O governador do Pará, Helder Barbalho colocou o trabalho doméstico entres as outras 58 atividades consideradas essenciais durante o confinamento obrigatório para conter o avanço da Covid-19 no estado do Norte brasileiro, informa reportagem de Gabriela Azevedo, Gil Sóter e Thaís Rezende, do G1-PA.
O prefeito da capital, Belém, Zenaldo Coutinho tenta justificar o serviço doméstico como essencial para os trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente do combate ao coronavírus ou porque idosos necessitam de atendimento em seu isolamento.
A vice-presidenta da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, seção Pará (CTB-PA), Lucileide Mafra Reis contesta essa visão, principalmente porque expõe quem atua no serviço doméstico à contaminação pelo coronavírus.
“Eles não respeitam as trabalhadoras e trabalhadores domésticos porque predomina o pensamento escravista”, diz Lucileide, que também é presidenta da Federação das Trabalhadoras Domésticas da Região Amazônica.
Inclusive a cantora Gaby Amarantos protestou em suas redes sociais contra o único estado a tomar essa decisão.
O prefeito Zenaldo, de Belém, incluiu as trabalhadoras domésticas nos serviços essenciais, tirando delas o direito de cuidar de seus filhos e de suas mães, e isso é gravíssimo. Mulheres pretas e periféricas são quem carregam esse país nos braços. Chega, liberem as domésticas!”.
As repórteres do G1 contam que, de acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, seção Pará (Dieese-PA), são cerca de 200 mil trabalhadoras e trabalhadores domésticos que terão que continuar indo às ruas em meio à proliferação do coronavírus, no estado.
Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra a existência de mais de 6 milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil, em 2016, sendo 92% mulheres, superior à presença feminina de 80% no mundo e 88% na América Latina. Ainda de acordo com o IBGE, no Brasil, 88,7% das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) entre 10 e 17 anos no Brasil são meninas e 71% são negras(os).
Nem a regulamentação do trabalho doméstico ocorrido pela Lei Complementar 150, de 2015, trouxe as garantias necessárias para as trabalhadoras e trabalhadores do setor. “Depois de anos de luta, conquistamos os direitos como qualquer trabalhador”, garante Lucileide. Mas, a reforma trabalhista, aprovada em 2017, “trouxe de volta o pesadelo da sobrecarga de trabalho e do desrespeito às leis”.
A sindicalista paraense conta ainda que a visão dos governantes do Pará não é exceção no país. “O nosso trabalho continua sendo quase análogo ao trabalho escravo” porque “não respeitam jornada de trabalho e descanso remunerado”. Agora com a pandemia a situação pode ficar muito pior, “pois muitas empregadas estão sendo dispensadas ficando sem os seus salários, necessitando do auxílio emergencial”.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como trabalho doméstico as “tarefas como limpar a casa, cozinhar, lavar e passar roupas, cuidar de crianças e pessoas idosas ou doentes, cuidar de jardins, proteger a casa, dirigir para famílias e até mesmo cuidar de animais domésticos”. Segundo Lucileide cresce no Brasil, após a reforma trabalhista, a contratação como diaristas, “para tentar evitar o vínculo empregatício”.
Para Danila Cal, doutora em Comunicação e coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia, que pesquisa o trabalho doméstico no Pará, a decisão do governo estadual remete ao pensamento escravocrata, visto como traço da formação da sociedade brasileiro pelo sociólogo Jesse Souza. Além de contrariar determinação do Ministério Público do Trabalho.
A nossa sociedade está acostumada a ser servida, e o trabalho doméstico é considerado um trabalho muito exaustivo, e considerado muitas vezes de segunda categoria por algumas pessoas. As pessoas não querem realizar o trabalho doméstico na sua própria casa, manter limpa, cuidar das coisas que não são consideradas por elas como essenciais”.
Já o professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Eduardo Coutinho da Costa relata à BBC News Brasil a sua crença de que há um vínculo direto com o racismo que se estabeleceu a partir da Abolição, em 1888.
“Era muito comum tanto no pós-abolição imediato, quanto ainda nos dias de hoje, as pessoas dizerem (a negros e pobres): ‘ponha-se no seu lugar’. Mas que lugar é esse ao qual os pobres pertencem?”, indaga.
Assista Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert
“Lugar de negro” é um livro de Zélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, publicado em 1982, que mostra como a sociedade brasileira forjou um racismo institucional para manter negras e negros longe dos “lugares dos brancos” nos cargos de direção no trabalho e na sociedade.
Durante a pandemia, afirma Lucileide, “é preciso levar em conta que as trabalhadoras domésticas têm as suas famílias para cuidar e trabalhando podemos nos contaminar e levar o contágio para nossos familiares”.
Ela conta que, mesmo sem ser considerado essencial, “muitas famílias exigem a continuidade do trabalho e isso precisa parar”. Seria importante “manter os salários dessas trabalhadoras e trabalhadores e que ficassem também em quarentena para sairmos dessa situação o mais rápido possível”.
Afinal, conclui a sindicalista paraense, “nosso trabalho só não é essencial quando se refere a direitos trabalhistas, condições dignas de trabalho e salário decente”.
Texto em português do Brasil
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