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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

O fim da União Europeia como a conhecemos até hoje

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A preeminência do direito europeu sobre o direito dos Estados é uma pedra angular da construção europeia. Instituída numa decisão judicial europeia de 1964, se bem que não esteja inscrita em letra de forma nos tratados europeus, sempre foi tida como um dado adquirido e irrevogável.

  1. A bomba de Karlsruhe

Foi esse princípio que foi posto em causa – de forma que me parece irreparável – na decisão de 5 de Maio do Tribunal Constitucional Alemão (designado na gíria como ‘Karlsruhe’ em atenção à cidade onde tem a sua sede) que qualifica uma histórica sentença do Supremo Tribunal Europeu (STE) relativa a uma questão colocada por Karlsruhe sobre os poderes do Banco Central Europeu (BCE) como ‘ultrapassando a sua competência legal’ e sendo portanto ilegítima, e proibindo expressamente o parlamento e o governo alemães de porem em prática a decisão judicial europeia.

Quer isto portanto dizer que o Tribunal Constitucional Alemão deixou de reconhecer sobre si a autoridade do Supremo Tribunal Europeu, numa matéria que ele mesmo tinha qualificado de competência europeia, e que, por esse motivo, lhe tinha submetido à sua apreciação.

A sentença, extremamente sucinta e acutilante, a milhas de distância do que é a tradição portuguesa, não deixa qualquer margem para dúvidas, não usa qualquer subterfúgio de linguagem, nem cortesia diplomática.

A sentença alemã classifica a sentença europeia de fazer uma ‘interpretação incompreensível dos tratados’ e de ser ‘objectivamente arbitrária’. Mais contundente do que isso, e subscrevendo aqui a argumentação política dos fundadores da ‘Alternativa para a Alemanha’, Karlsruhe considera a atitude do Supremo europeu como contrária à democracia, em quatro dos dez pontos da sua decisão.

Enquanto o presidente do Banco Central Alemão se regozijou com a decisão, a chanceler Merkel reservou a sua opinião para depois de uma análise mais cuidada.

  1. O mito da independência do Banco Central

Outra das pedras fundadoras da União Europeia que chegou aos nossos dias foi a da ‘independência do Banco Central Europeu’ (BCE) uma das várias imposições da ortodoxia ‘ordoliberal’ alemã no Tratado de Maastricht.

A ‘independência’ é aqui vista na mesma lógica com que a magistratura portuguesa vê a sua independência, que é a de não ter contas a prestar a ninguém, princípio que escandalosamente se procura identificar como sendo um pilar do ‘liberalismo’ e da ‘separação de poderes’ de Montesquieu.

A ideia da independência era naturalmente a de assegurar a estrita dependência do BCE em relação aos poderes fáticos instalados e estreita independência do BCE perante qualquer vontade democrática. Sendo os princípios instituídos no Tratado de Maastricht sobre a gestão do Euro de uma ortodoxia sem par no mundo ocidental, e estando os banqueiros em princípio imunes à pressão democrática, não terá porventura ocorrido aos arquitectos do ‘Euro’ a possibilidade de aparecer à frente do BCE um banqueiro mais interessado na estabilidade económica, social e política do que na preservação da dogmática ordoliberal alemã.

Mas foi isso que aconteceu com Mario Draghi, que resolveu trazer para a Europa o que é norma fazer no mundo ocidental, permitindo que o BCE quebrasse a profunda depressão europeia. Foi isso que o Supremo Tribunal de Karlsruhe se considerou competente para avaliar e corrigir, desfazendo em estilhas o princípio da independência do Banco Central e demitindo de caminho o Supremo Tribunal Europeu.

Tudo indica, naturalmente, que a decisão do Tribunal alemão de dia 5 de Maio tenha mais em vista sabotar a previsível necessidade de aumentar de forma exponencial o papel do BCE no combate à catástrofe económica provocada pelo ‘Corona-pânico’ do que ajustar contas com Mario Draghi, que entretanto já abandonou funções.

  1. A Europa Zombie

A decisão de Karlsruhe apanha o Sul da Europa mergulhado em profunda crise. Gerindo de forma desastrosa a pandemia – e aqui, Portugal, no clube latino brilha apenas por os seus termos de comparação serem piores ainda – o Sul da Europa conseguiu assegurar que aquilo que vai ser em todo o mundo a pior crise de sempre, será duas ou três vezes pior entre nós.

A posição de fraqueza é de tal ordem que o Sul da Europa vai provavelmente engolir em seco, minimizar o descalabro institucional e tentar negociar a sobrevivência, numa Europa que deixou de existir como a conhecemos, porque a realidade é que dificilmente encontrará alternativas.

Quem pensa que o problema é meramente jurídico e que é possível ultrapassar o bloqueio alemão ao BCE por estratagemas vários baseados em contabilidade criativa e fuga às realidades, vai ter a oportunidade de verificar o quão está enganado.

A menos que alguém entenda o que está em jogo e ouse quebrar com a corona-psicose; decida enfrentar a realidade com determinação, lucidez e bom senso, não vejo como poderemos esperar uma história com final feliz.

 


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