Cantem Marias, cantem, pois o grande dia não vem…
Negras são as noites e as damas que por elas transitam. Amélias, Camélias, Justinas, Consoladoras, Marias… Deitam o seu perfume no vento e embriagam os pobres homens, os trabalhadores do Mercado, os imberbes à janela do internato. Acenam seus gestos rubros, rubras são suas carnes comidas pela volúpia da fome, o desejo que não se segrega à alcova e desce as ruas, as alamedas, se esparrama pelos meios fios, transborda pelas bocas de lobo.
A noite é o dia do desejo. E essas mulheres, incenso dos homens, queimam aflitas. Outras, desavisadas, perdem os dentes, os brios, as vontades, os cabelos. Velhas megeras se tornam, ávidas pelo contato das moedas nos seios fartos ou ressequidos.
Vez ou outra, quando iniciam a negra jornada, um ou outro anjo ali cai, virgem do pecado maior, vítima da miséria, se entrega ao primeiro e mais ávido pagante e sangra por cima da túnica de ternura que ainda veste. Depois, os passos no trottoir, o barulho dos tamancos baratos comprados às pressas naquele mesmo lugar de dia, onde o sol machuca a tez dessas mariposas e os homens fingem não conhecê-las. Ou conhecê-las muito. O que é pior.
No entanto, apesar de múltiplas, não se vê o rosto dessas mulheres, parecem todas disformes, embora belas. Decerto que é o mesmo perfume da noite que deformam suas feições e as tornam espécies de espectros cubistas.
E há um canto também, uma música invisível aos ouvidos, insensível ao coração, que não se sabe ser de lamento ou de morte. Mas cantam as Amélias, as Justinas e as Marias. Ou pelo menos murmuram em uníssono no ranger das molas das velhas camas, gastando a pele das costas na fricção de suas existências sem sentido. Células perdidas, Coralinas de ninguém.
Cantem Marias, cantem, pois o grande dia não vem…
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