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Sábado, Dezembro 21, 2024

A chuva de milhões

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A iniciativa de Merkel foi habilmente prolongada pela sua correligionária Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que rapidamente compôs o ramalhete com mais milhões, mais embalagens e fazendo-os chover em todas as direcções como se amanhã todos fossemos encontrar o saldo da conta bancária generosamente guarnecido.

  1. A pirueta da chanceler alemã

Angela Merkel provou uma vez mais os seus consideráveis dotes em matéria de táctica política ao conseguir sair do dilema fatal em que o Tribunal Constitucional Federal Alemão a tinha colocado: obedecer à Constituição alemã e acabar com o Euro e arriscar a sobrevivência da construção europeia ou dar o poder aos seus concorrentes da Alternativa para a Alemanha.

Ao aparecer lado a lado com o enfraquecido presidente francês aceitando duas coisas que até hoje tinham sido impensáveis para a ortodoxia alemã (1) o endividamento do orçamento europeu e (2) a subvenção a Estados para fazer face a crises; a chanceler alemã acertou em quatro alvos com um só tiro: desviou as atenções do braço de ferro bancário criando a ideia de que um ‘Nein’ bancário pode ser compensado por um ‘Jawohl’ orçamental; quebrou com o ambiente depressivo reinante criando a ideia de que iríamos ter uma chuva de milhões; afastou as atenções das massivas ajudas de Estado alemãs que não cumprem regras europeias e, cereja no topo do bolo, passou a mensagem de que afinal a Alemanha até nem manda em tudo e que no essencial pode mesmo ceder perante o clube latino presidido por Macron.

Em termos de estratégia de comunicação, a iniciativa de Merkel foi habilmente prolongada pela sua correligionária Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que rapidamente compôs o ramalhete com mais milhões, mais embalagens e fazendo-os chover em todas as direcções como se amanhã todos fossemos encontrar o saldo da conta bancária generosamente guarnecido.

A realidade é que a gestão social começa pela gestão das expectativas e que era essencial quebrar com a corona-psicose maníaco-depressiva reinante, mesmo se com o auxílio de peças de puro ilusionismo financeiro; deste ponto de vista, o número, até ver, funcionou em pleno.

  1. Ilusionismo e realidade

Ter os portugueses entretidos com a chuva de milhões é certamente uma variante positiva à doentia hipocondria e obsessão necrológica dos últimos meses mas que, contudo, não dispensa que se pense com base em factos e não em ilusões.

E a primeira coisa a ter em conta é que o que tecnocraticamente se designa de política monetária – a máquina bancária – é mais poderosa e mais importante do que a orçamental. Se a actual proposta se materializar na submissão do Banco Central Europeu ao poder judicial alemão em troca de uma flexibilização orçamental europeia, creio que fazemos um mau negócio.

A segunda é a de que é essencial saber o que queremos fazer. Os portugueses participaram alegremente na destruição do único domínio onde incontestavelmente são competitivos: o turismo, com base nos mais absurdos argumentos e raciocínios, entre eles a tola convicção de que se Portugal deixar de ser competitivo turisticamente isso fará do país uma potência industrial, científica ou qualquer outra coisa do género. É necessário deixar de lado a ficção e encarar a realidade. Não vejo alternativa a enfrentar a realidade com olhos abertos e sem sofismas: ou conseguimos vencer o coronapânico e andar, ou temos o desastre em perspectiva.

A terceira é não ficar prisioneiros dos interesses instalados. A este propósito, convém não partir do princípio que tudo o que a Alemanha faz é para ser copiado, porque as massivas ajudas de Estado alemãs não são nem passíveis de ser copiadas por um país orçamentalmente esgotado nem são sequer uma boa ideia.

Uma coisa é apoiar socialmente a população, tendo aqui especialmente em conta os pequenos negócios que foram os mais atingidos, e por uma razão simples, mais do que negócios, trata-se de modos de vida. Trata-se de um imperativo humano e social que só pode ser levado à prática de forma eficaz com subvenção a fundo perdido.

Outra coisa é cobrir os prejuízos de negócios para além da sua dimensão social. A alma do negócio é a procura do lucro e o risco do prejuízo. Pode-se apoiar um negócio na medida em que essa seja a única forma de evitar perder postos de trabalho, em condições que convém analisar com o máximo rigor, mas não se pode partir do princípio que um prejuízo tem de ser coberto pelo Estado, da mesma forma que um lucro não tem de ser suprimido pelo Estado.

Haverá ainda casos em que se justifica a defesa de negócios emergentes perante a voracidade predatória de fundos de investimento, por vezes animados por Estados totalitários. Mas esse caso de figura será melhor coberto por uma nacionalização que apoios avulsos de Estado.

  1. Horizontes

Vamos ter de pensar seriamente no significado da pandemia muito para além da sua dimensão viral, que de todo não me parece a mais importante. Como já aqui afirmei, creio que o mais eminente microbiologista que veio a público nesta crise, Didier Raoult, tinha já entendido e escrito há uns anos atrás sobre a síndroma do medo que enfrentamos.

A nossa civilização está a ser desafiada, por um lado, por uma cultura suicidária, especialmente o jihadismo, que faz a apologia da morte, e para quem a pandemia, por definição, não assusta, ou melhor, não questiona o seu modelo ideológico que é justamente baseado na morte.

Por outro lado, ela está a ser confrontada pelas suas contradições internas, pela ilusão de que tudo está ao nosso alcance e, portanto, também a imortalidade, e por isso a morte é vista como um mal absoluto que é preciso combater, mesmo se o combate cego à morte não puder resultar em mais nada do que mais morte ainda, algo que se desenrolou na presente pandemia.

E por isso temos a cultura do medo absoluto, e o medo absoluto paralisa e não deixa que nada aconteça. Provavelmente, o impacto positivo na salvaguarda da vida pelas medidas draconianas de confinamento do modelo chinês copiado em todo o mundo tiveram mais a ver com a diminuição dos acidentes de trabalho e de viação ou com a diminuição da poluição do que outra coisa.

Mas em contrapartida, temos entender tudo o que de novo se nos abre, a necessidade urgente de abrir para o resto do mundo, apanhar os novos desafios tecnológicos e energéticos que se abrem, e isso não se faz com a cultura do medo (prosseguida, por exemplo, com o catastrofismo climático) mas com uma cultura positiva, da vida, da nossa, e sobretudo das gerações futuras.

Isso não depende de nenhuma chuva de milhões, depende de nós mesmos e da vontade que tivermos de olhar para o mundo de uma forma diferente.


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