Catarina, ceifeira, retirava o trigo do chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.
Em Alentejo, a linda região no centro-sul de Portugal, as paisagens estendem um paraíso de olivais e vinhas, alongam-se em aldeias pitorescas, prados cheios de flores e florestas que respiram beleza.
Mas um fato histórico marca com sangue esse cenário. No dia 19 de maio de 1954 foi brutalmente assassinada a jovem camponesa Catarina Eufémia, de apenas 26 anos.
Naquela década, Portugal vivia sob a ditadura de António Salazar, que perdurou de 1932 a 1968, governando nos moldes do fascismo, apoiado pela doutrina social do catolicismo, exercendo o nacionalismo autoritário, orientado pelo corporativismo de Estado.
Catarina Eufémia era uma trabalhadora agrícola no Baixo Alentejo, assim denominada a região onde a capital é Beja. Ceifeira, como centenas de compatriotas, com três filhos pequenos, ajudava no sustento da casa na colheita de cereais, amendoais, ervas.
A luta por melhores condições de trabalho e salário digno vinha se intensificando desde a década de 40. Greves decorreram. As mulheres cada vez mais participativas nas reivindicações.
Naquele dia 19, uma manhã de quarta-feira, Catarina uniu-se a treze trabalhadoras para conversar com o feitor da propriedade, obter um aumento de apenas dois escudos em suas exaustivas jornadas. A Guarda Nacional Republicana foi acionada, junto com agentes da PIDE, a polícia política salazarista, para reprimir as grevistas. Um tenente de nome Garrajola interpelou o grupo de mulheres perguntando o que elas queriam.
– Quero apenas pão e trabalho – respondeu Catarina, de imediato e destemida.
O militar considerou a resposta insolente e deu-lhe uma bofetada, jogando-a no chão. Catarina levantou-se, e altiva, disse, desafiando-o:
– Já agora mate-me.
O tenente disparou três tiros espedaçando-lhe os ossos.
Há pelo menos três bons livros, “A Morte no Monte – Catarina Eufémia”, de José Miguel Tarquini, 1974, “Anatomia dos Mártires”, de João Tordo, 2013, e “O assassino de Catarina Eufémia”, de Pedro Prostes da Fonseca, 2015, que abordam de forma biográfica, romanceada e até investigativa, o que aconteceu naquele dia, o que antecedeu na vida de Catarina Eufémia e o que sucedeu na história, tornando-a símbolo da luta contra a exploração e a repressão, uma lenda da resistência antifascista pelo Partido Comunista Português, sem ter sido militante.
Conta-se que além de estar com um dos filhos no colo, de oito meses, que se machucou na queda no confronto com o tenente, Catarina estaria grávida. “Não foi uma, foram duas mortes!”, gritaram os trabalhadores diante o corpo no dia do enterro. O relato da autópsia, com os detalhes dos estragos que as balas à queima-roupa fizeram é chocante.
Poetas portugueses como Sophia de Mello Breyner, Eduardo Valente da Fonseca, Francisco Miguel Duarte, José Carlos Ary dos Santos, e tantos outros, dedicaram belos e doloridos poemas em memória de Catarina Eufémia.
Um deles, “Cantar Alentejano”, de António Vicente Campinas, foi musicado por Zeca Afonso em 1971, uma bela canção réquiem gravada no disco “Cantigas de maio”.
“Acalma o furor campina
que o teu pranto não findou
quem viu morrer Catarina
não perdoa a quem matou”
Lembra um trecho do poema.
Na foto acima, de André Paxiuta, o olhar desconhecido de uma transeunte cruza o olhar de Catarina estampado na parede da memória em sua cidade, Baleizão. Os verdejantes ventos de Alentejo 66 anos depois sopram o pão de sua história. Catarina, ceifeira, retirava o trigo do chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.
por Nirton Venâncio, Cineasta, roteirista, poeta e professor de literatura e cinema | Texto em português do Brasil
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