Demos graças. Trinta e seis anos de Cavaco é obra. Cinco eleições ganhas, uma perdida. Seis mandatos – um como ministro das Finanças em 1980, três como primeiro-ministro, de 1985 a 1995 e dois como Presidente da República, de Janeiro de 2006 até depois de amanhã. Não é depois de amanhã, mas é como se fosse.
Homem de qualidades singulares, teve o mérito único de estar sempre à altura das mais difíceis circunstâncias. Sóbrio e de vasta cultura, ficará para a História como o português que leu os quatro cantos de Os Lusíadas e que conseguiu, através da leitura rápida dos jornais, cinco minutos, inteirar-se de toda a realidade. Sabe-se que a sua paixão automóvel o impedia de maltratar os carros – fazendo-lhes a rodagem, nem que para isso fosse necessário atropelar um João Salgueiro que se atravessasse. Homem de consensos, soube ampliar a base de apoio do governo de Bloco Central, não necessitando sequer de outros partidos para o fazer – bastava-lhe o dele.
Saudável, como demonstra a sua caça aos cocos, implementou uma rigorosa política de infraestruturas em Portugal, desenvolvendo as vias rodoviárias e usando o ferro dos carris de comboios, reciclando-os como separadores de auto-estradas. Durante os seus mandatos como primeiro-ministro as indústrias e o sector primário cresceram a olhos vistos. Os barcos de pesca puderam pescar mais e as quotas de sardinha e de leite aumentaram tanto que os armadores e os agricultores necessitavam de Ferraris para chegar depressa à lota, às vacas e aos bancos.
Famoso ficará o seu conselho sobre a economia e a bolsa. Marxista convicto, contra o mercado da especulação, avisou o povo que devia “desconfiar” da Bolsa de Valores, contra a jogatana e a agiotagem – o que levou as acções ao seu devido lugar (um cestinho de papéis da Ágata Ruiz de la Prada).
Sempre se opôs às obras faraónicas de um regime que devia ser poupado, apoiando apenas a construção do Centro Cultural de Belém ou a ponte Vasco da Gama. No primeiro caso as contas bateram certo: em vez de três edifícios ao custo contratado, fez-se um ao triplo do preço. Já a barragem do Alqueva, necessária para o regadio alentejano, teve de si o maior empenho, quando foi apanhado a pichar a frase “construam-me, porra” nas paredes da obra. Um impulso único.
Muitas vezes maltratam o estadista, acusando-o de acumular baba nos cantos da boca ou comer de boca aberta. Ou abrir a boca quando
lhe falam de temas políticos. Ou abrir a boca a destempo e fechá-la quando a devia abrir. A má língua lusitana é assim.
Forte com os fortes, conseguiu ser o único português a lucrar com o BPN, demonstrado a validade do seu doutoramento na Universidade de York. Crente no que lhe dizem, institucionalista, chegou a sublinhar que o sistema financeiro nacional em marés de crise estava uma maravilha. Quando percebeu que não estava, respondeu “quem diz é quem é”, demonstrando a sua enorme sobranceria.
Longe vão os tempos que, à sua revelia, ministros como Marques Mendes telefonavam para a televisão a encomendar recados ou Dias Loureiro mandava fazer e desfazer manifestações na Ponte Salazar. Abriu as cabeças aos portugueses, concedendo dois canais privados de televisão: um ao militante número um do seu partido e outro à santa madre igreja.
Para concluir, recorde-se a sua comunicação sobre o Estatuto dos Açores, ainda hoje um desafio para criptólogos. Amigo do movimento estudantil e das forças policiais, em que só mandou bater três vezes, vive os seus últimos dias como Presidente. Sobrevive a David Bowie, Almeida Santos, Sottomayor Cardia, Lopes Cardoso, Salgado Zenha, Leonard Nimoy e Lauren Bacall, não sem um desmaio aqui e ali, por causa do sol, principalmente o do Palácio da Ajuda.
[…] Source: O último dia de Cavaco (lágrima no canto do olho) – Jornal Tornado […]