a dia, dobrando sua aposta contra a necessidade de isolamento e tal campanha já surte seus efeitos.
O resultado desta aposta é que, inevitavelmente, a menos que uma cura para o Covid-19 seja descoberta em tempo recorde, ou que uma mutação do vírus diminua repentinamente sua capacidade de disseminação (duas hipóteses que existem mais no campo do desejo do que na realidade), o Brasil pode estar à beira de uma catástrofe inédita, que irá vitimar em massa os trabalhadores pobres.
A conta de toda esta tragédia, mais do que anunciada, será cobrada de Jair Bolsonaro por todas as forças políticas, inclusive pela burguesia – o que existe de pensante nela, incluindo as altas patentes das Forças Armadas – que vai descartar seu erro de cálculo com satisfação e retomar em novas condições seu projeto de uma democracia burguesa manietada. Mesmo os defensores mais ferrenhos do neofascista, ao assistirem pessoas próximas sofrerem, ou mesmo morrerem, irão desertar de seus postos infectos. Restarão poucos ao redor do clã.
Bolsonaro, caso este cenário dantesco se confirme, será, inevitavelmente, deposto e, provavelmente, processado e condenado.
Entretanto, o que seria, para nós, em qualquer outro cenário, motivo de alegria (deposição e prisão de um miliciano neofascista), não provocará qualquer regozijo.
Bolsonaro cairá, infelizmente, sobre uma montanha de corpos.
por Wevergton Brito, Jornalista, vice-presidente nacional do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade ao Povos e Luta pela Paz) | Texto original em português do Brasil
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