Chegou pelo facebook este poema, oferta generosa do autor aos seus seguidores, que são muitos.
(de João Paulo Esteves da Silva)
Telepatia
E se tudo fosse, mesmo, água,
como queria Tales, e como
tantas línguas parecem querer dizer
em seus pronomes aquáticos, os quais
evocam, quase sempre, a relação
com aquele modo de ser primordial?
Se fosse assim, o meu e o teu rio
que levam cursos tão diferentes,
por serras e países afastados, seriam
no fundo, e sem se ver, um mesmo rio.
E os versos que aqui ponho a flutuar
poderiam chegar à tua margem,
claro que já apagados pelas águas, mas
com uma música corrente que ainda ouvisses.
Prendeu-me a relação com o “modo de ser primordial”, se tudo fosse mesmo água. Aqui se revela uma das imagens essenciais para a compreensão do poema. A água, no seu modo de ser primordial, é de súbito a água inicial da criação do mundo, onde todo o ser é indistinto e Deus devagar, ao longo de vários dias, irá diferenciar. Com a separação que introduz se modifica o mundo e o seu desejo de ser e de criar.
Não há poesia inocente, não há imagem, ideia, movimento, que no caso deste poeta não transporte algo mais, de muito longínquo no pensamento, na cultura de que é herdeiro e nos aponta a herança. Aqui teremos de deixar Tales de Mileto, o pré-socrático e tentar beber no Génesis a lição mais escondida da criação do mundo e do primeiro homem:
“Ao princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era vaga e vazia, as trevas cobriam o abismo, o espírito de Deus planava sobre as águas”.
Estas as primeiras referências: já existiam “as águas”, o Todo que cobria céu e terra criados por Deus, que tal como as águas era também ele antigo e primordial. O seu Espírito, no momento da criação, planava sobre esse Todo. Talvez daqui tenha retirado o filósofo a sua ideia de que tudo era água, ideia que João Paulo desenvolve no correr do poema. Mas na verdade há outra, subjacente, e é sobre essa que temos de meditar, e que surge no dia dois da criação, depois de já separadas luz e trevas, no primeiro:
“Deus disse: que haja um firmamento no meio das águas e que separe as águas das águas e assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão sobre o firmamento, e Deus chamou céu ao firmamento”.
Foi o segundo dia.
As águas estão ainda presentes no início do dia 3, em que a diferenciação continua, com a descrição no fim da verdura que cobrirá a terra. Mas falemos das águas:
“Deus disse: Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente; e assim foi. Deus chamou ‘terra’ ao continente e à massa das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom.
A criação foi um acto ordenador de um universo caótico na sua origem, e que culminará com a criação do homem, Adão, feito à imagem e semelhança de Deus, ao sexto dia. No sétimo dia Deus repousará.
Mas não há repouso no mundo.
Será por via do par Adão/Eva que a história do mundo seguirá afinal outro curso.
Deus verifica que uma centelha de si mesmo permanece em Adão, feito à sua imagem, ele que entretanto também já se dividira de si mesmo e se chama agora Jeová, continuando o seu diálogo, a sua interferência num mundo que até hoje tem parecido escapar-lhe. Jeová assume a forma de uma divindade poderosa, arcaica, a quem é necessário prestar tributo, sacrificar vidas para o honrar.
A interrogação de João Paulo, no poema, é feita de uma líquida nostalgia de um outrora em que o absoluto do universo era reconhecido e ao qual o homem (o poeta) e o seu Verbo se podiam entregar, vogando, confiantes.
A música das esferas, que o todo da água primordial envolvia, sempre haveria de chegar ao seu destino.
O destino era o “outro”, o outro de si mesmo e do deus implacável a quem a interrogação, como se cada poeta fosse um Job expectante, se dirigia: “e se tudo fosse, mesmo, água”…
Não haveria sofrimento, não haveria divisão (a ruptura que os causava) e então sim, o verso poderia recuperar a inocência que a consciência de si, e a satisfação com a sua Obra, no velho Jeová, tinha transtornado para sempre.
O Verso único, o do Som puro, perdido.
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