A capacidade dos países da União Europeia para enfrentar a crise do Covid 19 é muito desigual, contrariamente ao que se afirma a crise não afecta da mesma forma pobres e ricos, e agravará ainda mais as desigualdades e a miséria
Neste estudo analiso, utilizando dados do Eurostat, do INE e da DGO do Ministério das Finanças, o peso da divida publica, medida em percentagem do PIB, em Portugal e em outros países da União Europeia assim como as receitas já utilizadas pelos Estados para pagar os juros, mostrado que elas têm o peso muito diferente de pais para pais e que, em Portugal, a despesa com juros já é superior à despesa com a educação, e é muito superior ao investimento público, e pouco inferior à despesa com a saúde.
Tal facto tem determina que o que resta para suportar as outras funções do Estado tem sido manifestamente insuficiente. E que o aumento em mais de 15 pontos percentuais da divida publica em 2020, em percentagem do PIB, necessária para apoiar as famílias e a economia, vai determinar um aumento significativo dos encargos com a divida criando obstáculos e limites ao Estado para apoiar a recuperação da economia e dos rendimentos das famílias. Esta situação pode-se tornar ainda mais grave devido à falta de solidariedade que existe na União Europeia.
É urgente, se quisermos sobreviver como país independente e como condições de vida minimamente dignas, o regresso à normalidade da atividade económica embora cumprindo rigorosamente as recomendações das autoridades de saúde. E termino com uma conclusão que pode ser polémica mas que deixo para reflexão do leitor que é a seguinte:” Há riscos, é evidente que há riscos, mas temos de os enfrentar se quisermos viver (nós, os nossos filhos, os nossos netos) com um mínimo de dignidade. Mantermo-nos indefinidamente com medo em casa não é solução até porque cerca de 30% dos infectados tem como origem o ambiente familiar, permanecer em casa não ficamos imunes e apanhamos outras doenças”.
Espero que este estudo possa ser útil para a reflexão sobre um tema que é sensível e que, por isso, exige um debate sereno, fundamentado e objetivo.
Estudo
A capacidade dos países da União Europeia para enfrentar a crise do Covid 19 é muito desigual, contrariamente ao que se afirma a crise não afecta da mesma forma pobres e ricos, e agravará ainda mais as desigualdades e a miséria
A capacidade dos diferentes Estados dos países da União Europeia para enfrentar a grave crise atual é muito desigual, como consequência dos diferentes níveis de endividamento. Isto porque o peso da divida publica é diferente de país para pais, o que determina que os encargos atuais com divida consumam já nuns países uma parcela mais importante das receitas do Estado do que em outros, reduzindo a capacidade dos primeiros para investir quer na proteção dos rendimentos das famílias trabalhadoras e de outras classes desfavorecidas da população quer no apoio às empresas e na recuperação da economia.
O quadro 1, construído com dados divulgados pelo Eurostat, dá uma ideia clara da situação atual de endividamento do Estado nos diferentes países da União Europeia e do “egoísmo” dos mais ricos, que mais têm beneficiado com a União Europeia, em apoiar os países que enfrentam neste quadro de grave crise de saúde e económica maiores dificuldades.
Quadro 1 – Divida Pública em % do PIB (riqueza anual criada em cada país) – 2007/2019
Em 2019, por ex., a divida pública representava nos países da União Europeia em média 79,8% da riqueza ciada em cada ano (PIB), enquanto em Portugal correspondia a 117,7%, e na Alemanha apenas a 59,8% do seu PIB e na Holanda a 48,6% do respetivo PIB, ou seja, a menos de metade da portuguesa medida em percentagem da riqueza anual criada em cada país. A Grécia com 176,5% do PIB e a Itália com 134,8% do PIB eram os países mais endividados da União Europeia.
