A Direcção-Geral de Saúde não é uma Direcção-Geral como as outras, que são livremente reestruturadas, fundidas, cindidas ou simplesmente redenominadas, sempre que muda o Governo, perdendo-se a identidade, a tradição, e o conhecimento acumulado.
A Autoridade de Saúde Nacional
Numa das primeiras conferências de imprensa da actual crise da COVID – 19 o Governo, ao falar aos jornalistas em “Autoridade de Saúde”, teve de explicar que a Autoridade de Saúde Nacional era aquela senhora, Directora-Geral de Saúde, que estava sentada ali ao lado…
De facto, a Direcção-Geral de Saúde não é uma Direcção-Geral como as outras, que são livremente reestruturadas, fundidas, cindidas ou simplesmente redenominadas, sempre que muda o Governo, perdendo-se a identidade, a tradição, e o conhecimento acumulado.
A Direcção-Geral de Saúde, fundada em 1901, tem atravessado os vários regimes e, se viu a sua denominação alterada em 1984 para Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários e absorveu, entre outros, os serviços centrais dos antigos “serviços médico – sociais das caixas de previdência”, veio a constatar-se ser manifestamente exagerada a notícia da sua morte, dada nessa altura:
Entende-se que a Direcção-Geral de Saúde constituída pelo Doutor Ricardo Jorge em 1901, aproveitando toda uma gama de instituições de saúde que remontam, pelo menos, aos primórdios do século XIX e às mais vetustas instituições municipais, deu ao País uma acção meritória mas que deixou de satisfazer os próprios médicos e outros profissionais de saúde pública, porque as concepções neste domínio obviamente têm evoluído, postulando hoje a perspectiva que usualmente se designa por saúde comunitária.”
De facto foi restabelecida em 1993 a denominação Direcção-Geral de Saúde para a – no intervalo – designada Direcção-Geral de Cuidados de Saúde Primários, na qual foi integrada a Direcção-Geral dos Hospitais.
Repare-se que com a implementação da desconcentração regional da Administração Pública e com a empresarialização dos hospitais a gestão directa de unidades de saúde ficou fora da Direcção-Geral de Saúde, que se preocupa com as políticas de saúde e com a gestão, que lhe é tradicional, da prevenção e combate aos surtos de doenças infecto-contagiosas, sendo interessante ver que a Lei aprovada no novo Estado Novo em 1949 vigorou 60 anos até ser substituída.
Quanto ao estatuto de Autoridade de Saúde, em que o Director-Geral de Saúde – e a nível municipal, médicos indicados para o efeito, então designados por “delegados de saúde” – são tradicionalmente “autoridades” e se articulam directamente com os homólogos estrangeiros, cabe referir que só durante o tempo de existência da Direcção-Geral de Cuidados de Saúde Primários a lei admitiu que o Ministro da Saúde fosse autoridade de saúde ele próprio. Posteriormente, por força da própria Lei de Bases da Saúde, o exercício de funções de autoridade de saúde tem cabido a médicos sensibilizados para a problemática de saúde pública ou mesmo com essa especialidade.
Percebe-se a necessidade de as autoridades de saúde terem formação cientifica adequada, sobretudo num terreno em que é importante saber que não há certezas.
Entretanto a situação de facto conta muito. Recordemos o longo exercício de funções, sob vários governos, como Director-Geral de Saúde, de Francisco George, tendo a sua aposentação por limite de idade sido pretexto para prever um mecanismo excepcional de prorrogação de funções para os dirigentes. O lugar de Director-Geral da Saúde não é dos que estão “no mercado” para os boys dos vários partidos.
Seria entretanto importante perceber como tem decorrido o relacionamento entre a actual titular, Graça Freitas, e o Governo, mas não existem muitos elementos para alicerçar uma análise. Quanto ao agora denominado Conselho Nacional de Saúde, considerou que não deveria recomendar a suspensão das actividades lectivas e foi prontamente descredibilizado, desaparecendo do mapa. Curiosamente cabia-lhe por lei propor a declaração de calamidade pública – e olhando para a lei percebe-se por que razão António Costa o tinha como suficiente – e até o estado de emergência. Mas a Presidência da República ultrapassou tudo e todos.
Tem sido instrutivo para a opinião pública fazer aparecer nas conferências de imprensa também dirigentes de outros organismos do Ministério.
