É notícia que alguns Presidentes de Câmara se indignaram com uma alegada imposição de “lei da rolha” quanto aos casos de COVID-19. Estas declarações inflamatórias nas quais são utilizadas expressões como “lápis azul” e “amordaçar autarcas” são sustentadas por uma disputa territorial entre a Autoridade Municipal de Proteção Civil e a Autoridade de Saúde.
Ou, por outras palavras, alguns autarcas pretendem substituir-se à administração central para tomar pretensas medidas de saúde pública (necessariamente) avulsas e de cariz apenas local.
Poder-se-ia estranhar a preocupação deste sector, que há pouco tempo dizia que a “descentralização” de competências na área da saúde envolvia “muitas tarefinhas e pouco dinheiro” (JN 07.01.20), não fora a flexibilização das regras do Orçamento Geral de Estado para as autarquias, nomeadamente na exclusão de responsabilidade financeira nos limites ao endividamento (ANMP, CIR 18/2020/PB de 07.04.2020).
Importa clarificar que:
- A medida do Ministério da Saúde não é uma “Lei da Rolha” visto não haver qualquer procedimento censório de informação. Trata-se apenas de centralização de dados como a responsabilidade de saúde pública impõe.
- Pretende o Ministério da Saúde que os delegados de saúde concentrem a informação na Direção Geral de Saúde (DGS) que fará a sua divulgação diária entre as 12.00 e as 13.00, como habitualmente, para que seja conveniente e publicamente disponibilizada pelos canais oficiais, incluindo os municípios.
- A “indignação” está a ser usada como instrumento para justificar a municipalização da saúde, com vista a uma clara fragmentação das funções sociais do Estado central, designadamente do SNS: “notam que, em alguns casos, as autarquias têm tomado a dianteira ao Governo no combate à pandemia. Para a Associação dos Autarcas Social Democratas (ASD), “um dos grandes ensinamentos que esta pandemia poderá trazer” é que “as autarquias têm capacidade de avançar de forma célere e substituir o Estado central” (Jornal Económico, 11.04.20).
- Os autarcas alegam que precisam de saber a evolução da situação epidemiológica em cada concelho para agir- sem hesitar quanto a promover a sua instrumentalização política – ao arrepio do cumprimento das recomendações da Organização Mundial de Saúde e da DGS e, até, das mais elementares regras quer de pertinência em saúde pública, quer de proteção dos dados individuais de saúde.
As declarações do Presidente da Câmara de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, são paradigmáticas de instintos persecutórios e estigmatizantes que em nada representam o Estado de Direito Democrático:
andam umas bombas relógio à solta que deviam estar em casa (…) portanto o estado de emergência devia ampliar as condições – só que as entidades são obtusas para entregar os dados individuais dos positivos (…) eu entrego os dados em envelope fechado à Polícia Municipal…”
(Antena 1, 11.04.20)
Um outro exemplo de (má) utilização do erário público e de iniciativas de “saúde” desapropriadas é Cascais, um concelho “rico” (com mais de 230 milhões de orçamento municipal para 2020! – como farão os outros municípios?!):
- Cascais comprou 850 mil máscaras à China. Vão estar disponíveis para a população por 70 cêntimos
Autarquia investiu cinco milhões de euros na compra de equipamento médico e material de proteção individual.
O objetivo, explica o presidente da Câmara à TSF, é doar as máscaras a 17 instituições particulares de solidariedade social (IPSS) do concelho, que depois as vão vender à população a 70 cêntimos por unidade”
(TSF, 09.04.20)
- Câmara de Cascais vai fazer testes de imunidade à população local para a Covid-19.
A autarquia vai telefonar, de forma aleatória, a 400 residentes no concelho, que vão ser selecionados com base no contrato com a Águas de Cascais.
Os inquiridos vão depois decidir se aceitam fazer o teste. Contudo, os resultados não permitem para já conclusões sobre se a imunidade adquirida com a infeção é temporária ou permanente”
(SIC, 10.04.20)
- Cascais pede empréstimo de 15 milhões euros para combater o Covid-19 (Portal Cascais, 11.04.20)
Não deixa de ser curioso que esta vaga de indignação surja logo após a “Carta aberta de cientistas e médicos arrasa informação prestada pela DGS” (Negócios, 09.04.20) promovida pela DSSG, Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social, sediada na Nova School of Business and Economics (NOVA SBE), actual bastião do pensamento neoliberal em Portugal.
Recorda-se que a Ordem dos Médicos, em 2015, já se mostrava preocupada com o projeto ideológico (em curso) de municipalização da saúde:
Há o risco de desenquadramento de uma política nacional de saúde (…) de uma excessiva segmentação do Serviço Nacional de Saúde” e de diferenças no tratamento consoante a zona onde os cidadãos vivm – uma “saúde a múltiplas velocidades”
(Público, 09.03.2015)
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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