O presidente da CIP, quando apresentou ao governo o plano dos patrões para enfrentar a atual crise, exigindo do Estado 21.000 milhões € para as empresas, a maior parte a fundo perdido (subsídios) e utilizou como argumento que o apoio na Alemanha dado pelo Estado às empresas, medido em percentagem do PIB, era muito superior àquilo que a CIP pedia e Marques Mendes veio logo a correr na TV defender tal plano “esqueceram-se”, ou por ignorância ou por irresponsabilidade, da situação completamente diferente de Portugal e da Alemanha como os dados do Eurostat dos quadros 1 e 2 mostram
O peso diferente da divida publica determina encargos para os Estados com a divida muito diferentes restando para as outras funções do Estado disponibilidades financeiras também muito diferentes. O quadro 2, com os encargos com divida pública, medida em percentagem do seu PIB, já suportada pelos diferentes países da União Europeia mostra a realidade atual.
Quadro 2 – Encargos (juros) do Estado com a divida pública medidos em % do PIB – 2010/2019
Medida também em percentagem do PIB, a despesa do Estado com o pagamento de juros da divida pública era em 2019, em Portugal; superior em 87,5% à média dos países da União Europeia e em 275% (3,75 vezes mais) do que o gasto pelo Estado na Alemanha e na Holanda com o pagamento de juros (não inclui o capital) da divida pública. A desproporção é enorme e cria fortes limitações ao Estado português para apoiar as famílias e as empresas em Portugal.
Este facto resulta não só do peso da divida publica em % do PIB ser muito mais elevada do que na generalidade dos países, mas também da taxa de juro paga pelo Estado português ser mais elevada do que a paga por outros países, nomeadamente pela Alemanha e Holanda. Mas para que os efeitos da divida publica portuguesa se tornem mais claros para o leitor vamos transformar a percentagem em milhões € e comparar com a despesa com outras funções do Estado (saúde, educação, investimento público).
Quadro 3 – Despesa com juros da divida pública, com Educação, Saúde e FBCF publico em Portugal
No período 2015/2019, o Estado português gastou só com o pagamento de juros 36.597 milhões €, ou seja, mais do que despendeu com a Educação que foi 36.158 milhões €, e muito mais do que o investimento público (FBCF), que foi apenas de 21.080 milhões €, o que corresponde a 57,6% do gasto com juros da divida pública.
Este reduzido investimento público explica a extrema fragilidade da economia portuguesa e do SNS cujas consequências são visíveis na atual crise (extrema dependência do turismo, das exportações e importações, e uma clara desvalorização da produção nacional, falta de profissionais e equipamentos no SNS).Se adicionarmos aos juros os “Outros encargos com divida pública” , que não é amortização do capital, o valor despendido, no mesmo período, pelo Estado português já sobe para 41.389 milhões €, um valor muito próximo do gasto com a “Saúde”, que foi apenas 44.523 milhões €, o que explica as dificuldades extremas que teve o SNS em enfrentar a crise do “COVID 19”, o que obrigou a concentrar os escassos recursos disponíveis no combate ao “CORONAVIRUS”, reduzindo a assistência médica em outras áreas (doenças oncológicas, doenças cardiovasculares, etc.) que causou um aumento significativo de mortes por outras patologias.
E atual governo parece que não aprendeu nada com a experiencia atual pois, no lugar, de investir no SNS, dotando-o dos profissionais de saúde e dos equipamentos que precisa (mesmo os 1800 profissionais que foram contratados durante a crise do “COVID 19” foram com contratos precários de 4 meses, que agora renovados apenas por mais 4 meses, o que é inaceitável), a ministra da Saúde veio dizer que o governo tenciona recuperar os enormes atrasos que se verificam em consultas, cirurgias, etc., recorrendo aos grandes grupos privados de saúde.
A política do governo parecer ser a de manter as graves insuficiências do SNS confirmado pelas declarações da ministra da Saúde a RTP em 2/5/2020 em que considera que a solução para os enormes atrasos que se verificam no SNS é apenas um maior empenhamento dos profissionais, por um lado, e, por outro lado, alimentar os grandes grupos privados contribuindo para a explosão do negócio privado de saúde financiado pelo SNS e pelos subsistemas públicos de saúde.