Já o número e grau de tecnicidade das normas e orientações que vão sendo produzidas pela Direcção – Geral passará talvez despercebido à generalidade da população.
Convém em todo o caso sinalizar problemas que poderão ser explicados pela organização adoptada ou pelo menos aspectos em que pareçam estar a gerar-se disfunções.
A cadeia de “autoridades de saúde”
Abaixo da “Autoridade de Saúde Nacional”, que como vimos, é a Directora-Geral de Saúde, encontramos, simplificando, Autoridades de Saúde Regionais, enquistadas nas Administrações Regionais de Saúde, as quais dispõem de Departamentos de Saúde Pública, e estruturas homólogas nos Agrupamentos de Centros de Saúde, sendo que, existindo vários Agrupamentos num município, se designará um delegado municipal que exercerá funções correspondentes aos antigos delegados de saúde.
Existe um diploma que aponta para a unidade de actuação deste conjunto de autoridades de saúde e que prevê mesmo o funcionamento de um Conselho de Autoridades de Saúde para este efeito.
Quanto à nova Lei de Bases refere a autoridade de saúde como se se tratasse de uma única entidade, e o espírito será efectivamente esse.
A Lei de Bases de Saúde que esteve em vigor até 2019 e de que os decretos-leis em que nos apoiamos são diplomas de desenvolvimento, estatuía claramente:
As funções de autoridade de saúde são independentes das de natureza operativa dos serviços de saúde e são desempenhadas por médicos, preferencialmente da carreira de saúde pública.”
Como é que isto funciona na prática, e em especial no decorrer de uma situação de emergência como a relativa à COVID-19? Aparentemente, fazendo-se as Administrações Regionais de Saúde representar pelos seus Departamentos de Saúde Pública nas estruturas em que têm assento. No entanto, parece ter havido problemas, por exemplo, quanto a garantir os recursos adequados ao tratamento de outros utentes em situações complexas para reservar recursos para o internamento dos doentes COVID-19. À hora em que escrevo o Ministério da Saúde reforçara a sua orientação de reduzir os internamentos COViD-19 ao mínimo, e embora a duplicação do número de ventiladores existentes a nível nacional se revelasse até agora uma miragem, aparentemente continuava a ser possível internar em cuidados intensivos todos os doentes que deles necessitavam. Mas os doentes com outras afecções que estavam a ser seguidos ou necessitam de intervenções cirúrgicas terão ficado em muitos casos desamparados, não por uma impossibilidade absoluta de os apoiar, mas por uma gestão com pouco grau de precisão.
A situação dos lares e residências para idosos foi, neste aspecto, muito mais complexa de gerir. Em vão se terá determinado que elaborassem planos de contingência (será que os destinatários conheciam sequer o conceito?), e cada caso de detecção de um número elevado de infectados determinou frequentemente não a separação interna, mas a retirada dos não-infectados para locais que tiverem de ser obtidos caso a caso.
Numa das conferências de imprensa, Graça Freitas explicou que este tipo de situações deveria ser gerida a nível de Agrupamento de Centros de Saúde. Resposta by the book, formalmente correcta, mas que não resolveu nem resolve muitas situações.
Valeu que os laboratórios de investigação conseguiram criar os seus próprios testes e, como este esforço foi visto como um bónus (o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior não integrava o gabinete de crise) e não foi integrado na rotina de aprovisionamento dos serviços de saúde, lá se decidiu que fossem aplicar os testes aos lares e residências ao sabor de um programa com prioridades talvez demasiado vagamente esboçadas. À hora em que escrevo, alguém contudo percebeu que se impunham decisões:
Para o Norte, rapidamente e em força, testar 20 mil trabalhadores de lares e residências !”
No terreno, também e sobretudo a Protecção Civil
A arquitectura actual da Protecção Civil deve-se no essencial a duas Leis, uma de 2006, que definiu a arquitectura do Sistema de Protecção Civil e que reflectirá a visão na altura do então Ministro do Interior António Costa, a qual “Aprova a Lei de Bases da Protecção Civil”, e outra do ano seguinte, que regulou com maior precisão a protecção civil municipal.
