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João de Sousa

Domingo, Novembro 24, 2024

“Partida”: a esperança viaja num ônibus

No filme de Caco Ciocler o ônibus é um personagem que carrega as histórias, se desloca e se transforma.

Estreou em algumas plataformas de streaming o filme dirigido por Caco Ciocler,

“Partida”, que conta a história de uma trupe que sai do Brasil para tentar falar com Pepe Mujica. A ideia nasceu da vontade da atriz Georgette Fadel em se candidatar à presidência em 2022, após a esquerda perder as eleições em 2018. Para isso, Fadel pensou em ouvir os conselhos do ex-presidente do Uruguai.

Partida escancara a polarização que se instalou no Brasil desde as manifestações de julho de 2013. Dentro do ônibus que leva a “comitiva” ao país vizinho, vamos tendo contato com as diferentes visões políticas que se cristalizaram no país: pela esquerda com Georgette, e pela direita com Léo Steinbruch.

Entre tantas coisas importantes no filme, três delas chamam atenção.

A mão do diretor

A primeira é a direção de Caco. A sua narrativa expõe didaticamente os desafios do cinema de guerrilha, produzido com baixo orçamento e uma boa dose de improvisos. Em Partida, essas dificuldades são evidentes. Além da já mencionada falta de recursos financeiros, o filme tem uma equipe reduzida e, como quase tudo é filmado no ônibus em movimento, são muitos closes, e muitos diálogos.

Todas essas “imperfeições” parecem ser calculadas pelo diretor, que mostra uma força narrativa impressionante. Quando Caco Ciocler instiga os atores ao confronto, ele nos leva à dúvida sobre se sua provocação é real ou ficção, uma espécie de “Jogo de Cena” de Eduardo Coutinho. É sem dúvida um trabalho majestoso.

 

Um vulcão chamado Georgette

O segundo elemento de força é a atuação de Georgette. Não se escreve uma crítica com palavrões, mas é preciso dizer que ela é Foda! Com “F” maiúsculo.

Georgette é um vulcão na interpretação. Ela sabe usar todas as expressões da face para preencher e dialogar com a câmera. Um casamento perfeito com a direção de Caco.

A atriz constrói seus diálogos na desconstrução do outro. Com suas frases duras, ela coloca Léo na lona. Ele, por sua vez, repete o senso comum, com frases ralas sem problematizar os reais problema brasileiros.

Acho curioso que Georgette, mesmo afirmando ser comunista convicta, se apega na fé em alguns momentos do filme. Logo no início, vemos santinhos espalhados pela sua casa. Dentro do ônibus, ela toca atabaque para Ogum abrir os caminhos. E quando um personagem põe a mão em sua cabeça, ela fecha os olhos e chora de emoção, como se estivesse recebendo uma energia indescritível de algum deus. Essa mistura é um caldo de brasilidade. O povo brasileiro, mesmo sendo marxista ou comunista, não deixa a fé de lado, típico da nossa cultura.

 

O ônibus como set e ringue…

Por fim, o ônibus é um personagem que carrega as histórias, se desloca e se transforma. Apesar de ser focado em Georgette e Léo como um antagonista, os demais personagens estão ali, interagindo entre eles. Até o motorista dá a sua versão sobre a política do Brasil. Entre a equipe está a garotinha Luíza, filha da cineasta Julia Zakia, que assina a fotografia com Manoela Rabinovitch.

O ônibus que leva esperança, se transforma também num ringue, onde os personagens confrontam suas opiniões políticas, ideológicas e comportamentais. É a visão do brasileiro atual, das opiniões das redes sociais, entre esquerda e direita e aqueles que preferem ser isentões. Uma difícil conciliação. Mas é possível se conciliar?

E ele não deixa nunca de ser um set, presente em todo o filme. O percebemos no vidro do ônibus, que mostra o reflexo do diretor, no vazamento do boom do microfone, ou na equipe que interfere em alguns momentos. Mais uma vez, essa interação nos faz questionar se estamos diante de uma ficção ou não.

Uma das falas mais fortes no filme vem do responsável pelo som e também ator Vasco Pimentel. Ele, português, descreve na sua visão o que é o povo brasileiro. É notável. Põe o dedo na ferida. Escancara uma realidade dura para nós.

 

Lula Livre

Partida ainda tem uma parada fora do roteiro. Um desvio no trajeto do ônibus para o acampamento Lula Livre, em Curitiba, onde o ex-presidente estava preso. Isso é uma amálgama entre os dois presidentes que vivenciaram uma América Latina dirigida por representantes progressistas. Caco não esconde seu lado. Não há espaço para o meio termo quando se elege um presidente como Bolsonaro.

 

Uma referência longínqua

Bem de longe, podemos dizer que o enredo lembra o documentário estadunidense “Don’t You Forget About Me”. Nele, uma trupe de cineastas sae numa Van em busca do diretor John Hudgens, célebre por seus filmes adolescentes dos anos de 1980, como Clube dos Cinco, Curtindo a Vida Adoidado, entre outros. O objetivo é encontrar o diretor para entrevistá-lo e, se isso não for possível, deixar uma carta. A carta também é uma opção de Partida.

 

Baixo Orçamento e Alto Astral

Segundo Caco, numa entrevista, o filme não custou mais do que 150 mil. É um valor baixíssimo para um filme brasileiro, mesmo para um documentário. Basta pensar numa viagem com uma equipe para o Uruguai, com diárias, equipamentos, vários dias de filmagem e “trocentas” horas na ilha para editar todo o material, isso já representaria um custo bem maior.

Não há luxo no filme. As imagens revelam um ônibus convencional, hotéis simples e é 70% filmado no mesmo ambiente. O que garante toda a magia é o comprometimento da equipe, isso faz brilhar. Como dizia no Manifesto BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral) lançado por Domingos de Oliveira em 2005.

Tudo é muito coerente, muito poético, muito brasileiro, muito Cinema!

E é claro que um grande filme tem que ter um grande final. E ele tem!

Evoé, Caco, Georgette e toda trupe de Partida!

 

Assista o trailer de Partida


por Vandré Fernandes, Cineasta, dirigiu os documentários Camponeses do Araguaia – A Guerrilha Vista por Dentro (2010) e Osvaldão (2015)  |   Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


 

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