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Sexta-feira, Janeiro 24, 2025

Do Aljube ao Goulag!

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A senhora ex-deputada novel responsável pelo Museu do Aljube ficou conhecida por, em entrevista, declarar que nada sabe sobre o Goulag ou sobre a violação dos direitos humanos na China, ou seja, por uma das mais graves realidades históricas de violação dos direitos humanos e por outra que, tendo em conta a importância e peso do país em causa, é a mais grave nos dias de hoje.

Aljube

Edifício de longa história conhecida sobretudo como uma prisão no centro de Lisboa dedicada a presos políticos durante grande parte do Estado Novo (até 1965). O edifício foi transformado em museu municipal, administrado por uma empresa pública.

Batota?

Na semana que passou, a imprensa e as redes sociais foram literalmente incendidas pela nomeação pela EGEAC – sigla da dita empresa pública municipal – da nova responsável do dito museu, colocando em causa a transparência do procedimento e o perfil da nomeada.

Por norma, não gosto da fulanização do debate político e creio que todos – mesmo aqueles que têm ideias ou atitudes que julgo inaceitáveis, mesmo sendo verdade que ao aceitarem um cargo público se prestaram automaticamente ao escrutínio público – têm direito a ver a sua personalidade respeitada.

Contudo, tão pouco creio que possamos ignorar matéria política mais importante do nosso mundo, mesmo que trazida a público em torno de uma pessoa, pelo que creio ser útil considerar as questões levantadas pela oposição municipal.

Comunistas

Passaram pela prisão do Aljube muitas pessoas, muitas delas por serem ou serem tidas por ser membros do PCP. Nem todas o foram e muitas das que o foram deixaram de o ser, mas, sem entrar em guerra de números, creio ser legítimo que o PCP considere ter uma relação especial com o museu e que queira vincar perante o eleitorado essa relação, ressalvando, naturalmente, o respeito de princípios democráticos de observação obrigatória por todos.

Deputados

A democracia tem muitos defeitos, e a nossa democracia portuguesa tem-nos certamente em abundância, mas se há convicção que mantenho é de que se há algo muito pior do que a democracia, é a ausência de democracia.

Esta matéria diz-me respeito pessoalmente porque eu fui deputado, a última vez por dez anos no Parlamento Europeu. Na vida política, como em qualquer outra, há pessoas melhores ou piores, e penso ser demagógico classificá-las em bloco, e mais ainda, estigmatizá-las como necessariamente serem movidas pela vontade de ter um tacho, por oposição ao universo dos não deputados em cargos públicos.

É a mesma lógica da consideração do número de deputados como o único e singular problema dos cargos públicos em Portugal. Creio naturalmente que o país pode viver com menos deputados sem que isto prejudique no que quer que seja a democracia, mas creio igualmente que a redução de todos os problemas de excesso de cargos públicos ao número de deputados é igualmente demagógica.

Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural

Nesta matéria, o que me parece deveras curioso é que seja a primeira vez que vejo o debate sobre as nomeações desta empresa municipal, a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, apesar de esta gerir um grande número de instituições culturais, possuir administração e inúmeros departamentos, e como se a nomeação de todos estes cargos públicos não merecesse qualquer escrutínio público, a não ser que ‘um deputado’ apareça no radar.

Mas se o deputado é eleito, e mesmo que o nosso sistema de listas seja extremamente criticável, existe pelo menos nominalmente alguma forma de controlo público sobre a sua nomeação, por que razão ninguém parece preocupar-se com o que se passa com esta empresa pública, como de resto com qualquer outra?

Fiscalização ou fulanização

As questões colocadas pela oposição municipal fulanizam este caso em particular, mas por que razão não a colocam em termos gerais? Sendo esta empresa local de colocação de imensos lugares e concursos – a começar naturalmente pela sua administração – por que razão não estão disponíveis no site da empresa a designação de todas as pessoas nomeadas para os vários cargos bem como os procedimentos, os concursos, com os resultados e os dados fundamentais disponíveis nesse site, e por que razão isto não é exigido pela oposição?

Porque uma coisa é protestar por que o nomeado é de um partido adverso, outra coisa é protestar por se pensar que estas nomeações devem ser feitas de forma transparente, escrutável por todos e por critérios imparciais, e não para satisfazer interesses privados à conta do erário público.

Goulag

Na condição de o concurso ser claro quanto ao perfil político pretendido para o cargo, pelas razões expostas, não me oponho, por princípio, à atribuição de um lugar dirigente do Museu do Aljube a um antigo deputado do PCP.

É no entanto fundamental que a pessoa em causa, apesar do partido a que está ligada, tenha uma posição clara e inequívoca em matéria de direitos políticos, liberdade e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa, o que é tão mais importante quanto a sua nomeação, como é o caso, é eminentemente política.

A senhora ex-deputada novel responsável pelo Museu do Aljube ficou conhecida por, em entrevista, declarar que nada sabe sobre o Goulag ou sobre a violação dos direitos humanos na China, ou seja, por uma das mais graves realidades históricas de violação dos direitos humanos e por outra que, tendo em conta a importância e peso do país em causa, é a mais grave nos dias de hoje.

Em lado algum se retratou a senhora deputada das suas escandalosas declarações que caucionam as mais graves e sistemáticas violações sistemáticas de direitos humanos. Como é possível que, nestas circunstâncias, uma entidade pública considere a pessoa em causa como sendo a mais adequada a dirigir a instituição cultural sob a sua tutela dedicada à memória da violação dos direitos humanos?

Trata-se de princípios fundamentais inegociáveis sobre os quais não é possível qualquer compromisso político. Uma administração pública municipal que reitera a sua decisão ignorando as críticas, é politicamente insustentável e, em nome dos direitos humanos fundamentais, deve ser demitida.

A Câmara Municipal de Lisboa não pode tolerar uma atitude destas por parte da empresa municipal que tutela. O socialismo democrático não pode negar os mais importantes princípios humanistas ou encará-los como verbos de encher que nada valem perante a lógica do nepotismo, dos negócios de sinecuras e de postos políticos.


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