Os presidentes de câmara durante o Estado Novo estavam investidos de uma dupla qualidade: por um lado eram agentes do Governo, que os nomeava, por outro lado presidiam à câmara, onde tinham assento vereadores (indirectamente) eleitos. Durante o debate da regionalização, em particular o que precedeu o famoso referendo do tempo de Guterres, tornou-se aparente que a instituição de regiões não era muito popular entre vários deles, por dificultar o acesso ao Terreiro do Paço, ou a possibilidade de passar culpas ao poder central. Eduardo Cabrita passara uns anos a preparar, com estatuto remuneratório de Subsecretário de Estado, o plano que foi reprovado. Ultimamente, com o estatuto, não apenas remuneratório, de Ministro Adjunto, passou uns anos a tratar de uma descentralização de geometria variável que imbrica de tal forma a Administração Central e a Administração Local que ninguém sabe muito bem onde começa uma e acaba outra. Os casos judiciais dos incêndios florestais de 2017 e da pedreira de Borba ainda hão-de dar muito que falar.
No capítulo específico da protecção civil, que tem de actuar em situações de calamidade pública, incluindo as decorrentes do alastramento da COVID-19 e cujas estruturas estão aparentemente vocacionadas para propor medidas como a criação de cercas sanitárias – mas não discutiremos aqui nesta fase o episódio Rui Moreira- Graça Freitas – não é claro o que compete ou não às câmaras municipais:
- decorre da lei que os planos municipais de protecção civil deverão seguir na sua elaboração as orientações da Comissão Nacional de Protecção Civil;
- em matéria assistencial parece haver um consenso de que devem ser as câmaras municipais devem arranjar soluções.
No entanto a realização de investimentos em equipamentos de emergência na área da Saúde, em articulação com os Centros Hospitalares, que tem sendo anunciada, por exemplo na cidade do Porto, pode deixar a dúvida se o acesso a esses equipamentos pode ser vedado a não munícipes. A lei deveria ser clara a excluir tal hipótese.
Quanto ao dispêndio de importâncias dos erários municipais em equipamentos de protecção necessários ao pessoal dos serviços de saúde como máscaras cirúrgicas ou realização de testes para fundamentar estratégias de saúde municipais, como mostrou Teresa Gago estar a fazer a Câmara de Cascais em recente artigo no Jornal Tornado, deveria ser vedado a qualquer autarquia local.
Os governadores civis do Estado de Emergência
Credite-se António Costa com o ter sido o único protagonista de uma crítica à extinção dos Governos Civis, decidida por Passos Coelho e Miguel Macedo, à qual apontou ir retirar ao Ministério da Administração Interna os seus serviços desconcentrados e que na lógica da Lei de Bases de Protecção Civil aprovada em 2006 asseguravam a coordenação distrital dos serviços desconcentrados dos vários Ministérios e a articulação com os municípios.
Suponho que hoje se terá por pacífico ter entregue a emissão de passaportes aos serviços de identificação civil e desmantelado o sistema de governadores civis / distribuidores de benesses dos seus cofres / cabos eleitorais dos círculos distritais.
Mas a coordenação de serviços desconcentrados e a articulação destes com as câmaras exige uma presença no terreno, e a nomeação de cinco dos secretários de Estado do Governo mais obeso da nossa história democrática para actuarem como pro-cônsules a nível das NUTS 2 terá tido provavelmente bons resultados.
Veremos que conclusões vão ser tiradas daí.
Preâmbulo do Decreto-Lei nº 74-C/84, de 2 de Março.
Decreto-Lei nº 10/93, de 15 de Janeiro.
Lei nº 2 036, de 9 de Agosto de 1949.
Pela Lei nº 81/2009, de 21 de Agosto (Institui um sistema de vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco, recolhe, actualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública, bem como prepara planos de contingência face a situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública).
Lei nº 48/90, de 24 de Agosto..
Faço esta referência sem me pronunciar sobre as polémicas que têm rodeado o seu desempenho como Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa.
Também não me pronuncio aqui sobre o desempenho da actual Directora-Geral.
Lei nº 81/2009,atrás referida.
Decreto-Lei nº 82/2009, de 2 de Abril.
Lei nº 95/2019, de 4 de Setembro.
A avaliar por um documento subscrito conjuntamente pela União das Misericórdias Portuguesas e pela Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade estas teriam preferido que lhes retirassem os infectados mas lhes deixassem os restantes.
Lei nº 27/2006, de 3 de Julho.
Lei nº 65/2007, de 12 de Novembro.
Curiosamente o Presidente da Câmara de Vila do Bispo, um dos foram mais claros nessa posição, viu o seu concelho votar favoravelmente a regionalização.
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