O aumento enorme da divida pública necessário para apoiar as famílias e a economia, face à falta de solidariedade da UE, agravará muito mais as consequências que já se verificam do nível de endividamento
A quebra brutal da atividade económica, causada pela grave crise de saúde pública, vai determinar uma redução importante das receitas do Estado e um enorme aumento da despesa publica, necessária para apoiar as famílias e as empresas, embora com limites sob pena de se criar uma situação insustentável o que agravará ainda mais as desigualdades e a miséria no nosso país.
Mas mesmo voltando à normalidade de uma forma gradual e minimamente segura, como defende o governo, e é urgente que isso aconteça, o FMI prevê que a economia portuguesa (PIB) sofra uma contração de 8% e que o défice orçamental atinja um valor correspondente a 7,1% do PIB. A Comissão Europeia já veio confirmar tais previsões acrescentando que, se os Estados não tomarem as medidas necessárias para recuperar a economia, a recessão económica severa em 2020 poderá atingir o dobro (15%) o que, a acontecer, seria um desastre social.
Mesmo admitindo um recessão de 8%, a divida publica, medida em percentagem do PIB, aumentaria em Portugal, devido à diminuição do PIB, que é o denominador deste rácio (o numerador é o montante de divida); repetindo, com um défice orçamental de 7,1% a divida publica portuguesa, na ótica de Maastricht (que não inclui a totalidade das dividas das Administrações Públicas) aumentaria dos 117,7% do PIB em Dez.2019 (e entre Dez.2019 e Fev.2020 aumentou de 249.980M€ para 255.369M€) para cerca de 133% do PIB, um aumento superior a 15 pontos percentuais que é enorme. E consequentemente a despesa com juros, cuja previsão no orçamento inicial de 2020 era já de 6.409 milhões €, aumentaria enormemente.
E isto até porque, devido à recessão severa em 2020, é previsível que as empresas de rating baixem a classificação atribuída à divida portuguesa o que, a acontecer, faria aumentar imediatamente a taxa de juro cobrada pelos prestadores, que são os grandes grupos financeiros, face à proibição do BCE financiar os Estados, fazendo aumentar enormemente os encargos do Estado com a divida, e limitando assim a capacidade do Estado para apoiar as famílias e a economia.
A falta de solidariedade revelada pelos países mais ricos da U.E., que têm tirado maior beneficio da sua existência, ao recusarem a emissão de divida conjunta (os chamados “coronabonds” ou mutualização da divida), necessária para impedir a especulação dos fundos predadores que se aproveitarão da situação difícil dos países para impor taxas de juro especulativas, deixando cada país entregue a si próprio na ida aos mercados, único meio que têm atualmente para financiar a divida (o Banco de Portugal não pode emitir moeda como acontece com os bancos centrais da Inglaterra e dos E.U.A), contribui para agravar a situação de países como Portugal, dificultando a capacidade do Estado para combater o aumento da miséria que a crise económica está a causar, devido ao desemprego maciço e à falência de milhares de micro e pequenas empresas, e para apoiar a recuperação económica.
Uma crise cujas consequências não serão iguais para todos e que agravará ainda mais as desigualdades e a miséria no país. O regresso à normalidade económica é tão importante como a defesa da saúde pública, pois sem uma e outra não conseguiremos viver. Há que encontrar o equilíbrio entre elas
Contrariamente ao que muita comunicação social tem veiculado (até chegam a dizer que é um “vírus democrático” pois ataca da mesma forma ricos e pobres), os efeitos da crise não serão iguais para todos. Um estudo feito na Inglaterra, concluiu que o número de mortes pelo COVID 19 de africanos e indianos é três vezes superior à dos chamados caucasianos (“raça branca”).
Em Portugal, 40% das mortes verificam-se em lares onde estão principalmente os mais velhos mas também os de mais baixos recursos. Portanto, dizer que o “COVID 19” atinge de igual ricos e pobres não é verdade. E embora a crise atinja toda a economia, está a atingir de uma forma muito mais violenta os trabalhadores, os chamados independentes de recibo verde, os micro e pequenos empresários (só as microempresas representam 96% do total de empresas e empregam mais de 1,8 milhões de pessoas).
