Sartre já dizia que o inferno são os outros. Pois bem.
Antes, e um antes que significa até a semana passada, tínhamos pouco tempo. Corríamos céleres de um lugar para outro. De um país para o outro. Impacientes com os minutos perdidos na fila do supermercado ou no chek in dos aeroportos. Inventamos, desde que aprendemos a dominar o fogo, modos mil de driblar o tempo, de fazê-lo render. Estradas aéreas e terrestres, barcos, caças, submarinos. Aplicativos de precisão espacial, mapas, contagem de passos. Como manter a forma, como meditar, como ficar mais bonitos. Vídeos que nos ensinam o que fazer para sermos felizes e prósperos. Datings, speed datings, nudes, mantras e coachings espirituais. Tudo on line. Tudo rápido. Tudo para adiantar o tempo, para comprimi-lo, condensa-lo e assim caber mais coisas. Para assim caber mais tempo. Enquanto que em nós, aquele pedacinho de subjetividade, intuição e encantamento ia ficando de lado.
E conseguimos. Finalmente conseguimos. Driblamos o tempo. Fazemos hoje em um terço de minuto o que há dez anos atrás levávamos horas e até dias.
E agora o temos. Eis o tempo. Ei-lo aqui. Inteiro. Todo o tempo do mundo. E ironicamente não fazemos ideia de como lidar com ele. A quarentena começou agora e esgotando-se a descoberta da nova rotina, da delícia de estar em casa, de ver tv, de organizar as coisas, de ficar com os nossos, iremos aos poucos, descobrir que o buraco é mais em baixo. Que a coisa é bem mais séria.
Não. Não se trata de férias forcadas, nem uma simples crisezinha sanitária que memes e frases de efeito de humoristas farão desaparecer. Essa mania que temos de levar tudo na sátira é boa até certo ponto. Até o ponto em que não estejamos escondendo o próprio medo, ou nos subtraindo da nossa responsabilidade. Ou pior ainda, que o humor exagerado não seja apenas mais uma tentativa patética de driblar o velho tempo. Pois a alienação é uma das formas mais rápidas e eficazes de fuga.
Não tem jeito. O chamado é para todos. Do religioso ao cético. Do cínico ao romântico. Do bêbado ao sóbrio. Do rico ao pobre. Daquele que possui previdência privada e plano de saúde àqueles que seguram com mãos trêmulas e cansadas o cartão do SUS.
O vírus pertence a todos. E é um dos maiores exemplos de democracia que já presenciamos. Ainda não inventaram algo mais socialmente justo do que uma doença. Uma pandemia então é um grande tratado de igualdade.
Somos assim. Uma febrezinha no corpo nos deixa mansos. O medo de perder um ente querido nos torna mais empáticos. A morte, vista assim de perto e não apenas em telejornais distantes, nos transforma em pessoas mais generosas e gratas.
É assim desde que o mundo é mundo. Enquanto está tudo bem ou aparentemente bem, a turba enlouquece, perde a mão. Os líderes, com suas vestes e frases estúpidas continuam a desenhar a caricatura histórica e histérica do mundo:
“Hi Hitler.”
“Eu sou um homem do povo.”
“É só uma gripezinha à toa.”
São as mesmas frases de antes revisitadas pelo lunático da vez.
E em meio há essa loucura, nessa queda de braço pra saber quem é de direita ou de esquerda, quem é um bandista ou católico, quem é potência bélica e quem é país emergente, nesse grande jogo da humanidade onde a vaidade impera, esquecemos o simples, nos sentimos onipotentes, nos tornamos arrogantes, descuidados, ridículos até. E então acontecem as guerras, as grandes convulsões, os terremotos e tsunamis e nos deixam mais mansos, ordeiros. Nos deixam humanos.
E agora não há nada a ser feito além de nos resgatarmos em meio às cinzas do que somos. Garimparmos em meio ao incêndio que causamos e manusearmos essa matéria áspera que sobrou para quem sabe forjarmos um novo ser.
Agora que temos todo o tempo do mundo, é hora de pensar nem que seja por um segundo, sobre tudo isso. E é bom lembrar que as consequências dessa experiência não irão sair com um simples lavar de mãos.
Acho que você estava errado, meu caro Sartre. O inferno, na verdade, somos nós…
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