Segundo dados divulgados pelo Ministério do Trabalho, até 30/4/2020, as 99.140 empresas (80% são microempresas) já solicitaram a colocação em “layoff” de 1.212.000 trabalhadores, mas a ministra informou que só tinham sido aprovados de 360.000, que receberiam, com atraso, os 70% da sua remuneração, ignorando se os restantes 850.000 trabalhadores receberiam o seu salário de Abril. Os 360.000 a quem foi aprovado o “layoff”, a sua remuneração mensal diminuirá de 1.011€, que é a média declarada, para apenas 696€. Para os 1.212.000 trabalhadores, isto representará uma perda de remunerações estimada em 361 milhões € por mês. Para quem ganha já muito pouco, esta redução é devastadora e levará muitas famílias à miséria.
A estes trabalhadores que as entidades patronais querem colocar em layoff, há ainda a adicionar os 182.500 trabalhadores independentes de “recibo verde” que pediram ajuda, e cujo apoio máximo é de 635€ (em Março foi de 438,81€) sendo este este valor multiplicado pela percentagem de quebra de faturação ( se a quebra na faturação foi de 40%, o apoio é apenas de 40% daquele valor). Os independentes que estavam no 1º ano, e que por lei estavam isentos de contribuições (e são milhares) não têm direito a qualquer apoio. Segundo o Ministério do Trabalho, os despedimentos coletivos só até 30/4/2020 (num mês apenas) atingiram 26.800 trabalhadores, e as inscrições nos Centros de Emprego aumentaram em 52.000.
E isto já para não falar das dezenas de milhares de trabalhadores que perderam o emprego e que não aparecem nas estatísticas oficiais de desemprego. Segundo um inquérito feito pela Universidade Católica a uma amostra representativa do total de empregados, 4% dos trabalhadores inquiridos perderam já o emprego. Projetando esta percentagem para toda a população trabalhadora isso dá um aumento do desemprego superior a 160.000 em apenas um mês, o que devastador em termos sociais e de saúde pública, pois esta agrava-se com o aumento da miséria.
A maioria dos trabalhadores e dos microempresários (96% dos empresários) já estão no limiar da pobreza ou próxima dela. A mancha da pobreza, mesmos com os apoios que o Estado possa dar, está-se a alastrar no país de uma forma rápida. Se a economia demorar em voltar à normalidade, embora gradualmente, as consequências sociais serão devastadoras, assim como de saúde pública. Aqui o fundamentalismo é destruidor e não menos que o COVID 19. O Estado, que é financiado com os nossos impostos, não tem recursos ilimitados. Este estudo mostra que o recurso ao endividamento publico tem limites que é preciso não ignorar, sob pena de depois da crise ser ainda maior.
É preciso ter a coragem de dizer isso aos portugueses, e é fundamental que os portugueses compreendam que está em perigo a sua sobrevivência e as suas condições mínimas de vida. Sem elas não é possível também viver nem ter saúde. Há que encontrar um equilibro entre a defesa da saúde publica e a defesa da economia pois sem uma e outra não conseguiremos viver.
É necessário que os portugueses acatem rigorosamente as recomendações das autoridades de saúde, mas também é fundamental que encarem o regresso gradual à normalidade da atividade económica como uma necessidade vital, que todos nos devemos empenhar nisso, sem a qual também não conseguiremos sobreviver durante muito tempo. Há riscos, é evidente que há riscos, mas temos de os enfrentar se quisermos ter condições para viver com um mínimo de dignidade (nós, os nossos filhos, e os nossos netos). Mantermo-nos com medo em casa não é solução até porque cerca de 30% dos infetados tem como origem o ambiente familiar, permanecer em casa não ficamos imunes e apanhamos outras doenças não menos destruidoras. É preciso não esquecer, mesmo nestes momentos difíceis, que o trabalho é a única fonte de rendimento para os trabalhadores e a realização e fonte da sua dignidade.
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.